Observatório Constitucional

Liberdade de expressão no contexto eleitoral na jurisprudência do STF

Autores

  • Daniel Falcão

    é controlador geral do município e encarregado pela proteção de dados da Prefeitura de São Paulo advogado cientista social professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) doutor mestre e graduado pela Faculdade de Direito da USP pós-graduado em Marketing Político e propaganda Eleitoral pela ECA/USP e graduado em Ciências Sociais pela FFLCH/USP.

  • Marina Morais

    é advogada professora e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás (UFG).

25 de novembro de 2023, 8h00

A Constituição de 1988, que acaba de completar seus 35 anos, dentre os inúmeros progressos em direitos e garantias fundamentais, ocupou-se de garantir, de forma expressa, a inviolabilidade do direito à liberdade, sobretudo, aquela referente à livre manifestação do pensamento, prevista em seu artigo 5º, IV.

Em que pese o prestígio do texto constitucional a outras liberdades, como a de locomoção, associação, dentre outras, como menciona Luís Roberto Barroso, “[se] entende que as liberdades de informação e de expressão servem de fundamento para o exercício de outras liberdades, o que justifica uma posição de preferência — preferred position — em relação aos direitos fundamentais individualmente considerados” [1].

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Com efeito, é a liberdade de expressão que garante ao cidadão um espaço de debate público fértil, pressuposto para o bom funcionamento da democracia, que apenas se desenvolve em um ambiente de total visibilidade e possibilidade de exposição crítica das mais variadas opiniões.

Esse contexto promove uma extensa intersecção entre a liberdade de expressão e o princípio democrático, no sentido em que perfectibiliza a discussão e a ampla participação política. Nas palavras de Alexandre de Moraes, “a liberdade de discussão, a ampla participação política e o princípio democrático estão interligados com a liberdade de expressão, que tem por objeto não somente a proteção de pensamentos e ideias, mas também opiniões, crenças, realização de juízo de valor e críticas a agentes públicos, no sentido de garantir a real participação dos cidadãos na vida coletiva” [2].

Por essa razão, a liberdade de expressão no contexto das disputas eleitorais visitou com alguma frequência os debates da Suprema Corte brasileira, ocupando-se o presente artigo de sublinhar as principais premissas estabelecidas pelo intérprete da Constituição sobre a matéria ao longo destes 35 anos. Afinal, já é possível afirmar, sem exagero ou excesso retórico, que existe no Brasil uma verdadeira “jurisprudência constitucional” sobre a liberdade de expressão, especialmente quando estão em jogo os direitos e garantias que informam o processo eleitoral.

Um caso paradigmático em que o STF tomou posição sobre a defesa da liberdade de expressão em matéria de propaganda eleitoral foi relatado pela ministra Cármen Lúcia, no ano de 2020. Na ADPF 548 [3], a Corte reconheceu a inconstitucionalidade de interpretação dos artigos 24 e 37 da Lei n. 9.504/1997 (Lei das Eleições) que conduza a atos judiciais ou administrativos que possibilitem, determinem ou promovam ingresso de agentes públicos em universidades públicas e privadas, recolhimento de documentos, interrupção de aulas, debates ou manifestações de docentes e discentes universitários, a atividade disciplinar docente e discente e coleta irregular de depoimentos.

 Como consignou o então ministro Ricardo Lewandowski em seu voto, naquela ocasião, “os espaços universitários são lugares de excelência para o exercício de tais liberdades públicas e para o engajamento político, contribuindo decisivamente para o desenvolvimento da democracia deliberativa”.

Nessa mesma linha, oferecendo reiterado contraponto à defesa da constitucionalidade das restrições em matéria de propaganda eleitoral promovidas pelas resoluções do TSE, o STF já declarou inconstitucional o artigo 35-A, incluído na Lei das Eleições pela minirreforma aprovada pelo Congresso Nacional no ano de 2006 (Lei nº 11.300), que proibia a divulgação de pesquisas eleitorais no período entre quinze dias antes, até as 18 horas do dia do pleito.

A inconstitucionalidade, assentada na ADI 3.741[4] pelo relator, então ministro Ricardo Lewandowski, foi aquilatada a partir do reconhecimento de ofensa à garantia da liberdade de expressão e do direito à informação livre e plural no Estado Democrático de Direito.

A mesma ratio decidendi apareceria anos mais tarde, na ADI 4.451 [5], julgada em 21 de junho de 2018. Sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes, o STF estabeleceu a inconstitucionalidade de dispositivos normativos que estabeleçam prévia ingerência estatal no direito de criticar durante o processo eleitoral, notadamente quando materializadas por intervenções satíricas ou humorísticas.

Em convivência com a firme posição pela impossibilidade de intervenção prévia no conteúdo das propagandas eleitorais, a Corte Constitucional também julgou, em mais de uma oportunidade, pela possibilidade de regulamentação da propaganda eleitoral pelo Tribunal Superior Eleitoral, por meio de resoluções.

Em maio de 2018, no julgamento da ADI 5.122 [6], sob relatoria do ministro Edson Fachin, o STF assentou a constitucionalidade do artigo 25, §2º, da Resolução TSE nº 23.404/2014, que vedou a veiculação de propaganda política por meio de telemarketing.

