Direito Fundamental

Educação se torna direito público subjetivo e é ampliada na Constituição de 1988

Autor

12 de novembro de 2023, 10h03

No dia 5 de outubro de 1988, data em que a nova Constituição brasileira foi do sonho à promulgação, o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, subiu à tribuna para dizer que só pode ser efetivamente considerado cidadão ou cidadã quem ganha um salário justo, sabe ler e escrever, tem moradia, saúde e lazer. E enfatizou, lembrando que 25% da população brasileira era analfabeta naquela época: a cidadania começa com o alfabeto.

É com o alfabeto, a escola, a universidade e todas as formas de educação que a pessoa passa a realmente compreender a vida ao seu redor e adquire as ferramentas para mudá-la.

Spacca

Entre todas as faces que podem ser atribuídas à cidadania, a educação talvez seja uma das mais evidentes. Como fruto da importância da educação, mas também dos desafios para torná-la plena, a pauta educacional tem sua base prevista na Constituição e segue disposta em diversas leis e regulamentos. Esse complexo conjunto de normas deu margem ao surgimento de várias controvérsias, muitas delas decididas pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) nos últimos 35 anos — casos em que o tribunal buscou garantir que o direito fundamental à educação fosse efetivamente respeitado.

Educação: o primeiro direito social fundamental da Constituição
Vice-presidente do STJ, o ministro Og Fernandes tem um histórico de atuação voltada para a defesa da educação. Além de ter sido relator em precedentes importantes sobre o assunto, o ministro é professor e foi diretor-geral da Enfam (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados). Também tem participação ativa em eventos que envolvem a pauta educacional, a exemplo do seminário sobre o Pacto Nacional pela Primeira Infância, que aconteceu no STJ no último mês de setembro.​​​​​​​​​

Para o ministro, não é mera coincidência que a educação seja o primeiro direito social fundamental citado no artigo 6º da Constituição. “Não há exercício da cidadania sem a formação educacional, e não há educação efetiva sem a preparação das pessoas para defenderem seus direitos e cumprirem com seus deveres. Educação e cidadania são pautas interseccionadas na nossa Constituição e devem ser objeto de defesa permanente por governantes, pela sociedade civil e pelo Judiciário”, enfatiza Og Fernandes.   

Segundo o doutor em educação Carlos Roberto Jamil Cury — professor universitário e ex-presidente da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) —, a Constituição teve um duplo papel histórico na educação. De um lado, tratou de reverter situações criadas pelo regime militar, especialmente a censura e a perda de recursos na área educacional. A título de exemplo, ele cita os princípios trazidos pelo “colossal artigo 206“, como a igualdade de condições para acesso e permanência na escola, o pluralismo de ideias e a gestão democrática do ensino público.

Por outro lado, o educador destaca que o Estado democrático de Direito abriu as portas para a universalização da educação, para o acolhimento de jovens e adultos que não tiveram oportunidade de frequentar os bancos escolares e para o reconhecimento da educação indígena multicultural e bilíngue, a exemplo do artigo 242, parágrafo 1º, e do artigo 208 da Constituição.

“Outro aspecto importante é a articulação entre o cidadão nacional e a pessoa humana. Há um apontamento de uma relação virtuosa entre direitos da cidadania e direitos humanos. Também há o princípio da gestão democrática nas escolas públicas, pela qual docentes, gestores e comunidade, cada qual com suas atribuições, devem se constituir em um núcleo voltado para o bem geral dos estudantes”, detalha Cury.

Com a CF/88, educação se torna direito público subjetivo e é ampliada
O professor ressalta que a educação, na CF/88, tornou-se um direito público subjetivo – princípio que, lembra, era defendido por Pontes de Miranda desde 1932. Também representam avanços fundamentais, segundo ele, a ampliação da gratuidade para todo o ensino público e a definição de um percentual de impostos para a manutenção e o desenvolvimento da educação.

Agência Brasil
Deputado Ulysses Guimarães promulga a Constituição de 1988

Outro marco importante citado por Cury é o mandamento constitucional de criação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, como forma de atender à universalização, à federalização e ao aprimoramento da educação – mandamento cumprido com a edição da Lei 9.394/1996.

No âmbito do poder constitucional reformador, Jamil Cury cita algumas emendas constitucionais que foram importantes para ampliar e dar concretude ao direito à educação, como a Emenda 14/1996, que criou o Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) — posteriormente substituído pelo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação). Ele também aponta a Emenda 59/2009, que introduziu o conceito de sistema nacional de educação e tornou obrigatório o ensino dos quatro aos 17 anos de idade.

