Opinião

Rebaixamento dos municípios no exercício de sua autonomia no pacto federativo

Autor

  • Alberto Macedo

    é mestre e doutor em Direito Econômico Financeiro e Tributário pela USP MBA em Gestão Pública Tributária pela Fundação Dom Cabral (FDC) professor Insper e Fipecafi assessor especial da Secretaria Municipal da Fazenda de SP representante de SP na Câmara Técnica Permanente da Abrasf membro do Conselho de Altos Estudos de Finanças e Tributação da ACSP e ex-subsecretário da Receita Municipal de SP.

27 de novembro de 2023, 15h01

Mesmo como servidor público de administração tributária que poderá estar eventualmente envolvido no necessário processo de tentativa de construção do novo modelo de tributação do consumo no Brasil, não posso, como professor, estudioso e aplicador do direito econômico, financeiro e tributário, deixar de registrar considerações que reputo importantes para os municípios, mormente para os interesses da maioria da população brasileira, que mora na minoria das cidades — municípios médios e grandes —, particularmente a população que mais demanda serviços públicos locais, nesse país desigual chamado Brasil.

Consideremos município médio ou grande aquele com população superior a 80 mil habitantes. Apesar de serem somente 406 municípios (7,3% do total de municípios), estes representam mais de 60% da população brasileira.

Todos somos a favor de uma reforma que simplifique o sistema tributário. Mas, infelizmente, como o enfoque principal da PEC 45 foi a transferência de carga entre setores, e não a simplificação, o método que foi utilizado — em vez de desenhar um bom diagnóstico e atacar os principais pontos problemáticos do sistema tributário do consumo — foi, com todos os riscos que isso acarreta, o de dividir para conquistar, como bem registrou José Roberto Afonso et all no artigo “Uma proposta de discórdia federativa e empresarial”[1]. Indústria e bancos versus comércio, serviços e agropecuária. Estados versus municípios. Municípios pequenos versus municípios médios e grandes.

Pretendo, no presente artigo, de forma sucinta, trazer dados e análises objetivos relativos a essa última divisão e aos danos aos municípios em geral para contribuir com o debate quanto ao prejuízo ao pacto federativo brasileiro, com enfoque municipalista. Esses prejuízos poderiam ser mitigados ainda na Câmara dos Deputados, mas é improvável que isso ocorra.

As principais inconstitucionalidades, por serem medidas tendentes a abolir a forma federativa de Estado (artigo 60, § 4º, I, da Constituição), da PEC para com os municípios em geral são: (i) a desconsideração do potencial de crescimento do ISS no cálculo da alíquota de referência municipal; e (ii) a manutenção da cota-parte de IBS estadual num imposto de competência compartilhada.

No tocante aos municípios médios e grandes, tais inconstitucionalidades se destacam em dois aspectos: (i) alíquota de referência única, independentemente da arrecadação presente do ISS de cada Município; e (ii) regra de composição do comitê gestor do IBS. Este último ponto será tratado em artigo posterior, que abordará as questões federativas estaduais e municipais quanto ao comitê gestor.

Inconstitucional desconsideração do potencial de crescimento do ISS no cálculo da alíquota de referência municipal do IBS
Com a PEC 45, um dos prejuízos aos municípios se dá por entregar o imposto mais bem administrado [2] e, por conseguinte, o que mais cresce no país [3] e receber de volta uma base tributável mais complexa de controlar (débito e crédito no modelo IVA), ainda mais com a maior alíquota do mundo, e sem o potencial de crescimento do ISS. A previsão é que a perda desse potencial seja da ordem de R$ 490 bilhões até 2045 para os Municípios no agregado [4].

Dentre os 5.570 municípios, mais de 3.050 tiveram, no período de 2017 a 2021, um crescimento de ISS maior que o crescimento do ICMS no Estado correspondente [5]. Pela elasticidade do aumento da arrecadação do ISS com investimento em fiscalização no combate à sonegação, tal ganho seria facilmente factível em uma quantidade maior ainda de municípios, ainda mais com a NFS-e Nacional implementada.

