Opinião

A PEC 45/2023 e a cannabis no Brasil

Autor

  • Raquel Schramm

    é advogada especialista em ciências criminais presidente da Comissão de Políticas de Drogas da OAB/SC sócia-fundadora do escritório Schramm Advogados Associados diretora regional da Rede Reforma em Santa Catarina e diretora jurídica na Associação Brasileira de Cannabis Medicinal (Santa Cannabis).

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17 de maio de 2024, 20h56

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/23, que criminaliza o porte e a posse de drogas, incluindo a maconha, sem distinção de quantidade, apresenta desafios significativos, principalmente para o uso medicinal da cannabis no Brasil.

yanukit/freepik
cannabis medicinal

Antes de falar especificamente sobre a proposta de emenda constitucional, é necessário frisar que nela há a criminalização de usuários, sejam eles os que fazem o uso recreativo/adulto (como aqueles que tomam uma “cervejinha” no final de semana com a família), sejam os usuários problemáticos (como aqueles que são dependentes químicos), sejam os usuários medicinais. Já de início, portanto, percebe-se que aquele usuário problemático não terá qualquer amparo no campo da saúde, mas encontrará respaldo exclusivamente no sistema penal, e o usuário saudável, bem como o paciente medicinal, enfrentarão os mesmos problemas e estigma.

No Brasil, a cannabis medicinal passou a ser reconhecida por suas propriedades terapêuticas nos últimos anos, permitindo que pacientes com diversas condições de saúde, como epilepsia, dor crônica e ansiedade, tivessem acesso a tratamentos alternativos. No entanto, a legislação ainda é rígida e as barreiras burocráticas são substanciais, limitando o acesso ao medicamento a um grupo pequeno de pacientes que conseguem navegar no complexo sistema regulatório.

A PEC 45/23, ao criminalizar a posse de qualquer quantidade de drogas, ignora as necessidades dos pacientes que utilizam cannabis como parte de seus tratamentos médicos. Isso pode levar a uma situação em que pacientes que legalmente necessitam de cannabis para seu bem-estar possam ser criminalizados, dificultando ainda mais o acesso a esses medicamentos essenciais.

A estigmatização de usuários de drogas já é exacerbada e deverá se acentuar com a aprovação da PEC 45, especialmente entre esses pacientes que usam cannabis com fins terapêuticos. Mais uma vez de maneira omissiva, ao não fazer distinção entre uso recreativo e medicinal e eventual comercialização da substância de forma ilegal, a PEC perpetua uma visão negativa sobre todos os usuários de cannabis, independentemente de seu uso legítimo e/ou necessário, por razões de saúde, por exemplo.

Tem-se, aliás, que a criminalização da posse de cannabis deverá também estagnar o progresso da pesquisa científica em torno de seus benefícios terapêuticos. Os pesquisadores, que já sofrem com a desinformação propagada durante décadas e com a indisponibilidade do vegetal em território nacional, deverão enfrentar ainda mais obstáculos, desde a obtenção de licenças para estudar a planta até a realização de ensaios clínicos, o que pode retardar ou até mesmo impedir o desenvolvimento de novos tratamentos baseados em cannabis no Brasil — visto que em outros países o estudo vem avançando a passos largos.

Não bastasse, explicitamente citado pelo proponente, a implementação da referida “PEC da criminalização” vem como resposta do poder legislativo ao avanço da discussão no Supremo Tribunal Federal (Recurso Extraordinário 635.659) sobre a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, o qual, em plena vigência, já dispõe sobre as penas aos usuários.

Não se fala, entretanto que, se implementando a emenda constitucional, a qual prevê a distinção de usuário para traficante (exatamente como já estipula a Lei 11.343/06), sem dúvidas haverá aumento ou manutenção do número de casos judiciais que discutem sobre a intenção de indivíduos que portam pequenas quantidades cannabis (para consumo ou para venda?), pressionando de igual forma o sistema judiciário já sobrecarregado. Poderá haver, ainda, um impacto negativo nos sistemas de saúde, pois pacientes que poderiam beneficiar-se de tratamentos baseados em cannabis poderão optar por alternativas menos eficazes ou mais prejudiciais, aumentando os custos de saúde a longo prazo.

É preciso legislação complementar

Entendo que, em vez de tentar alterar cláusulas pétreas da Constituição, inserindo um inciso que vai de encontro ao que a Carta Magna prevê, quando protege a dignidade humana, a privacidade, a liberdade, a vida privada e a honra do indivíduo, o poder legislativo deveria unir esforços para, ex. g., criar a legislação complementar ao que se refere o artigo 2º da Lei 11.343/06, o qual prevê a pesquisa científica e o uso medicinal, até de substâncias proibidas.

Sim, há previsão legal dos usos medicinal e científico da cannabis, entretanto, não existem critérios objetivos para tanto. Esta é a temática que deveria ser objeto de regulamentação pelo poder legislativo que, apoiado em vieses políticos e eventualmente até religiosos, ignoram os avanços da ciência e a realidade do povo brasileiro, que já adotou a cannabis como medicamento, mas não só: o vegetal tem grande potencial econômico de desenvolvimento em todas as áreas que o envolvem.

Atualmente, existem associações de pacientes que já possuem autorização judicial para funcionamento, plantando e produzindo o óleo medicinal e distribuindo à população; tem-se os pacientes que produzem seu próprio óleo em casa, por meio do autocultivo obtido a partir de salvo-condutos; e, por fim, ainda há possibilidade de comprar o óleo na farmácia (tanto de CBD quanto de THC, que também tem aplicações terapêuticas), ou importar o medicamento. Ou seja, existe cannabis no Brasil, só não são os brasileiros que lucram com isso — excetuando o narcotráfico.