STJ deu caráter escolar à creche e afastou a reserva do possível sem justificativa concreta
Cury destaca o papel do Poder Judiciário na concretização dos direitos à educação, lembrando que dispositivos como os parágrafos 1º e 2º do artigo 208 da CF/88, replicados na Lei de Diretrizes e Bases, preveem a atuação da Justiça como “um dos recursos da cidadania para efetivação de acesso e permanência na educação escolar”.

“Ademais, a presença de uma cultura discriminatória, ao arrepio da lei, faz do Judiciário um dos guardiães da dignidade da pessoa humana, enfaticamente no respeito aos direitos civis do artigo 5º da Constituição. O desafio de nossa educação é o de tornar efetivos princípios e normas dispostos no ordenamento jurídico vigente”, completa Jamil Cury.

Nos últimos 35 anos, o STJ foi responsável por proferir diversas decisões que buscaram, como comenta o professor Cury, dar efetividade aos princípios e dispositivos do ordenamento jurídico.

Entre os precedentes mais marcantes nessa área, a corte definiu, no REsp 187.812, que as creches municipais destinadas a abrigar crianças carentes entre 0 e 6 anos de idade podem ser enquadradas como estabelecimentos de ensino, tendo em vista os princípios constitucionais que impõem ao Estado brasileiro o dever de oferecer educação para todos. Como consequência, sob relatoria do ministro Fernando Gonçalves (aposentado), a corte entendeu que essas creches se enquadravam no rol de entidades protegidas pela Lei do Inquilinato, não estando sujeitas a despejo por denúncia vazia.

No REsp 1.185.474, a 2ª Turma consolidou o entendimento de que, tendo em vista o artigo 227 da CF/88 e o artigo 54 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), os quais definem que a educação deve ser tratada com absoluta prioridade pelo Estado, a alegação de reserva do possível pelo poder público municipal, como argumento para não construir creches, deve ser concretamente demonstrada.

“O princípio da reserva do possível não pode ser oposto — quando a escassez é resultado de um processo de escolha das atividades que serão atendidas — ao mínimo existencial, aos direitos que a própria Constituição Federal elege como prioritários, como é o caso do direito à educação infantil”, apontou o relator do caso, ministro Humberto Martins.

Recursos do Fundeb só podem ser destinados para atendimento da educação
A 1ª Seção do STJ estabeleceu, ao julgar o REsp 1.703.697, que os recursos do Fundef/Fundeb só podem ser utilizados em despesas de manutenção e desenvolvimento da educação básica. Dessa forma, o colegiado concluiu que a verbas do fundo não poderiam ser descontadas para o pagamento de despesas como honorários advocatícios.

“Constatada a vinculação constitucional e legal específica dos recursos do Fundef/Fundeb, bem como a manutenção dessa característica mesmo quando referidos valores constarem de título executivo judicial, inexiste possibilidade jurídica de aplicação do artigo 22, parágrafo 4º, da Lei 8.906/1994, sob pena de caracterizar verdadeira desvinculação que, à toda evidência, é expressamente proibida por lei e não encontra previsão constitucional”, afirmou o relator do recurso, ministro Og Fernandes.

O tribunal também fixou posições importantes em relação ao ensino superior: no REsp 1.583.798, sob relatoria do ministro Herman Benjamin, definiu que a universidade não pode negar a matrícula de estudante em novo curso em razão da falta de pagamento de mensalidades de curso anterior; no REsp 1.332.394, de que foi relator o ministro aposentado Arnaldo Esteves Lima, reconheceu a legitimidade passiva da União para responder ao processo quando a falta de credenciamento da instituição no Ministério da Educação for obstáculo à obtenção do diploma de conclusão de curso.

Sob a sistemática dos recursos repetitivos, a Primeira Seção estabeleceu, no Tema 1.058, que a Justiça da Infância e da Juventude tem competência absoluta para julgar causas sobre a matrícula de menores em creches ou escolas. Segundo o colegiado, a competência das Varas de Infância e Juventude nesses casos independe de o menor estar ou não em situação de abandono – sobretudo pela previsão do ECA (artigo 53) de atendimento integral à educação como forma de garantir o pleno desenvolvimento da pessoa e o seu preparo para o exercício da cidadania. Com informações da assessoria do STJ.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!