Fábrica de Leis

O pensamento antiparlamentar sobre o processo legislativo no Brasil e na Europa

Autor

  • Roberta Simões Nascimento

    é professora adjunta na Universidade de Brasília (UnB) advogada do Senado Federal doutora em Direito pela Universidade de Alicante (Espanha) doutora e mestre em Direito pela UnB e professora do Curso de Especialização Bases para una Legislación Racional na Universidade de Girona (Espanha).

26 de setembro de 2023, 8h00

Para o leitor que está chegando agora, convém alertar que este espaço na coluna Fábrica de Leis tem sido aproveitado para questionar, sobretudo, os rumos da literatura e da jurisprudência sobre processo legislativo no Brasil. Diversas críticas foram lançadas à compreensão predominante sobre as atividades legislativas, desde a perspectiva teórica até a perspectiva prática. Os textos passados podem ser resgatados a partir daqui. Dando sequência a essa tarefa, a contribuição de hoje aponta mais uma impostura consistente em uma certa inclinação que aqui se chama de "pensamento antiparlamentar".

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Esse viés foi bem captado no posfácio escrito a esse livro. Nele, Samuel Sales Fonteles se refere a um discurso de subestimação capacitista, ética e de autoridade do Poder Legislativo. Tal como retratado em diversas referências citadas pelo autor, a capacidade institucional desse ramo do poder, em termos de deliberação, estaria aquém da atividade judicial das cortes constitucionais.

Do ponto de vista ético, os parlamentos são associados às ideias de disfuncionalidade, corrupção e captura por interesses privados. Consequentemente, o sistema representativo teria dificuldade de expressar efetivamente a vontade majoritária da população. Citando Luís Roberto Barroso em várias passagens, Samuel Sales Fonteles chama a atenção para a afirmação desse autor no sentido de que "a sociedade se identifica mais com seus juízes do que com seus parlamentares" [1].

Por seu turno, a autoridade dos parlamentos é retratada (ou enquadrada) a partir da supremacia judicial. Samuel Sales Fonteles transcreve trechos de pronunciamentos de autoridades e fragmentos de jurisprudência que refletem esse ranço ou desinteresse em relação aos parlamentares. Fica bem ilustrado esse senso comum teórico em torno do Poder Legislativo.

A provocação de Samuel Sales Fonteles é interessante e certeira, pois de fato nos últimos anos é possível observar toda uma série de teorias (e autores) que pretendem moderar e racionalizar o poder e a atuação dos parlamentos. A essa altura, o leitor já será capaz de entender — seguindo a linha de raciocínio dos textos passados — que essa é uma postura acadêmica que presta um desserviço à compreensão dos afazeres e à melhora das práticas legislativas.

O pensamento antiparlamentar não é exclusividade brasileira, como cuidarei de explicar adiante, mas precisa ser revelado a partir das penas de autores nacionais. Em coluna passada, preferi omitir os nomes. Dessa vez, tendo que recorrer à transcrição literal, isso já não será possível. Em todo caso, fica a advertência de que as críticas não são pessoais, mas, sim, à linha de pensamento que imprime uma inclinação antiparlamentar. Eis alguns exemplos.

Comentando sobre a iniciativa parlamentar, mais especificamente sobre as razões de por que os projetos de leis de iniciativa dos parlamentares — a despeito de serem numericamente superiores aos projetos de iniciativa governamental — dão origem a poucas das leis aprovadas, confira-se o que afirma José Afonso da Silva: "Isso [o fato de poucos projetos de leis de iniciativa parlamentar serem aprovados em leis] se explica porque o parlamentar tende a satisfazer primordialmente sua clientela eleitoral, os interesses de seu Colégio Eleitoral (…) a inclinação em satisfazer primacialmente os interesses do Distrito revela-se como um defeito fundamental da iniciativa parlamentar. Certo que, no mais das vezes, a iniciativa, aqui, visa tão só ao aspecto eleitoral, sem a preocupação da formação de leis – mas ainda assim ela surge como elemento perturbador do processo legislativo" [2].

A ideia de que os parlamentares atuam de forma "viciada" é revelada pela escolha das palavras destacadas aqui (mas não no texto original). O referido autor ainda afirma que muitas das iniciativas legislativas parlamentares, em todas as esferas da federação, "visam a amparar interesses irrelevantes e imerecidos de tutela legislativa" [3]. Daí a tendência contemporânea em restringir a iniciativa das leis conferida às Casas Legislativas.

