Território Aduaneiro

Garantias no comércio exterior: há alternativas ao depósito em dinheiro?

Autor

  • Fernanda Kotzias

    é sócia do Veirano Advogados advogada aduaneira doutora em Direito do Comércio Internacional professora de pós-graduação e ex-conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

21 de novembro de 2023, 10h26

Seguindo o que vem sendo discutido com cada vez mais frequência entre operadores do comércio exterior e nos círculos especializados, o colega Leonardo Branco contemplou-nos, na semana passada, com artigo publicado nesta coluna sobre a necessidade de que seja oportunizada chance de prestação de garantia ao importador após a decretação do perdimento, com vistas a garantir que o processo administrativo seja conduzido sem que haja a destinação do bem.

A matéria é, sem sombra de dúvidas, espinhosa e merecedora de atenção. E, diante da discussão lançada, cabe aqui reiterar o posicionamento externo e nos alinhar em favor da possibilidade de prestação de garantia mesmo após a lavratura de auto de infração, possibilitando a redução da longa lista de hipóteses de destinação por perdimento e favorecendo com que os diversos tipos de autuações aduaneiras possam chegar ao Carf e ter acesso ao duplo grau recursal de forma devida.

Não obstante, ao nos debruçarmos sobre o tema, parece claro que há um problema anterior a ser tratado: o amplo acesso ao direito de prestação de garantia ainda no curso do despacho aduaneiro. A questão é tida como anterior (ou, quiçá, mais urgente) diante do fato de que se trata de matéria com previsão normativa vigente há décadas, mas cuja aplicação prática ainda é bastante controversa, além de ter sofrido sucessivas limitações pela administração aduaneira.

Avaliando a legislação, verifica-se que o Decreto-Lei nº 37/66 trata da garantia apenas para dispor dos casos de regimes aduaneiros especiais, para os quais indica a possibilidade de exigência de garantia real ou pessoal e delega à Secretaria da RFB a disposição sobre os casos de dispensa [1]. Por sua vez, o Decreto-Lei nº 1.455/76 delega ao Ministro da Fazenda o poder para definir os casos e tipos de garantia admitidas para liberação de mercadorias objeto de litígios fiscais pendentes [2].

Ao lado dessas normas, recepcionadas ao ordenamento jurídico com status de lei ordinária, o governo brasileiro ratificou e internalizou, com o mesmo status legal, acordos internacionais sobre facilitação do comércio que abarcam a questão da garantia, são eles: o artigo 7.3.2 do Acordo sobre Facilitação do Comércio (AFC) [3] da OMC e dos artigos 3.41 e seguintes do Anexo Geral da Convenção de Quioto Revisada (CQR) da OMA [4].

A nível infralegal, o Regulamento Aduaneiro prevê que a RFB poderá “exigir prestação de garantia como condição para a entrega de mercadorias, quando o valor das importações for incompatível com o capital social ou o patrimônio líquido do importador, do adquirente ou do encomendante[5], reforça a competência da RFB dispor sobre o casos de dispensa de garantia [6]  e, principalmente, dispõe que a prestação de garantia para liberação de mercadoria poderá ser realizada de três diferentes formas: (1) depósito em dinheiro; (2) fiança idônea; ou (3) seguro aduaneiro em favor da União [7].

À luz dessas disposições, a RFB buscou regulamentar os casos de dispensa e as formas de prestação de garantia por meio de instrução normativa, cabendo à IN RFB nº 1.600/2015 a atual regência da matéria.

Considerando que o depósito em dinheiro e o seguro dispensam maiores digressões, coube à referida IN definir o que se entenderia por fiança “idônea”. O resultado foi a indicação de rol taxativo, disposto no §5º do art. 60, que englobava a fiança prestada por: instituições financeiras; pessoa jurídica que possua patrimônio líquido de, no mínimo, cinco vezes o valor da garantia a ser prestada ou superior a R$ 10 milhões; e pessoa física, cuja diferença positiva entre seus bens e direitos e suas dívidas e ônus reais seja, no mínimo, cinco vezes o valor da garantia a ser prestada. Além disso, a IN ainda permitia que a fiança possa ser prestada por pessoa jurídica pertencente ao mesmo grupo econômico do beneficiário.

Ocorre que, apesar da lista de hipóteses de fiança idônea estar claramente indicada na IN, há previsão de que caberia à RFB analisar cada pedido, com possibilidade ou não de deferimento. Consequentemente, o que se passou a verificar foi uma grande rejeição a muitas dessas hipóteses, principalmente nos casos em que a fiança não se dava por meio de instituição financeira.

Seguindo tal caminho, houve posterior alteração das previsões normativas da IN RFB nº 1.600/2015 por meio da IN RFB 1.989/2020, que revogou quase todas as modalidades de fiança consideradas idôneas, reduzindo a lista apenas àquela prestada por instituição financeira.  Por fim, no corrente ano foi publicada a IN RFB nº 315/2023 que regulamenta o oferecimento e aceitação de fiança bancária e do seguro-garantia do âmbito da RFB, reforçando as restrições anteriormente impostas.

