Opinião

Súmula 665/STJ é escudo em potencial contra a distorção democrática?

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16 de fevereiro de 2024, 15h10

Recentemente o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 665, a qual dispõe sobre o controle jurisdicional de processo administrativo disciplinar, definindo que a intervenção judicial nessas causas restringe-se ao exame da regularidade do procedimento e da legalidade do ato, à luz dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, não sendo possível incursão no mérito administrativo, ressalvadas, contudo, as hipóteses de flagrante ilegalidade, teratologia ou manifesta desproporcionalidade da sanção aplicada.

A despeito de afetar processos disciplinares de modo geral, referida súmula goza de maior relevância para processos de cassação de mandato de prefeitos e vereadores.

Nesse sentido, o Decreto-lei 201/67, além de tipificar crimes de prefeitos, também regula as infrações político-administrativas dos prefeitos municipais sujeitas ao julgamento pela Câmara dos Vereadores e sancionadas com a cassação do mandato e estipula regras de procedimento; a norma também prevê hipóteses pontuais em que o vereador poderá ter seu mandato cassado, sendo que, no entanto, os procedimentos e infrações parlamentares em que estão estão inseridas as hipóteses de quebra de decoro parlamentar são reguladas por norma específica do legislativo.

Com efeito, as garantias legais e constitucionais do processo de cassação de mandato (devido processo legal, contraditório e ampla defesa) existem não só para proteção do direito individual do eleito, mas, sobretudo, para garantir também a preservação do princípio democrático.

Em respeito ao voto popular, tal punição deve resultar de procedimento que observe com rigor as exigências legais (MS 25.647 MC, relator: Carlos Britto, relator p/ acórdão: Cezar Peluso, Tribunal Pleno, j. em 30/11/2005).

Aliás, tendo por base a primazia do princípio democrático, o Supremo Tribunal Federal entende que normas constitucionais atinentes aos princípios da soberania popular, democrático e republicano são de reprodução obrigatória aos estados e municípios, já que tangem às balizas estruturantes do Estado democrático de Direito (STF – ADI: 7.253 AC, relatora: Cámen Lúcia, julgamento: 22/5/2023, Tribunal Pleno, data de publicação 06-06-2023).

Desrespeito ao sufrágio
Um ponto polêmico sobre a questão, porém, reside na feição do ato praticado pelo Parlamento nos processos de cassação de mandatos de prefeitos e vereadores. De fato, o Legislativo tem certa margem de discricionariedade para julgamento e aplicação da reprimenda que entender escorreita, que terá natureza de ato interna corporis, não suscetível de revisão judicial.

O problema é o seguinte: esses são processos essencialmente políticos, de modo que os votos pela cassação ou não do denunciado não são dados ante a convicção do parlamentar quanto aos fatos objetos da denúncia, mas seguindo critérios políticos, o que, sem dúvidas, deságua em inúmeras cassações injustas, arbitrárias e atentatórias ao princípio democrático, pois revela desrespeito ao resultado do sufrágio para impor contra os eleitores as convicções políticas e pessoais dos vereadores.

O uso de meios políticos para reduzir o peso da democracia representativa com cassações sem sentido vem do fato de que várias infrações puníveis com perda de mandato têm definições muito fluidas e sem um recorte muito objetivo, permitindo encaixe de todo tipo de conduta – por mais que nem sempre ética ou moralmente reprováveis – em conceitos como “quebra de decoro parlamentar”.

Resultado da equação: Câmaras, por meio da maioria de seus parlamentares de todo o país, sentem-se no direito absoluto de provocar situações contra parlamentares menos expressivos ou que “atrapalham” a “harmonia” do Legislativo com posições contrárias a algumas maiorias em determinadas temáticas, para “cavar” um decreto de perda de mandato; o mesmo ocorre com prefeitos que perdem apoio da edilidade. Logo sofrem denúncias que ensejam perda de mandato — e, com isso, a força do voto popular vai minguando pouco a pouco.

Conquanto pese tal realidade, “A aplicação da pena, em face do sistema normativo brasileiro, não pode converter-se em instrumento de opressão”, tampouco “traduzir exercício arbitrário de poder, eis que o magistrado sentenciante, em seu processo decisório, está necessariamente vinculado aos fatores e aos critérios”, os quais “limitam-lhe a prerrogativa de definir a pena aplicável” (HC 98.729, rel.: min. Ayres Britto, j. 25-5-2010, 1ª T, DJE de 25-6-2010).

Súmula 665/STJ impõe freio
Nesse cenário de uso político desmedido de processos de cassação, a sobrevinda da Súmula 665/STJ ganha lugar especial em nosso sistema jurídico justamente para impor freio e controle — por meio do sistema checks and balances — a casos em que há manifesta violação do princípio democrático por parlamentares alinhados a seus interesses e convicções pessoais, inúmeras vezes desligadas do interesse e confiança da população que os elegeu. Sua eficácia transcende as barreiras jurídicas para confrontar um cenário político em que a arbitrariedade e os interesses pessoais muitas vezes se sobrepõem à vontade popular.

A democracia não pode ser subjugada por manobras políticas disfarçadas de legalidade. É imprescindível que a aplicação das leis e das punições seja pautada pela justiça e pela verdadeira representatividade, evitando que a voz do povo seja silenciada por conveniências partidárias ou ideológicas. Somente assim poderemos afirmar que a democracia não é apenas um ideal a ser alcançado, mas uma realidade palpável e respeitada em todas as instâncias do poder.

Autores

  • é bacharel em Direito, pós-graduando em Direito Administrativo pelo Damásio, especialista na Lei de Improbidade Administrativa e associado do escritório Vilela, Miranda & Aguiar Fernandes Advogados.

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