Território Aduaneiro

A César o que é de César: a relação entre o Fisco e os contribuintes em 2024

Autor

  • Fernando Pieri Leonardo

    é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados mestre em Direito pela UFMG pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa professor de Direito Aduaneiro e Tributário Membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG multiplicador do Programa OEA da Receita Federal membro de nº 51 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.

20 de fevereiro de 2024, 8h00

O ano promete emoções e não será um ano qualquer. Temos mais um dia para boas escolhas e boas colheitas. O ano corrente é um ano bissexto, contando com 366 dias. Pelos fatos do início do ano, até o recém-findo Carnaval, os aduaneiristas vamos precisar muito desse dia-extra ante os desafios que se anunciam. Iniciamos 2024 com a continuidade do impasse entre o governo federal e os auditores-fiscais da Receita Federal. O movimento paredista da fiscalização, paralisando grande parte dos serviços públicos essenciais, trouxe grande impacto para os intervenientes.

Muitos tiveram seus despachos e desembaraços interrompidos, suspensos ou não iniciados por muito mais tempo do que o normal, causando-lhes prejuízos de toda ordem. Para essas situações, o Poder Judiciário foi a alternativa, em grande parte dos casos, visando a obtenção de medidas liminares que determinassem a continuidade desse serviço público essencial [1]. A interrupção no fluxo aduaneiro, ao provocar atrasos, quando causa prejuízos como a cobrança de armazenagens, demurrage e detention, é passível de ser indenizada, como já bem detalhou o colega Leonardo Branco, em texto publicado na semana passada [2].

Pauta do ano e que exigirá contínua atenção são as regulamentações da reforma tributária a respeito dos tributos niveladores – IPI, PIS, Cofins, ICMS – e os seus sucessores – CBS, IBS e IS –, assim como em relação aos regimes aduaneiros especiais [3]. Para a discussão e elaboração das leis complementares e demais regulamentações exigidas pela EC 132/23, foram criados 19 GTs – grupos de trabalho [4]. Nossos olhares devem estar atentos ao primeiro e ao décimo, respectivamente sobre importação e regimes aduaneiros especiais, e tratamento tributário da Zona Franca de Manaus e das Áreas de Livre Comércio (ALC).

O PL no 15/2024
Além desses mencionados, um tema para ser acompanhado de perto é o projeto de lei apresentado pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad, ao presidente da República, que o acolheu e enviou à Câmara dos Deputados. As propostas, se aprovadas, poderão provocar grandes impactos para as empresas. Os temas do projeto, PL no 15 de 2024, podem ser divididos em três grupos: os programas de conformidade [5] — Programa de Conformidade Cooperativa Fiscal (Confia); Programa de Estímulo à Conformidade Tributária (Sintonia); e Programa Brasileiro de Operador Econômico Autorizado (OEA) —; devedores contumazes e o controle de benefícios fiscais concedidos pelo governo federal.

A relação entre o Fisco e os contribuintes, por natureza, é sabidamente conflituosa. De um lado, o dever das administrações de imposição do cumprimento das normas aduaneiras e tributárias, de exigir o pagamento dos tributos devidos; e do outro lado, o dever dos intervenientes de observarem as regras e adimplirem com suas obrigações. Em regra, Fisco e contribuintes nutrem mútuas desconfianças. Essa animosidade intrínseca, entretanto, vem dando lugar aos conceitos de parceria, amplo diálogo, transparência, reunidos no modelo proposto pela OCDE que estimula os países a adotarem programas de co-operative compliance [6].

O PL no 15 de 2024 [7], apresentado à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados no último dia 2/2/2024 pelo presidente da República, é um capítulo importante no processo de quebra de paradigma da relação Fisco x contribuintes. Para sermos justos e respeitosos com a história, essa mudança se iniciou em 2014, com o Programa OEA, que é um dos três que está no projeto de lei. Lançado por meio de uma instrução normativa, em 2014, o OEA aproximou a aduana do setor privado e rompeu a ideia de oposição, desconfiança e distanciamento entre eles [8]. Esse primeiro e bem sucedido programa de conformidade brasileiro, agora, multiplicou-se e atingiu os tributos internos por meio do Confia e do Sintonia. O projeto de lei é bem visto, na medida que dará estatura legal para os programas de conformidade já existentes em nível infralegal.