Esse novo cenário nos parece bastante problemático por diversas razões. Primeiramente, houve uma restrição indevida de conceito jurídico pela RFB e por meio de norma de hierarquia inferior em relação ao que consta em decreto. Caso o Regulamento Aduaneiro entendesse que a fiança idônea se resumiria a fiança bancária, teria optado por esta denominação ao invés daquela. O termo “fiança idônea” é aplicado em diversos ramos do direito e possui conceito difundido e pacificado, fazendo referência àquela em que o fiador tenha bens livres e desembaraçados suficientes para cobrir a garantia oferecida e, definitivamente, não se restringindo à fiança bancária.

O segundo ponto refere-se ao fato de que, com as restrições indevidamente impostas, os importadores acabam restritos a garantias pagas, visto que as únicas opções remanescentes — depósito em dinheiro, fiança bancária e seguro aduaneiro — exigem desembolso por parte do beneficiário. Com efeito, o uso dessas alternativas acaba tendo efeitos sobre o custo da operação total, podendo até inviabilizá-la.

Se, por um lado, nos parece justo que a fiscalização busque garantias antes da liberação de bens de forma a ter segurança de que conseguirá executar eventuais valores devidos à título de tributos, multa e juros, por outro, não parece adequado que a atividade econômica de empresas — até então presumidamente conformes, haja vista a ausência de imputação de responsabilidade até aquele momento — seja ameaçada e inviabilizada em virtude de uma investigação não concluída.

Importa esclarecer que a questão da garantia atinge pequenos e grandes importadores, quase na mesma medida. Isso porque a operação de importação é, por si só, uma operação de risco, em que a empresa adquire produtos estrangeiros e recolhe uma soma significativa de impostos em busca de ofertar ao mercado doméstico e, só então, ter compensação financeira. Nesse cenário, a obrigatoriedade de utilização de garantias que, por si só, encarecem ainda mais a operação e comprometem o fluxo de caixa da empresa não parece ser solução ajustada.

Avaliando as decisões dos Tribunais Superiores, verifica-se que existe uma tendência a ratificar o entendimento da RFB, deixando os importadores sem muitas saídas para a questão. Não obstante, não parece que a discussão em torno do conceito de “fiança idônea” não foi levada de forma clara e direta ao judiciário, cabendo ainda modificações e aprofundamentos de entendimento neste ponto.

A única solução atualmente em discussão vem do Legislativo, o que é uma agradável surpresa se considerado que as normas aduaneiras são em sua vasta maioria emanadas e regulamentadas pelo Executivo.

Por meio do Projeto de Lei (PL) nº 4.726/2016, foi inicialmente proposta alteração no artigo 23 do Decreto-Lei nº 1.455, de 7 de abril de 1976, para excluir as importações por conta e ordem de terceiros, bem como as importações por encomenda, da presunção de interposição fraudulenta nas operações de comércio exterior. Ocorre que, ao longo da tramitação do projeto, novos pontos foram sendo adicionados a ele, incluindo a questão da garantia.

Mais precisamente, ao ser analisada pela Comissão de Finanças e Tributação (CFT) da Câmara dos Deputados, o relator designado, deputado Sérgio Souza, sugeriu, entre outras adições, a seguinte previsão normativa:

“Art. 39. A mercadoria importada poderá ser liberada antes da decisão final do processo administrativo ou judicial, mediante o oferecimento de garantia idônea correspondente ao valor aduaneiro, salvo se de importação, consumo ou circulação proibida no território nacional, ou sujeita a licença, enquanto não cumpridos os requisitos para a sua obtenção.

Parágrafo único. Não se exigirá a prestação de garantia:

  1. caso a retenção ou apreensão da mercadoria ou bem se funde em lei ou ato normativo cuja ilegitimidade tenha sido reconhecida na forma do art. 927 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil;
  2. no processo judicial, quando, presentes os requisitos para a concessão de medida liminar ou equivalente, o autor da ação comprove possuir patrimônio disponível superior ao valor da mercadoria, o que poderá constatado periodicamente, de ofício ou mediante requerimento da Fazenda Pública.”

O que chama a atenção, além da manutenção do conceito de fiança idônea em sentido amplo e em consonância com o Regulamento Aduaneiro, é a sugestão de que não seja necessário prestação de garantia, ainda que no âmbito do processo judicial, quando o patrimônio do autor for suficiente para cobrir os custos e valores de uma eventual autuação.

O PL se encontra atualmente na Comissão de Desenvolvimento Econômico, aguardando aprovação, ainda que o relator designado já tenha apresentado parecer pela sua aprovação, com manutenção da redação referente à garantia.