Esse crescimento desaparece com a extinção do ISS na PEC 45 e deveria ser devidamente compensado. Inclusive, no período 2004 a 2021, a taxa de crescimento do ISS foi maior nas cidades menores do que nas maiores (cidades: até 20 mil habitantes: 8,6%; de 20 mil a 50 mil: 8,8%; de 50 mil a 100 mil: 8,7%. Média no total de municípios: 6,9%) [6].

A perda dessa taxa de crescimento nas cidades menores reduz sua autonomia e fomenta mais ainda as marchas de prefeitos a Brasília, com a busca por mais transferência constitucional via FPM. Quem ganha com isso?

A longa transição, procurando amenizar por décadas as perdas dos municípios, não resolve a referida esterilização do potencial de crescimento, que decorreu de décadas de investimento, pelos municípios que buscaram aprimorar sua autonomia, em suas administrações tributárias, nem é compensada pela mudança no critério de cota-parte previsto para a alíquota estadual do IBS, que faz preponderar o critério populacional (80% do montante da cota-parte), em prejuízo do atual critério de valor adicional (65%, no mínimo, do montante).

A inconstitucional manutenção da cota-parte no IBS estadual
A cota-parte, um dos mecanismos de transferência de receitas entre entes federativos de esferas diversas no contexto de federalismo integrativo, só se justifica quando o ente federativo agraciado não possui a competência tributária do imposto objeto da cota-parte, imposto este sob a competência tributária privativa de outro ente.

Como exemplos, temos, da União para os estados, 30% da arrecadação do IOF-Ouro (artigo 153, § 5º, I); da União para os municípios, 50% da arrecadação do ITR (artigo 158, II); e, dos estados para os municípios, 50% da arrecadação do IPVA (artigo 158, III) e 25% da arrecadação do ICMS (artigo 158, IV).

Não faz o menor sentido — a não ser contribuir para a subjugação dos Municípios aos Estados correspondentes — a permanência do mecanismo da cota-parte na arrecadação estadual do IBS. Isso porque o IBS não será de competência privativa dos Estados, e sim compartilhada com os Municípios, como inclusive fez questão de frisar o relator da PEC 45 no Senado, ao acrescentar o termo “compartilhada” no texto, adjetivando a competência do IBS ali prevista. Portanto, o valor correspondente a essa cota-parte deve ser recalculado para ser incorporado na alíquota municipal do IBS.

Lembremos que as alíquotas de referência estadual e municipal do IBS são aquelas que, incidindo sobre as operações com bens e serviços, devolvem aos estados e aos municípios a arrecadação, respectivamente, de ICMS e de ISS.

Considerando-se a arrecadação, em 2022, de R$ 709 bilhões de ICMS[7], 25% desse valor, ou seja, R$ 177,3 bilhões, percentual que hoje já é transferido aos Municípios, deveriam ser computados como receita municipal no ordenamento atual para fins de se definir a alíquota de referência municipal do futuro IBS no novo ordenamento. A manutenção de 10% com base em indicadores de melhoria de ensino (artigo 158, § 2º, II) e de 5% com base em indicadores de preservação ambiental (artigo 158, § 2º, III), como direcionadores da política estadual sobre os orçamentos municipais, e de 5% em montantes iguais para todos os Municípios (artigo 158, § 2º, IV) são o limite do razoável para se manterem como cota-parte. Quanto maior o valor mantido como cota-parte, ou seja, como receita transferida num imposto de competência compartilhada, maior a tendência a abolir o pacto federativo.

A inconstitucional alíquota de referência municipal única do IBS
No Brasil, consoante o critério receita corrente [8] per capita, não há desigualdade de receitas entre município pequeno e município grande, como sugerido, por exemplo, pelo texto para discussão nº 2.530 do Ipea [9], uma das fontes utilizadas pelos autores da PEC 45 como justificativa para repartir a receita do ISS em direção aos municípios menores pelo mecanismo da alíquota de referência municipal única do IBS.