Spacca

Confia e Sintonia
O Confia, de adesão voluntária, visa incentivar o cumprimento das obrigações tributárias e aduaneiras por meio da “construção de um relacionamento cooperativo” entre a RFB e os contribuintes participantes. Preconiza, mutatis mutantis, promover, no âmbito dos tributos internos, o que o OEA tem realizado no âmbito aduaneiro, construindo um novo paradigma de relação do Fisco com os contribuintes. Fruto do aprendizado e da estrutura do OEA, o Confia também prevê seus princípios (artigo 3º), os contribuintes certificáveis (art.igo2º, parágrafo único), benefícios, requisitos, monitoramento, exclusão e deveres para ambas as partes (artigo 4º), incluindo o de elaboração de um plano de trabalho. Nesse deve constar, entre outros requisitos, um que se destaca: “a previsão de diálogo sobre as possíveis dúvidas ou divergências na interpretação da legislação tributária e sobre o encaminhamento adequado do tema para obtenção de segurança jurídica com maior eficiência.” A previsão traduz a essência de cooperação do programa.

Dentre os benefícios propostos está o diálogo prévio da RFB com o contribuinte em face das decisões a pedidos de compensação, ressarcimento, restituição e reembolso de créditos, renovação de CND ou CP-EFN, assim como a definição de um ponto de contato da RFB (art. 5º). Os artgos 7º, 8º e 9º preveem a criação de processos próprios de trabalho, que incluem um processo de revelação e o monitoramento contínuo da conformidade tributária do contribuinte e, havendo tributo a ser recolhido, as condições serão diferenciadas, com possibilidade de autorregularização. Nesse sentido, o parágrafo 2º do artigo 9º do PL, prevê que após o processo de revelação, havendo tributo a recolher, não incidirá a multa de ofício e que, após a ciência da decisão administrativa que considerar devido o tributo, no caso de um lançamento de ofício, não incidirá multa de mora até o prazo de 30 dias após a ciência. Se o lançamento decorrer do monitoramento e não do processo de revelação, há previsão de redução da multa de ofício em 20% (parágrafo 4º do artigo 9º).

O Sintonia visa estimular o cumprimento das obrigações tributárias e aduaneiras por meio da concessão de benefícios aos contribuintes, classificados com base em critérios relacionados à regularidade cadastral, ao recolhimento pontual de tributos, ao cumprimento tempestivo das obrigações acessórias e exatidão das informações prestadas nas declarações e nas escriturações (artigo 13, I a IV). No artigo 22, há previsão da criação dos Selos de Conformidade Tributária Aduaneira (SCTA), sendo eles os selos Confia, Sintonia e OEA. A obtenção dos dois primeiros permitirá a fruição dos benefícios previstos nos incisos I a IV, do artigo 23, com destaque para o bônus de adimplência fiscal, que corresponderá a descontos de 1% a 3% no pagamento à vista do valor devido a título de CSLL. Esses contribuintes receberão previamente informações sobre indícios de infração à legislação aduaneira e tributária, podendo promover sua autorregularização sem incidência de multa de mora, no prazo de 60 dias da data da ciência da inconformidade.