Um último ponto que nos parece relevante explorar, refere-se ao equilíbrio processual entre as partes. Como pontuado, o importador vem sendo gradativamente tolhido de alternativas para liberação de mercadorias antes do final do despacho aduaneiro, ainda que muitas daquelas anteriormente existentes se mostravam suficientes e adequadas a preservar os direitos envolvidos, tanto das empresas, quanto da administração. Por outro lado, a RFB, ao ultrapassar os limites de regulamentação e modificar conteúdo normativo, vem buscando uma superproteção aos seus interesses, ainda que de forma indevida e desnecessária.

A nosso ver, além de desproporcional, a redução drástica das hipóteses de garantias sequer se justifica aos olhos da RFB. Não se pode olvidar que, além da exigência de garantia, ainda existe à disposição da fiscalização o instrumento da cautelar fiscal, instituída por meio da Lei nº 8.397/92 e que possibilita a indisponibilidade dos bens do requerido, até o limite da satisfação da obrigação.

A cautelar fiscal, via de regra, é medida aplicada a casos em que já existe crédito tributário ou não tributário formalizado, mas que possui exceções que independem da constituição do crédito tributário, são elas: os casos em que o sujeito, quando notificado pela Fazenda Pública, ponha ou tente por seus bens em nome de terceiros ou aliena bens ou direitos sem proceder à devida comunicação ao órgão da Fazenda Pública competente, quando exigível em virtude de lei [8].

Aos casos aqui tratados, isso significa que a fiscalização poderia aceitar fianças idôneas de forma ampla, e, diante de situações suspeitas ou problemáticas, fazer uso de instrumento adequado para sua correção, a cautelar fiscal.

Questionando auditores fiscais e outros agentes públicos que trabalham com a matéria, a baixa utilização da cautelar fiscal e, consequentemente, o enrijecimento das exigências de fiança, parecem estar relacionados a dois fatos: a burocracia e trabalho adicional que as cautelares exigem e, principalmente, a suposta discricionariedade que a Procuradoria da Fazenda Nacional (PJFN) teria para avaliar e decidir sobre os casos a serem efetivamente perseguidos.

Em resumo, as dificuldades e mudanças indevidas enfrentadas no campo das garantias aduaneiras são mais um caso de má gestão pública do tema, em que a falta de cooperação entre entidades envolvidas e de obediência à legislação de envergadura superior traz prejuízos e inseguranças graves aos operadores do comércio exterior.

Cabe, por fim, a ressalva de que toda a argumentação e defesa aqui feita se direciona a importadores devidamente constituídos, com operações reais e que, em situações pontuais, enfrentam fiscalizações e dificuldades frente à Aduana. Como já enfatizado em outras possibilidades, não se defende a facilitação do comércio para empresas fraudulentas e de fachada, para as quais a postura dura e cuidadosa da fiscalização é mais do que devida.

O que se prega é a urgente necessidade de relativizar a figura do importador, que por sua relevância econômica e por cumprir uma densa e complexa gama de normas e regulamentos, não pode ser tratado como um risco constante à sociedade e aos interesses nacionais. Como qualquer outra empresa, deve aqui imperar a presunção de boa-fé e, por tal motivo, ajustar as normas para que haja um equilíbrio entre os riscos e atividades públicos e privados.


[1] Arts. 72, §1º e 75, §4º do Decreto-Lei n. 37/66, respectivamente.

[2] Art. 39 do Decreto-Lei n. 1.455/78.

[3] Art. 7.3.1. Cada Membro adotará ou manterá procedimentos que permitam a liberação dos bens antes da determinação final dos direitos aduaneiros, tributos e encargos, se tal determinação não for feita antes da chegada ou no momento da chegada, ou o mais rapidamente possível após a chegada, e desde que todos os demais requisitos regulatórios tenham sido cumpridos.

Art. 7.3.2 Como condição para tal liberação, um Membros poderá exigir:

(a) o pagamento de direitos aduaneiros, tributos e encargos determinados antes da chegada ou no momento da chegada dos bens e uma garantia para qualquer quantidade ainda não determinada na forma de fiança, depósito ou outro instrumento adequado previsto em suas leis e regulamentos; ou

(b) uma garantia sob a forma de fiança, depósito ou outro instrumento adequado previsto em suas leis e regulamentos.

[4] Norma 3.41 : “Sempre que as Administrações Aduaneiras se assegurem de que todas as formalidades de liberação serão cumpridas posteriormente pelo declarante, deverão autorizar a entrega das mercadorias, desde que o declarante apresente um documento comercial ou administrativo adequado que contenha os principais dados relativos à remessa em causa, bem como uma garantia destinada, se necessário, a assegurar a cobrança dos direitos e demais imposições exigíveis”.

[5] Art. 106, §1º, II do Decreto n. 6.759/2009.

[6] Art. 364, parágrafo único, do Decreto n. 6.759/2009.

[7] Art. 759, parágrafo único, do Decreto n. 6.759/2009.

[8] Incisos V, alínea “b”, e VII, do art. 2º da Lei n. 8.397/92.

Autores

  • é doutora em Direito do Comércio Internacional, advogada, consultora especializada em Comércio Internacional e Direito Aduaneiro, professora de pós-graduação e conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) do Ministério da Economia.

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