Opinião

Assistência qualificada da vítima de violência doméstica

Autor

  • Luiz Gabriel de Oliveira e Silva Cury

    é advogado criminalista fundador do escritório LG Cury Advogados Associados graduado pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) pós-graduado em Criminologia Direito Penal e Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e pós-graduado em Criminologia Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Candido Mendes (Ucam) e membro da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas (Abracrim) e da Associação Nacional da Advocacia Criminal (Anacrim).

4 de abril de 2024, 17h17

Este artigo analisa a equivocada interpretação da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) por parcela do Poder Judiciário, sobretudo após movimento capitaneado pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e seguido por diversas outras defensorias.

A Lei 11.340/2006 estabeleceu, no Capítulo IV (rubrica “Da Assistência Judiciária” — artigo 27), a assistência jurídica à vítima de violência doméstica, devendo essa ser prestada por meio de advogado regularmente habilitado. Na sequência, o artigo 28 prevê assistência judiciária gratuita ou o acesso aos serviços da Defensoria Pública para aquelas que não puderem arcar com honorários advocatícios e/ou as custas judiciais.

Vejamos abaixo, na integra, os dispositivos legais citados:

“CAPÍTULO IV

DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA

Art. 27. Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no art. 19 desta lei.

Art. 28. É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado”.

Pode-se interpretar, pela leitura dos artigos acima transcritos, que o legislador positivo pensou apenas em proteger juridicamente a vítima, através da obrigatoriedade da constituição de um “advogado”, previsão esta similar ao que existe em ordenamentos jurídicos de outros países.

Um ótimo exemplo é o ordenamento jurídico do Reino da Bélgica, onde há a exigência legal de que todos os envolvidos em um processo penal (réu, vítima, testemunhas) sejam, obrigatoriamente, representados por advogados constituídos com essa finalidade específica, sendo tal fato muito bem representado no seriado, de mesma nacionalidade, Doze Jurados, veiculado no canal de streaming Netflix [1].

Assistência qualificada da vítima

É importante trazer à colação o Projeto de Lei nº 4.559/2004, que posteriormente deu origem à Lei 11.343/06 — que, ao tratar do tema, especificamente nos artigos 20 e 21, assim dispõe:

CAPÍTULO IVDA ASSISTÊNCIA JURÍDICA:

Art. 20. Em todos os atos processuais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado ou Defensor Público.

Art. 21. É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos termos da lei, mediante um atendimento específico e humanizado no Juízo competente, nas Delegacias de Polícia e núcleos de atendimento das Defensorias Públicas.”

Para mais, a própria exposição de motivos do PL acima referido:

“(…) A assistência jurídica integral e gratuita, aludida no art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal, refere-se ao conceito de assistência judiciária envolvendo serviços jurídicos não somente relacionados com a atividade processual, mas abrangendo serviços de orientação jurídica, aconselhamento ou informação dos direitos à comunidade. Desta forma, o Projeto prevê, nos artigos 20 e 21, a assistência judiciária à mulher em situação de violência doméstica como forma de garantir o seu acesso à justiça” [2].

Deste feita, é forçoso concluir que os artigos 27 e 28 da Lei 11.340/06 tão somente buscaram fixar o acesso das vítimas à assistência jurídica, sem desejar transformar ou criar a figura processual do “assistente qualificado”.

Aliás, esse também era o entendimento da doutrina especializada, logo no início da vigência da Lei Maria da Penha, sobre a previsão dos artigos 27 e 28, nos textos publicados sobre o tema. Nesse sentido, temos o artigo publicado nesta ConJur [3] pelo defensor público do estado do Rio de Janeiro Franklyn Roger Alves Silva, professor e autor renomado de livros sobre a temática processual pena e institucional [4].

Spacca

Entretanto, com passar do tempo, inexplicavelmente, algumas Defensorias Públicas espalhadas pelo país, após criarem a denominada “Defensoria Pública da Vítima”, rapidamente transformaram esse órgão de atuação em “Assistência Qualificada da Vítima”, não obstante a ausência de qualquer permissão ou previsão legal e evidente interpretação contra texto expresso da lei.

Outrossim, as Defensorias Públicas, em especial a do estado do Rio, passaram a interpretar o artigo 27 e 28 da Lei Maria da Penha como uma autorização para que elas atuassem em todos os processos da lei de ofício e independente de qualquer pedido da vítima.

Nesta toada, os advogados que militam na seara da violência doméstica, sobretudo no estado do Rio de Janeiro, passaram a se deparar com a denominada “assistência qualificada da vítima” por meio da Defensoria Pública, que passa a atuar nas ações penais em trâmites nos “Juizados Especiais de Violência Doméstica” de forma independente, sem qualquer requerimento ou manifestação da vítima.

Atuação incisiva

De mais a mais, essa figura estranha à legislação processual penal ainda começou a atuar de forma incisiva nas audiências, com perguntas à vítima, ao réu e às testemunhas, em total desacordo ao que prevê a lei e desequilibrando ainda mais a relação processual, em evidente quebra da paridade de armas.