Pelo contrário, em 2021, a receita corrente per capita dos municípios até 20 mil habitantes já foi maior (R$ 4.293,07) que a dos municípios de todas as faixas populacionais maiores. Inclusive com tendência de crescimento maior nas faixas até 100 mil habitantes. [10]

HabitantesReceita corrente per capita – 2021 em R$ corrigidos pelo IPCA médio de 2021Taxa de crescimento real da receita corrente per capita por faixa populacional – 2021/2002
Até 20 mil4.293,07133,8%
De 20 mil a 50 mil3.637,76137,3%
De 50 mil a 100 mil3.665,26145,8%
De 100 mil a 200 mil3.802,44114,9%
De 200 mil a 500 mil3.852,71101,9%
Acima de 500 mil4.129,7984,1%
Total dos Municípios3.942,22110,0%

Agravando essa iniquidade no lado das despesas, a população brasileira tem migrado, nos últimos 22 anos, das cidades pequenas para as médias e grandes. Nas cidades até 20 mil habitantes, a taxa de crescimento populacional foi negativa de 2000 a 2022, com destaque para os municípios com faixa populacional entre 5.000 e 10.000 habitantes, cujo decréscimo foi de 11,1% no período.

No outro extremo, o aumento populacional entre 2000 e 2022 foi elevado nas cidades médias e grandes, com destaque para as com população entre 200 mil e 500 mil habitantes, com crescimento populacional de 47,8% no período. Naturalmente, esse movimento demográfico é acompanhado de aumento das despesas correntes.[11]

A PEC 45 agrava esse cenário, em prejuízo da população das cidades médias e grandes que demanda mais serviços básicos das prefeituras, ao promover o movimento de receitas para as cidades que já possuem receita corrente per capita maior e cuja despesa corrente per capita vem caindo, por duas formas: (i) mudança da tributação na origem para no destino; e (ii) atribuição de uma alíquota de referência municipal única de IBS para todos os municípios, independentemente do seu tamanho.

Focando na segunda forma, se a alíquota de referência municipal do IBS é aquela que, incidindo sobre as operações com bens e serviços, devolve, aos Municípios, a arrecadação municipal com o ISS, a adoção de uma alíquota de referência municipal única de IBS é uma forma deliberada de transferir receitas de IBS, já na partida, dos municípios médios e grandes para os municípios menores, que hoje já possuem receita corrente per capita maior.

A tabela a seguir[12] já dá uma ideia de uma alíquota de referência municipal mais justa por faixa populacional. Mas a real medida de justiça para espancar essa inconstitucionalidade seria a previsão de que cada município partiria da alíquota de referência relativa à sua real arrecadação de ISS.

Cidades por faixa populacionalQuant. de Mun. por faixaAlíquota média municipal
Maior que 2,5 milhões36,4%
De 1 milhão a 2,5 milhões122,9%
De 700 mil a 1 milhão132,5%
De 500 mil a 700 mil132,1%
De 300 mil a 500 mil502,2%
De 100 mil a 300 mil2281,7%
De 50 mil a 100 mil3371,3%
De 20 mil a 50 mil1.0540,9%
De 10 mil a 20 mil1.3630,7%
Menor que 10 mil2.4930,7%
Total5.5662,2%

Além de conferir ônus político para os prefeitos e câmaras municipais das cidades médias e grandes, que para manter seus orçamentos municipais, e consequentemente a prestação dos serviços públicos locais, tentarão aumentar suas alíquotas municipais próprias de IBS, o mecanismo de alíquota de referência municipal única de IBS contribui para o aumento de carga tributária global. Isto porque os municípios menores, que não arrecadavam, de ISS, o equivalente a 2% de alíquota municipal de IBS, não abaixarão suas alíquotas; enquanto os municípios maiores, para tentarem manter seu orçamento, deverão aumentar as suas.

Além dessa forma de aumento de carga tributária global, outra já está acontecendo, mesmo antes de a PEC 45 ter sido aprovada. No âmbito estadual, pelo menos 17 estados já aumentaram sua alíquota modal de ICMS a fim de aumentar seu índice de participação quando da apuração da receita média de ICMS no período de 2024 a 2028 [13]. Esse movimento dos estados certamente será seguido pelos Municípios, no tocante ao ISS.


