Escritos de Mulher

Violência, misoginia, representatividade e democracia

Autor

  • Maíra Recchia

    é advogada graduada em Direito pela PUC Campinas presidente do Observatório Eleitoral da OAB Seccional de São Paulo diretora para Relações Institucionais do Iasp e membra do Conferencia Americana de Organismos Electorales Subnacionales por la Transparencia Electoral (Caoeste) integrante da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e do MeToo Brasil consultora do Política de Saias e membra da Comissão Feminista da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas (Abrat) da Rede Feminista de Juristas (deFEMde) da União de Mulheres Advogadas (UMA) da Associação Brasileira de Mulheres em Carreiras Jurídicas (ABMCJ) e do coletivo Advogadas do Brasil (CAB).

22 de novembro de 2023, 8h00

O Brasil continua sendo um dos países que mais pratica violência contra mulheres, embora tenha sucessivas legislações que visam corrigir a conhecida disparidade de direitos, oportunidades e proteção àquelas que são a maior parte de sua população.

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A advogada Maíra Recchia

Se até 2006 a briga entre marido e mulher era considerada de âmbito privado, com o advento da lei Maria da Penha essa discussão ganhou contornos de domínio público, e a partir dali conceitos como violência física, sexual, psicológica, moral e financeira receberam aparato estatal como forma de prevenir, erradicar e punir essas condutas que atentam contra direitos humanos básicos de uma sociedade que se diga racional e organizada.

As inovações legislativas também avançaram no que diz respeito à proteção e protocolos, como a lei do minuto seguinte (2013), que trata do atendimento de vítimas de violência, do feminicídio (2015), trazendo uma qualificadora ao crime de homicídio, da importunação sexual (2018), para tentar coibir o toque indesejado nos corpos femininos, e finalmente à violência política de gênero (2021), que pretende fazer do espaço público e político um pouco menos hostil para nossas representantes.

Contudo, a verdade é que se escalamos com alguma qualidade na criação de leis que pretendem proteger mulheres é porque fatalmente fracassamos como sociedade que ambiciona ser fraterna e igualitária, a ponto de ser necessário termos regras que criminalizam práticas cultural e estruturalmente sexistas que ainda encontram eco na coletividade.

Muito mais do que eco, aliás, a prática de misoginia atualmente em pauta na discussão sobre virar ou não crime sustenta financeiramente uma camada econômica crescente que, pela disseminação de conteúdo de ódio às mulheres, lucra com cifras estratosféricas de monetização e engajamento.

Não fosse suficiente esse puro suco social de aversão às mulheres, as instituições por vezes replicam o inconsciente coletivo de ojeriza a tudo que nos envolve.

Se é verdade que a mulher tem que ser protegida em um país onde, segundo o último relatório divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada oito minutos uma mulher é estuprada e a cada seis horas uma mulher é morta, é bem verdade que o sistema também precisa estar sensível e alerta para identificar os marcadores de gênero nas disputas judiciais, na palavra da vítima e na forma com que seu estereótipo é lido no senso comum.

Não há mais espaço para a prática de violência institucional e/ou processual reprodutora de sistemática revitimização em uma lógica que, por vezes, ainda desacredita, silencia, ataca, assedia, censura e violenta mulheres as quais apenas clamam por segurança, dignidade e respeito.

A obrigatoriedade de aplicação da cartilha do CNJ para julgamentos com perspectiva de gênero e a Lei Mari Ferrer se traduzem em importante instrumento na correção de desigualdades que permeiam a disputa judicial. Contudo, enquanto a violência processual continuar sendo a tônica utilizada pelos operadores do Direito que litigam em lados opostos, pouco avançaremos.

Por essa razão, a resposta à Consulta 923/2023 em trâmite perante a OAB-BA é importante precedente no exercício da advocacia ao considerar infração disciplinar, passível da pena de suspensão de 30 dias a 12 meses, a prática de litigância abusiva, violência e/ou assédio processual.

Não por acaso esse olhar diferenciado para questões de gênero ganhou contornos maiores pelo fato de que pela primeira vez desde a sua fundação, referida entidade de classe tem sua primeira composição paritária quanto ao gênero tanto nos conselhos quanto nas diretorias eleitas.

Assim como não há mais espaço para teses estapafúrdias como legítima defesa da honra, tampouco há que se relevar arguições infundadas de alienação parental e conceitos pejorativos para além de uma disputa exacerbada que visa exclusivamente utilizar do processo judicial como forma de perpetuação da violência outrora experimentada tanto à vítima quanto às advogadas que encampam tais batalhas e sofrem com o dano colateral, ou ainda com a chamada lawfare de gênero.

Mas não é só. Para além dos regramentos atinentes à conduta ética da advocacia, e a necessária correção de disparidades no arcabouço do julgamento jurídico, também se faz indispensável termos garantia de representatividade efetiva das mulheres nos sistemas de poder.

Em um país onde, repita-se, a maior da população é composta por mulheres, não é crível que estas mesmas mulheres sejam alijadas do reconhecimento necessário de sua competência, apagadas das esferas de destaque público e tampouco não estejam sentadas nas mesas de tomada de decisão (ou quiçá nas alcovas dos bares e restaurantes onde tudo invariavelmente é discutido), seja do Executivo, Legislativo e Judiciário.

Por essa razão, e em homenagem ao direito fundamental à igualdade, é que políticas afirmativas como a necessária discussão acerca de reservas de cadeiras no Legislativo, obrigação de alternância de gênero no preenchimento de vagas para a segunda instância do Judiciário e ações de combate à misoginia e garantia de igualdade salarial lideradas pelo Executivo são importantes marcadores para se corrigir disparidades entre os gêneros e garantir a tão almejada igualdade material no recorte de direitos fundamentais mínimos.

É primordial que saiamos da condição de devedoras de uma sociedade que tanto nos desrespeita, invisibiliza, sexualiza, violenta e oprime para nos tornarmos credoras do nosso próprio trabalho intelectual, braçal e doméstico os quais, também por vezes, de maneira cruel e deliberada, nos limita.

Essa realidade apenas será transformada quando as mulheres tiverem condições reais de estarem juntas, uníssonas e não exaustas na certeza de que a ideia de poder ser uma mulher livre e independente é o maior ato de resistência que podemos praticar.

Se a violência nos atinge de casa ao trabalho, sem atalhos, é necessário que avancemos em maior representatividade feminina nos espaços de poder com ações concretas e efetivas para a correção desta desigualdade e voracidade social que nos assola.

A batalha por respeito, por acesso a direitos fundamentais, pelo poder de decidir e contra a violência invariavelmente além de atrair a evolução social, certamente também acarretará em uma democracia mais plural, diversa, destituída de marcadores de violência e preconceito se traduzindo ao final em um verdadeiro Estado Democrático de Direito muito mais sólido, próspero e fraterno.

Nada contra os homens, tudo a favor de mulheres — até que estejamos todas, inteiras, onde bem quisermos.

Autores

  • é advogada, graduada em Direito pela PUC Campinas, presidente do Observatório Eleitoral da OAB Seccional de São Paulo, diretora para Relações Institucionais do Iasp e membra do Conferencia Americana de Organismos Electorales Subnacionales por la Transparencia Electoral (Caoeste), integrante da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e do MeToo Brasil, consultora do Política de Saias e membra da Comissão Feminista da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas (Abrat), da Rede Feminista de Juristas (deFEMde), da União de Mulheres Advogadas (UMA), da Associação Brasileira de Mulheres em Carreiras Jurídicas (ABMCJ) e do coletivo Advogadas do Brasil (CAB).

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