O tema ganhou mais visibilidade em razão da divulgação do ocorrido na Ação Penal nº 0006946-45.2018.8.19.0036, em que o juiz do caso, corretamente, por duas vezes, anulou o depoimento prestado pela vítima [5], após constatar que a “Defensoria Pública da Vítima”, mesmo sem previsão legal, realizava perguntas à vítima e às testemunhas.

Vejamos o trecho da citada decisão no processo acima citado:

“Da análise detida dos autos, constato que, mais uma vez, houve vício insanável por ocasião da oitiva da vítima no juízo deprecado. E isso porque apesar do decidido por este magistrado a fls. 112, mais uma vez a defensoria que presta assistência à vítima formulou perguntas durante a instrução sem se habilitar como assistente de acusação. Aqui, devo anotar que o artigo 27 da LMP apenas concede às vítimas o direito à assistência judiciária nos atos processuais, o que, contudo, não é suficiente para conceder capacidade postulatória a quem não é parte no processo. Ora, a presença do defensor público em assistência às vítimas é medida garantida por lei e que tem por objetivo esclarecer as vítimas acerca de seus direitos e lhes prestar as informações necessária para as diversas implicações jurídicas decorrentes da situação de violência vivenciada, tal como a formulação de pedido de medidas protetivas, o encaminhamento à rede multidisciplinar e o oferecimento de assistência jurídica para a solução de questões atinentes a eventual divórcio, guarda e visitação de filhos menores. Todavia, se além de prestar esse tipo de assistência jurídica a defensoria pretende agir formulando perguntas em um processo penal, necessário que o faça na qualidade de sujeito processual, procedendo à devida habilitação como assistente de acusação. Se assim não procede, não pode formular perguntas e tampouco podem as perguntas formuladas serem consideradas pelo magistrado em prejuízo do acusado, sob pena de clara e absoluta nulidade em razão de afronta ao princípio do devido processo penal. Ao que parece, pretende a Defensoria Pública criar uma figura processual sui generis, passando a fazer perguntas e a agir como assistente de acusação tão somente durante a oitiva da vítima, o que afronta a sistemática processual penal. Com efeito, além de mais uma vez ANULAR a oitiva da vítima em desrespeito ao princípio do devido processual penal, determino que, durante a nova oitiva, não seja dada a palavra à Defensoria Pública que assiste as vítimas sem que seja formulado de forma expressa o pedido de assistência. E desde já alerto que a decisão sobre a admissibilidade de partes processuais é da competência do Magistrado que depreca o cumprimento do ato, motivo pelo qual deve o magistrado que cumpre o ato zelar para que tão somente os sujeitos processuais com legitimidade venham a participar. Dito isso, ANULO, mais uma vez, a oitiva da vítima e determino a expedição de nova CP para que seja tomado novo depoimento, sendo vedada a realização de perguntas pela Defensoria da vítima, não habilitada como assistente de acusação. Determino, ainda, que antes de ser expedida nova carta precatória, sejam os autos encaminhados à defensoria pública com atribuição para a defesa das vítimas na Comarca de Nilópolis para que diga se pretende se habilitar nos autos”.

Surpreendentemente, a Defensoria Pública representava tanto o réu, então beneficiado pela decisão anulada, quanto a suposta vítima.

Grande equívoco

A repercussão ficou inequívoca após a publicação do Acordão proferido pela 3ª Câmara Criminal [6] do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que deu provimento integral ao Recurso em Sentido Estrito nº 0006946-45.2018.8.19.0036 interposto pela “Defensoria Pública da Vítima” [7] nestes termos:

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DECISÃO QUE ANULOU A OITIVA DA VÍTIMA EM RAZÃO DE A DEFENSORIA PÚBLICA QUE A ACOMPANHOU TER FEITO PERGUNTAS. NATUREZA JURÍDICA DE ASSISTENTE ESPECIAL QUE PERMITE A REALIZAÇÃO DE PERGUNTAS NA AUDIÊNCIA DA VÍTIMA.

Trata-se de recurso em sentido estrito interposto pela vítima impugnando decisão que anulou o depoimento por ela prestado em razão de terem sido efetuadas perguntas pela Defensoria Pública que a acompanhou na oitiva.

Art. 27, da Lei 11.340/2006, que determina que ‘Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressaltado o previsto no art. 19 desta Lei’.

A localização do referido dispositivo – no capítulo nominado: ‘Da Assistência Judiciária’ – a interpretação teleológica da lei – que visa à ampliar as medidas de proteção à mulher vítima de violência doméstica – assim como o critério da especialidade de aplicação das leis, deixam claro que a natureza jurídica do instituto consagrado pelo artigo 27, da Lei Maria da Penha, é de assistência judiciária especial.

Diz-se especial porque voltada para as mulheres vítimas de violência doméstica e porque deriva diretamente da lei. Ou seja, diferentemente da assistência comum (artigo 268 e seguintes do CPP), independe de prévia oitiva do Ministério Público e de autorização judicial.

Dessa forma, correta a postura da Defensoria Pública em acompanhar a vítima e fazer perguntas que entendeu relevantes para o julgamento da causa.