Na ocasião, o que tem importantes implicações federativas, o Supremo não considerou materializada usurpação de competência do Congresso para legislar sobre Direito Eleitoral, reafirmando a competência do TSE para editar Resoluções com vistas a resolver, de forma rápida e eficiente, questões necessárias ao regular processo eleitoral.

Em julgamento mais recente, referendando o indeferimento da Medida Cautelar na ADI 7.261 [7], em outubro de 2022, a Corte Constitucional assentou a ausência de fumus boni iuris na alegação de inconstitucionalidade da Resolução TSE nº. 23.714/2022, vocacionada ao enfrentamento da desinformação.

Nos termos do entendimento do relator, ministro Edson Fachin, a Resolução TSE nº 23.714/2022 não consiste em exercício de censura prévia, uma vez que “a disseminação de notícias falsas, no curto prazo do processo eleitoral, pode ter a força de ocupar todo espaço público, restringindo a circulação de ideias e o livre exercício do direito à informação”.

Para o ministro, o fenômeno da desinformação veiculada por meio da internet, caso não fiscalizado pela autoridade eleitoral, tem o condão de restringir a formação livre e consciente da vontade do eleitor.

Na mesma linha, em 2022, na ADI 6.281 [8], sob Relatoria do ministro Luiz Fux, o STF reconheceu a constitucionalidade das limitações legais à propaganda eleitoral paga em impressos e internet, entendendo pela inexistência de ofensa aos princípios da democracia, da República e do pluralismo político, tampouco aos postulados da liberdade de iniciativa e da liberdade de concorrência quando impostas dentro da razoabilidade e da proporcionalidade.

Na ocasião, o Supremo ponderou que as restrições quanto às propagandas onerosas, pagas predominantemente com recursos públicos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), estão mais direcionadas para a forma do gasto do Fundo Eleitoral do que propriamente para a disciplina de liberdades constitucionais.

Sobre o tema dos gastos eleitorais, encarados em eventual contrapartida à liberdade de expressão, a Corte Constitucional também se posicionou no bojo da ADI 5.970 [9], que revisitava a proibição de showmícios. Após os contornos pandêmicos das eleições de 2020, que inauguraram a figura das livemicios (espécie de showmício online), a matéria, sob relatoria do ministro Dias Toffoli, foi levada à apreciação da Corte Suprema, ocasião em que, mais uma vez, a regulação da propaganda sob o viés do gasto e de eventuais desequilíbrios não foi considerada como apta a restringir o campo de abrangência da liberdade de expressão nas campanhas eleitorais.

Este panorama normativo nos mostra, de maneira bastante sucinta e até mesmo esquemática, a posição privilegiada de que goza, na jurisprudência constitucional, a proteção da liberdade de expressão, especialmente no contexto eleitoral. Dessa forma, é possível indicar, conclusivamente, que, no entendimento cada vez mais maciço do STF, a todo e qualquer dispositivo normativo que possa restringir o âmbito de abrangência do direito fundamental à liberdade de expressão deve ser dada a leitura constitucional mais correta diante de valores de máxima envergadura que com ele podem colidir. É certo que não há uma vedação direta e automática a esse tipo de dispositivo na ordem constitucional brasileira, mas, por outro lado, é igualmente correto afirmar que caminha o STF para o entendimento de que tal categoria de normas deve sempre passar por certo “filtro constitucional de proporcionalidade”, até mesmo para que se alcance, em sua dimensão substancial, a máxima proteção possível à ordem democrática, à liberdade de expressão e de pensamento, à liberdade acadêmica e à autonomia universitária em sua dimensão didático-científica.


[1] BARROSO, Luís Roberto. Liberdade de expressão versus direitos da personalidade. Colisão de direitos fundamentais e critérios de ponderação. In: “Temas de direito constitucional – tomo III”. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 105-106

[2] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2021. p.58-59.

[3] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tribunal Pleno. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 548. Relatora: ministra Cármen Lúcia. Brasília, julgado em 15/05/2020, publicado em 09/06/2020.

[4] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tribunal Pleno. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.741. Relator: ministro Ricardo Lewandowski. Brasília, julgado em 06/08/2006, publicado em 23/02/2007.

[5] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tribunal Pleno. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.451. Relator: ministro Alexandre de Moraes. Brasília, julgado em 21/06/2018, publicado em 06/03/2019.

[6] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tribunal Pleno. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.122. Relator: ministro Edson Fachin. Brasília, julgado em 03/05/2018, publicado em 20/02/2020.

[7] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tribunal Pleno. Referendo na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.261. Relator: ministro Edson Fachin. Brasília, julgado em 26/10/2022, publicado em 23/11/2022.

[8] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tribunal Pleno. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.281. Relator: ministro Luiz Fux. Relator para Acórdão: Ministro Nunes Marques. Brasília, julgado em 17/02/2022, publicado em 26/05/2022.

[9] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tribunal Pleno. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.970. Relator: ministro Dias Toffoli. Brasília, julgado em 07/10/2021, publicado em 08/03/2022.

Autores

  • é professor, advogado, cientista social, doutor e mestre em Direito do Estado e graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD/USP), pós-graduado em marketing político e propaganda eleitoral pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), graduado em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), controlador geral do município de São Paulo (CGM/SP) e encarregado pela proteção de dados pessoais da Prefeitura de São Paulo.

  • é advogada, professora e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás (UFG).

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