[1] Afonso, José Roberto; Caiado, Aurílio; Viana, Murilo; Biasoto Junior, Geraldo. Revista Conjuntura Econômica, jul.2023. Disponível em <https://ibre.fgv.br/blog-da-conjuntura-economica/temas/sumario>. Acesso em 02.08.2023.

[2] Indícios fortes nesse sentido são as pesquisas da CNI que constatam que o ISS é, de longe, o menos problemático dos tributos sobre o consumo: Desafios à Competitividade das Exportações Brasileiras. Brasília: CNI, 2022. 75 p.; Sondagem especial. Ano 19, n. 73. mar.2019. Brasília: CNI, 2019.

[3] O exposto por Gobetti, Sérgio W. É verdade que o ISS é o “imposto do futuro”? Análise de sua trajetória e base de cálculo em comparação ao ICMS. Observatório de Política Fiscal FGV/IBRE. 1 dez. 2020. Disponível em: https://observatorio-politica-fiscal.ibre.fgv.br/reformas/tributacao/e-verdade-que-o-iss-e-o-imposto-do-futuro-analise-de-sua-trajetoria-e-base-de foi devidamente contraposto por Castro, Kleber Pacheco de. Imposto do futuro? Considerações sobre ISS e a base de serviços. In: Revista Conjuntura Econômica, v.74, n.12, dezembro de 2020. Disponível em https://portalibre.fgv.br/sites/default/files/2020-12/12ce2020-kleber-pacheco.pdf , p.24-29.

[4] GT Reforma Tributária da Secretaria Municipal da Fazenda de São Paulo (GTRT-SP).

[5] GTRT-SP.

[6] Fonte: Multi Cidades – Finanças dos Municípios do Brasil/Publicação da Frente Nacional de Prefeitos. V18 (2023). Vitória, ES: Aequus Consultoria, 2022. Disponível em <https://multimidia.fnp.org.br/biblioteca/documentos/item/1009-multicidades-ano-18-2023>. Acesso em 23.09.2023.

[7] Inclui receita de dívida ativa, parcelamentos, multas e juros.

[8] Segundo o § 1º do art. 11 da Lei nº 4.320 de 1964, “são Receitas Correntes as receitas tributária, de contribuições, patrimonial, agropecuária, industrial, de serviços e outras e, ainda, as provenientes de recursos financeiros recebidos de outras pessoas de direito público ou privado, quando destinadas a atender despesas classificáveis em Despesas Correntes”.

[9] Orair, Rodrigo Octávio; Gobetti, Sérgio Wulff. Texto para discussão / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Brasília: Rio de Janeiro: Ipea, 1990- . Reforma tributária e federalismo fiscal: uma análise das propostas de criação de um novo imposto sobre o valor adicionado para o Brasil. Disponível em <https://portalantigo.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/TDs/td_2530_web.pdf>. Acesso em 23.08.2023.

[10] Fonte: Multi Cidades – Finanças dos Municípios do Brasil/Publicação da Frente Nacional de Prefeitos. V18 (2023). Vitória, ES: Aequus Consultoria, 2022. Disponível em <https://multimidia.fnp.org.br/biblioteca/documentos/item/1009-multicidades-ano-18-2023>. Acesso em 23.08.2023.

[11] Aequus Consultoria com base no Censos populacionais – IBGE.

[12] GTRT-SP. Quando calculávamos a alíquota de referência municipal em 2,2%.

[13] Reforma tributária abre guerra entre estados para elevar arrecadação. Maristela Brunetto. 16.11.2023. Campo Grande News. Disponível em < https://www.campograndenews.com.br/economia/reforma-tributaria-abre-guerra-entre-estados-para-elevar-arrecadacao>. Acesso em 19.11.2023.

Autores

  • é mestre e doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP, MBA em Gestão Pública Tributária pela Fundação Dom Cabral (FDC), professor Insper e Fipecafi, assessor especial da Secretaria Municipal da Fazenda de SP, representante de SP na Câmara Técnica Permanente da Abrasf, membro do Conselho de Altos Estudos de Finanças e Tributação da ACSP e ex-subsecretário da Receita Municipal de SP.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!