Regra geral das nulidades que impede a decretação da nulidade, seja absoluta, seja relativa, na ausência de prejuízo que, de qualquer forma, imporia a reforma da decisão (Arts. 563 e 566, do CPP.

Artigo 10-A, da Lei Maria da Penha, ademais, que determina a obediência de diretrizes na inquirição da mulher vítima de violência doméstica, dentre elas a ‘não revitimização da depoente, evitando sucessivas inquirições sobre o mesmo fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo, bem como questionamentos sobre a vida privada’ (§ 1º, III).

Magistrado que deveria ter ponderado o direito da vítima com a formalidade cuja observância entendeu necessária, sendo certo que, diante do que ora se expôs (não houve demonstração de prejuízo, não sendo possível presumi-lo pela mera inquirição), a decisão teria que ter privilegiado a não revitimização.

RECURSO PROVIDO.

ACORDAM, por unanimidade, os Desembargadores que compõem a Egrégia Terceira Câmara Criminal deste Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em DAR PROVIMENTO ao recurso, para revogar a decisão que anulou a prova colhida, mantendo a sua validade, prosseguindo o feito como de direito, nos termos do voto do Relator.” – (como no original).

Enfatiza-se que, no julgamento acima transcrito, a “Defensora Pública da vítima”, inesperadamente, contou com parecer favorável do órgão de acusação.

De resto, frisa-se que a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro ainda achou por bem colocar o caso concreto neste artigo referido, como o gabarito da peça prática da “Banca II”, da prova específica do XXVII Concurso para Ingresso na Classe Inicial da Carreira da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro [8].

Sem embargo, parece que tal prática, pelas Defensorias Públicas, é fruto de um grande equívoco e denota evidente paradoxos com o seu escopo maior.

Marcos Santos/USP

Além disso, é necessário ressaltar que a assistência judiciária não se confunde com a efetiva capacidade postulatória, sendo certo que, para esta, faz-se necessária a habilitação nos autos como assistente da acusação, nos termos previstos e regulamentados pelo Código de Processo Penal.

Não há previsão na lei processual penal, nem mesmo na Lei nº 11.340/06, da mencionada “assistência qualificada da vítima” e dos poderes que lhes querem conferir.

Outrossim, ainda que haja decisões do Poder Judiciário, acolhendo equivocadamente a intitulada assistência qualificada da vítima, tal fato não tem o condão de modificar ou alterar a Lei processual, pois não cabe ao Poder Judiciário a função de legislar.

Por fim, é importante salientar que é de competência exclusiva do Congresso Nacional a criação ou alteração da legislação processual penal, portanto, não pode a Defensoria Pública, órgão autônomo integrante do Estado, seja por meio de resolução, portaria, ou através de equivocada interpretação contra texto expresso da lei, tentar alterar ou criar figuras não previstas na legislação processual penal.

Ora, se a verdadeira intenção do legislador fosse a criação de uma nova figura processual denominada de “assistência qualificada da vítima”, assim o teria feito expressamente, seja por meio de alteração na própria Lei Maria da Penha, ou através das reformas “pontuais” que foram realizadas no Código de Processo Penal [9].

Ainda que, haja decisões equivocadas pelo Poder Judiciário, como as referidas neste texto, tal fato, não tem o condão de modificar ou alterar a lei.

É de se concluir, então, em razão da reserva legal, do devido processo legal, da paridade de armas e da isonomia, que não pode subsistir qualquer resolução, portaria, interpretação jurídica ou decisão judicial, a justificar a supracitada “assistência qualificada da vítima”, seja por intermédio da Defensoria Pública ou através de advogado constituído pela vítima.

 

 


[1] https://www.netflix.com/br/title/81218903

[2] disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/projetos/expmotiv/smp/2004/16.htmc

[3] https://www.conjur.com.br/2019-jul-18/franklyn-roger-assistencia-vitima-violencia-processo-penal/ ., sem embargos, do autor utilizar a denominação assistência qualificada, mas sem atribuir quais quer outros poderes.

[4] SILVA, Franklyn Roger Alves; ESTEVES, D. C. PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS DA DEFENSORIA PÚBLICA. 3. ed. RIO DE JANEIRO: FORENSE, 2018. v. 01. 880p

[5] Prestado através de carta precatória

[6] Câmara Criminal esta notadamente conhecida pelos advogados criminais como sendo bastante dura com os réus em seus julgados.

[7] Quando a Defensoria Pública, também funcionou em defesa do réu, apresentando as contrarrazões do RSE.

[8] https://defensoria.rj.def.br/documento/Concurso-Defensor

[9] Vide as reformas do CPP, em 2008, em data posterior à entrada em vigência da Lei 11.340/06, ou ainda as diversas alterações realizadas na Lei 11.340/06, desde sua edição.

Autores

  • é advogado criminalista, fundador do Escritório LG Cury Advogados Associados, graduado pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), pós-graduado em Criminologia, Direito Penal e Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e pós-graduado em Criminologia, Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Candido Mendes (Ucam) e membro da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas (Abracrim) e da Associação Nacional da Advocacia Criminal (Anacrim).

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