Em contraste, a iniciativa governamental é apresentada com um resultado positivo, pois é o governo "o órgão mais apto a compreender as exigências globais da comunidade" e que dispõe "dos meios de informação e de relevo necessários a fim de propiciar à ordem social uma legislação adequada às necessidades coletivas" [4].

Outras passagens de José Afonso da Silva poderiam ser citadas, mas a referência é suficiente para o que se revela aqui: um incômodo com a dinâmica da atuação parlamentar. Nas entrelinhas, fica a impressão de que o autor acha melhor que os legisladores não representem o povo que o elegeu. Mas aí vem a pergunta: se não trabalhar pelos interesses da sua base eleitoral, vai trabalhar pelos interesses de quem? Tem-se aí uma contradição com a ideia rousseauniana de que a lei é a expressão da vontade geral.

Além disso, o autor ignora o papel da oposição ao governo que está presente no seio das Casas Legislativas. Sem sua atuação, a legislação periga ficar limitada ao programa político-administrativo, conformando nada mais além disso. Os parlamentos têm como uma de suas funções a de ser o espaço em que são alcançados compromissos entre os diferentes interesses. Parece desnecessário comentar que ideias que negam tal posição são o gérmen de orientações autoritárias, ditatoriais ou antidemocráticas.

Avança-se para outro autor. Em mais um exemplo desse viés antiparlamentar, veja-se o fragmento a seguir, em que o professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho relaciona o fenômeno da "crise da lei" — caracterizado pela multiplicação das leis, que se tornam desvalorizadas, transitórias e daninhas para a sociedade — à "falência" dos parlamentos, os quais já não dariam conta das necessidades legislativas dos Estados contemporâneos. Eis as suas próprias palavras: "[os parlamentos] não conseguem, a tempo e a hora, gerar as leis que os governos reclamam, que os grupos de pressão solicitam. As normas que tradicionalmente pautam o seu trabalho dão — é certo — ensejo a delongas, oportunidade a manobras e retardamentos. Com isso, os projetos se acumulam e atrasam" [5].

Logo o diagnóstico avança para afirmar a incapacidade dos parlamentos: "Nem estão os Parlamentos, por sua própria organização, em condições de desempenhar, lentamente, mas a contento, a função legislativa. O modo de escolha de seus membros torna-os pouco frequentados pela ponderação e pela cultura, mas extremamente sensíveis à demagogia e à advocacia em causa própria. Os interesses não têm dificuldade em encontrar porta-vozes eloquentes, o bem comum nem sempre os acha. Por outro lado, o seu modo de trabalhar também é inadequado às decisões que deve tomar. Como, por exemplo, estabelecer um planejamento por meio do debate parlamentar?" [6].

Aqui vale registrar que os dois últimos autores que acabam de ser citados continuam sendo as referências mais indicadas para estudantes da graduação e pós-graduação sobre o processo legislativo. Como se vê, o desafeto aos parlamentos acompanha logo as primeiras lições nas universidades.

Em outros escritos, isso acontece ao mesmo tempo em que se enaltecem os juízes, inclusive quando, além de aplicar a lei, exercem opções políticas. Não à toa o voto da ministra Rosa Weber sobre a descriminalização do aborto na ADPF nº 442 tece alongadas considerações preliminares para justificar a (suposta) competência do Supremo Tribunal Federal para tomar uma decisão sobre o assunto no lugar do Congresso Nacional.

O pensamento antiparlamentar nem sempre é revelado claramente como nos exemplos anteriores, tampouco aparece sob a forma de palavras manifestamente críticas ou agressivas com os parlamentos. Por vezes vem articulado de forma sofisticada, empacotada em sua série de teorias que, embora não ataquem diretamente a instituição do Legislativo, tem como claro efeito a redução de seu poder e protagonismo.

Por exemplo, não passa desapercebido que, em um artigo sobre técnica legislativa, logo após comentar a respeito das funções das normas jurídicas, Gilmar Mendes se preocupa em imediatamente tecer considerações sobre a subsidiariedade da atividade legislativa — que, com razão, deve ser pautada no princípio da necessidade, devendo ser reconhecida a inconstitucionalidade das normas que estabelecem restrições dispensáveis à liberdade de ação. Daí o autor já emenda considerações sobre a vinculação normativa do legislador. Ou seja, a preocupação com colocar limites na sua atuação.