Programa OEA
Dentre os artigos 15 a 21 da proposta legislativa, sobre o OEA, a grande novidade proposta pelo governo federal é algo que já fora prometido e era bastante aguardado. Trata-se de mudança no momento do pagamento dos tributos devidos na importação (artigos 19, III), incluindo a Cide-importação e a taxa do Siscomex. A obrigação do recolhimento passará, com a aprovação da proposta, do registro da DI/Duimp, para o 20º dia do mês subsequente ao da ocorrência do fato gerador, que continuará a ser a data do registro da declaração, para todos os efeitos de cálculo do montante dos tributos devidos. Esse benefício é um dos que consta no item 7, artigo 7º do AFC/OMC e que poderá agora ser incorporado aos demais já assegurados aos intervenientes OEA. O diferimento no recolhimento dos tributos poderá abranger também o AFRMM, a Taxa de Utilização do Sistema de Controle de Arrecadação do Adicional ao Frente para Renovação da Marinha Mercante, os direitos antidumping, medidas compensatórias e de salvaguarda incidentes na importação.

Um ponto que merece relevo na proposta é o artigo 21, na medida em que, reconhecendo-se a boa-fé e a predisposição à conformidade das empresas OEA, prevê a possibilidade da aduana apontar indícios de irregularidade sem que isso configure início de procedimento fiscal e fim da espontaneidade. Nada mais justo e condizente com as premissas e diretrizes do Programa OEA, como já tivemos oportunidade de defender [9]. Não é concebível que uma empresa que, reconhecidamente, investe em conformidade, aplica para obter e manter a certificação de operador confiável, seja punida como as outras. Essa medida fortalece a relação de confiança e estimula a permanência e novas adesões.

Nessa fase de avaliações para se chegar ao texto legal a vigorar, é preciso atentar para os artigos 17 e 18, e o prazo máximo para implementar medidas de adequação ao programa, quando a empresa certificada estiver sob monitoramento. O prazo proposto é de 60 dias, sob pena de exclusão. Muitas vezes, a providência a ser implementada envolve investimentos financeiros em obras, sistemas, controles, câmeras e o prazo pode ser inexequível. Da forma como está o texto, se for aprovado, a realidade pode desafiar a determinação legal, concretizando indesejável e injusta hipótese de exclusão. Melhor será se a norma estabelecer o prazo mas prever a exceção em casos cuja natureza da adequação, comprovadamente, imponha a necessidade de sua dilação.

Despachante aduaneiro     
Um tema está ausente do projeto e precisar ser incluído. Trata-se da presença do despachante aduaneiro no rol dos intervenientes certificáveis. Assim como houve previsão expressa na proposta acerca das operações de importação indireta (artigo 19, I, “d”), considerando a celeuma pretérita envolvendo esse relevante interveniente do comércio exterior brasileiro, não se deve deixar de incluí-lo entre os certificáveis, já no texto da lei. Assim como, já estabelecer a forma de sua avaliação e obtenção do Selo OEA, sempre levando em consideração critérios razoáveis que permitam reconhecer sua condição de parceiro estratégico da aduana, sua competência, experiência e aderência aos princípios e objetivos do programa. É que no caso dos despachantes aduaneiros, diante do histórico de discussões [10], não se deve deixar de regular o tema em lei, com ganho de segurança jurídica e previsibilidade para todos.

Devedor contumaz.
Além dos programas de conformidade e de controle dos benefícios fiscais [11], na outra ponta da pirâmide de risco, a norma proposta estatui a figura do devedor contumaz. Assim serão considerados aquelas empresas que (1) possuem débitos superiores a quinze milhões de reais sem garantias idôneas e superiores ao patrimônio conhecido; (2) possuem débito em dívida ativa acima de quinze milhões em situação irregular por mais de um ano; e (3) forem parte relacionada de PJ baixada, ou inapta nos últimos cinco anos, com débito em situação irregular em valor igual, ou superior a quinze milhões. Define-se situação irregular como aquela de débitos cuja exigibilidade não esteja suspensa, ou que não estejam garantidos. Outra novidade da proposta legislativa é a exclusão da possibilidade de extinção da punibilidade para o responsável de PJ considerada devedor contumaz, nos termos do artigo 36 do PL. Por fim, o artigo 37 prevê que a empresa inscrita no cadastro de devedores contumazes terá declarada a inaptidão do seu CNPJ e estará impedida de participar de licitações públicas.