A generalização em praticamente todos os Estados contemporâneos do controle judicial de constitucionalidade das leis é um exemplo de pensamento antiparlamentar, paralelamente à ideia de vinculação do legislador aos direitos fundamentais e diversos valores materiais. É dizer, o pensamento antiparlamentar também trouxe contribuições, hoje amplamente recepcionadas, mas cujos primeiros desenvolvimentos doutrinários tinham por objeto a crítica a um "absolutismo parlamentar".

Quando Peter Häberle publica sua tese de doutorado "A garantia do conteúdo essencial do art. 19.2 da Lei Fundamental. Uma contribuição à compreensão institucional dos direitos fundamentais à doutrina da reserva de lei (Die Wesensgehaltgarantie des Art. 19 Abs. 2 Grundgesetz: Zugleich ein Beitrag zum institutionellen Verständnis der Grundrechte und zur Lehre vom Gesetzesvorbehalt)" em 1962, o pano de fundo da Alemanha é a concepção de que o legislador era o principal inimigo dos direitos fundamentais, o que é afirmado textualmente pelo próprio autor.

Em Portugal, José Joaquim Gomes Canotilho também registra a influência da necessidade de vincular o legislador com seu Constituição dirigente e vinculação do legislador publicado em 1976.

Outras realizações que podem ser creditadas ao pensamento antiparlamentar são a nova posição da Constituição em relação às leis, os poderes do presidente da República como contrapeso ao Poder Legislativo, a ampla atividade da administração pública, o surgimento de ideias como a "reserva de Administração" (um espaço excluído da intervenção do legislador), etc. Todas essas aplicações práticas têm em alguma medida (embora não se devam exclusivamente a) uma inspiração antiparlamentar.

Na verdade, é o pensamento antiparlamentar que dá origem à formação de praticamente todo o Direito Público na Europa no final do século 19 e início do século 20, como aponta José Esteve Pardo [7]. No Brasil, como se vai vendo, não é muito diferente.

Por aqui, vemos contemporaneamente as projeções de um pensamento antiparlamentar, que pode ser associado à tendência de exigir maior procedimentalização como requisito para a validade da legislação, bem como à advocacia de espaços de "reserva de regulação", de atuação exclusiva das agências reguladoras, imunes à atuação do legislador.

Como já está acabando o espaço da coluna de hoje, esse ponto ficará para desenvolvimento em texto seguinte. Mas já é possível adiantar que subjaz à defesa de uma "reserva de regulação" a premissa de que agências reguladoras seriam necessariamente mais aptas para as matérias técnicas atinentes à regulação. Como se esses entes não contassem com seus próprios problemas institucionais, em especial o processo de tomada decisões envolvendo escolhas em matéria de política, moral e ideologia com elevados déficits de accountability.

A verdade é que não existem instituições perfeitas.

Agora, a postura acadêmica que vem permeando a literatura brasileira de só criticar os parlamentos, sem propostas mais construtivas, precisa ser melhor examinada. As premissas do pensamento antiparlamentar devem ser mais debatidas. Há toda uma agenda de pesquisa a ser construída para, por exemplo, procurar entender por que tais ideias críticas aos parlamentos não encontraram ressonância nos Estados Unidos (ao menos majoritariamente) ou no Reino Unido (onde a ideia de soberania parlamentar ainda se encontra relativamente forte). Ou para pensar reformas possíveis, em lugar de simplesmente alimentar o pensamento antiparlamentar no direito brasileiro e europeu continental. A ver como serão desenvolvidos os estudos nos próximos tempos e se haverá o resgate do ideal da dignidade da legislação.

 


[1] BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 5, Número Especial, p. 23-50, 2015, p. 39.

[2] SILVA, José Afonso. Processo constitucional de formação das leis. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 152-153.

[3] Idem, p. 153.

[4] Idem, ibidem.

[5] FERREIRA FILHO, Manoel. Do processo legislativo. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 36.

[6] Idem, p. 36-37.

[7] ESTEVE PARDO, José. El pensamiento antiparlamentario y la formación del Derecho Público en Europa. Madrid: Marcial Pons, 2019.

Autores

  • é professora adjunta na Universidade de Brasília (UnB), advogada do Senado Federal, doutora em Direito pela Universidade de Alicante (Espanha), doutora e mestre em Direito pela UnB e professora do Curso de Especialização Bases para una Legislación Racional na Universidade de Girona (Espanha).

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