Conclusão
O projeto de lei tramitará sob regime de urgência na Câmara dos Deputados e no Senado, com perspectivas de entrar em vigor este ano. Trará maior segurança jurídica para os programas de conformidade que já existem sem marco legal. Inovará no tratamento mais benéfico aos conformes, com concessões inéditas, como o bônus de desempenho fiscal e respectiva redução da CSLL, assim como permitirá uma relação de mais confiança no que tange a punição de ilícitos, permitindo a autorregularização, sem multa de ofício, de mora e juros.

No OEA, as medidas são alvissareiras com a possibilidade do diferimento dos tributos e de exclusão de multas de ofício e de mora, em homenagem à relação de confiança e parceria. No verso da medalha, aos devedores que forem considerados contumazes, as consequências se agravam, inclusive com a continuidade da persecução criminal diante de pagamento integral do débito. É importante que as empresas estejam atentas e avaliem de que lado da moeda desejam estar, porque a lei, quando vigente, pretende dar a César o que é de César.


[1] Nesse sentido: AgInt no MS 25.563/DF, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe 20/3/2020; AgRg no MS 20.395/DF, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe 23/9/2014; AC 1000218-78.2016.4.01.3300, TRF 1ª, Juiz Federal HENRIQUE GOUVEIA DA CUNHA, Sétima Turma, DJe 09/08/22.

[2] “Responsabilidade da União por responsabilizar danos aduaneiros”, autoria de Leonardo Branco.  Disponível em: link, acesso em 16/02/24.

[3] Sobre a Reforma Tributária e o comércio exterior, após publicação da Emenda Constitucional 132/23, publicamos na Coluna, em 16/01/24, o artigo “Sobre reformas e os tributos aduaneiros: expectativas”, em coautoria com Daniela Lacerda. Disponível: link , acesso em 15/02/24.

[4] A composição dos GTs está disponível em: link, acesso em 14/02/24.

[5] O Projeto de Lei define o que se entende por conformidade tributária e aduaneira, a saber: “entende-se por conformidade tributária e aduaneira o cumprimento das obrigações tributárias e aduaneiras, principais e acessórias, e o fortalecimento da segurança da cadeia de suprimentos internacional.” (art. 1º, parágrafo 2º, do PL 15/24).

[6] Sobre o tema, publicação da OCDE, intitulada: “Co-operativa Compliance: A Framework from enhaced relationshio to co-operativa compliance”. Disponível em: link , acesso em 15/02/24.

[7] Disponível em: link, acesso em 15/02/24. Consta o texto da proposta de lei e a exposição de motivos, assinada pelo ministro da Fazenda.

[8] Sobre o tema: LEONARDO, Fernando Pieri. Programa Brasileiro de Operador Econômico Autorizado e o desenvolvimento do Pilar Aduana – Empresa do Marco Safe da OMA. in TREVISAN, Rosaldo, coord. Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, 2022, 1ª ed. p. 381-429

[9] Sobre o tema: LEONARDO, Fernando Pieri. OEA e a Autorregularização de Infrações AduaneirasRevista de Direito Aduaneiro, Marítimo e Portuário, v. 11, no 64, p. 77–98, set./out., 2021.

[10] Superior Tribunal de Justiça, disponível em link . Acesso em 14/02/24.

[11] Os artigos 41 e 42 da proposta preveem o controle de benefícios fiscais federais, atualmente em número superior a 200. O objetivo é monitorar o alcance e a eficiência dos benefícios aprovados pelo Congresso Nacional. O controle dar-se-á mediante preenchimento de um formulário eletrônico onde serão informados os incentivos, renúncias, benefícios ou imunidades e o valor do crédito tributário exonerados.

Autores

  • é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados, mestre em Direito pela UFMG, pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa, professor de Direito Aduaneiro e Tributário, Membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB, presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG, multiplicador do Programa OEA da Receita Federal, membro de nº 51 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.

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