Alguns estados têm aprovado leis que preveem a distribuição do óleo de cannabis pelo SUS. Mesmo nesses estados, o acesso é difícil, burocrático, e nem sempre aquele óleo fornecido pela indústria farmacêutica e duramente custeado pelos cofres públicos terá eficácia, porquanto produzido a partir de moléculas isoladas (o que permite a patente dos medicamentos pela indústria). Diferentemente das associações, que produzem o óleo a partir da “planta inteira”, sem necessidade de patente e, portanto, com todos os inúmeros canabinoides com princípios medicinais que a planta Cannabis Sativa L. possui.

Despindo-se de moralismos, partindo de uma discussão adulta e bem fundamentada, é essencial que as políticas de drogas sejam alicerçadas em evidências científicas e práticas inclusivas e de redução de danos, que reconheçam as nuances do uso de substâncias. Políticas como a PEC 45/23, que adotam a famigerada abordagem de “tamanho único”, que vise a total abstinência, não apenas falham em abordar os problemas subjacentes associados ao abuso de substâncias, mas também penalizam injustamente aqueles que dependem de medicamentos para sua saúde e bem-estar.

Há a evidente necessidade dos brasileiros que utilizam a planta pararem de depender de produtos que envolvem demasiada burocracia para seu acesso, como a importação. Se de um lado temos pacientes e usuários sendo diariamente estigmatizados por um uso legítimo, que não afeta de forma alguma terceiros, tem-se, de outro viso, um mercado milionário sendo “ignorado” pelas autoridades, que destinam os recursos internos ao mercado externo.

Violação a princípios do Estado democrático

Diante do exposto, referindo-me então à parte jurídica, é importante abordarmos o artigo 5º da Constituição, que será eventualmente editado pela PEC 45/23, e que traz em seu texto garantias e direitos fundamentais.

Já o artigo 60 da CF/88 leciona que jamais poderá ser objeto de emenda constitucional aquilo que vise a abolir os direitos e garantias individuais. Ou seja, assenta o entendimento de que trata o artigo 5º, de cláusulas pétreas, não havendo previsão de edição para redução de direitos, de modo que qualquer alteração que vise a reprimir ou criminalizar qualquer conduta é amplamente incompatível com a sua natureza jurídica.

Aliás, a PEC, se aprovada, violará princípios que são basilares ao nosso Estado democrático de direito. O artigo 1º da Constituição traz, em seu inciso III, o princípio da “dignidade humana”, sendo este um direito fundamental, servindo como um limitador para o poder punitivo, ou seja: “quando a punição ultrapassa a dignidade, esta é absolutamente ilegal” [1]. Além disso, como mencionado, há ofensa direta do direito à liberdade, à intimidade, à vida privada e à honra.

O direito penal brasileiro se baseia no direito penal mínimo, ultima ratio, ou seja, uma conduta só pode ser punida se ela causa danos a um bem jurídico tutelado, de terceiros ou da sociedade. Se é feita a leitura que o uso problemático de determinada substância causa danos apenas à pessoa que está usando, logo essa conduta não fere o bem jurídico da sociedade ou direitos de terceiros, violando também o princípio da lesividade.

Sabe-se que a pena deve ser condizente com a conduta que é declarada ilícita, consoante leciona o princípio da alteridade e proporcionalidade. Quando se pune uma conduta que causa lesão apenas à pessoa que usa a substância fere-se também este princípio. Um paralelo que ouvi, que creio valer a pena compartilhar, foi que “o ápice da autolesão é o suicídio”. Não há sequer uma legislação que puna o suicídio, punindo-se a incitação apenas. Se acabar com a própria vida, suprassumo da autolesão, não é punido pelo ordenamento jurídico, por que punir o uso individual de uma substância psicoativa?

A PEC 45/23, a meu sentir, além de juridicamente inconstitucional, representa um retrocesso significativo aos pacientes que buscam o acesso à cannabis medicinal no Brasil, colocando barreiras legais e sociais que podem negar aos pacientes tratamentos cruciais, ao mesmo tempo que aumenta o estigma e impede o avanço científico.

Racismo influencia

Mas não apenas. A criminalização das drogas, como se apresenta tanto na legislação atual, quanto na PEC 45, reforça em muito o racismo, perpetrado contra a população negra, pobre, periférica. Aqui não apenas cito o racismo estrutural ao qual nossa sociedade tão está inserida, a ponto, muitas vezes, de negá-lo, mas dados que o confirmam para que não haja dúvidas da sua existência.

No meio jurídico, no século 18, o médico Cesare Lombroso publicou o livro “O homem delinquente”, a partir do qual associou-se determinadas características físicas de pessoas ao cometimento de certos crimes. No livro, ele cita, por exemplo, que a fisionomia de um ladrão seria uma pessoa de “maxilar largo, cabelo crespo e pele escura”, ou seja, associa características da população negra à delinquência — inaugurando-se a antropologia criminal.

A antropologia criminal, que buscava identificar perfis criminosos com base em características biológicas, deixou sua forte herança no direito brasileiro, considerando que atribuir características físicas a criminosos, tentando estabelecer um padrão, se mostra além de utópico, extremamente preconceituoso. Basta recordarmos outras políticas que se utilizaram genética e características hereditárias e físicas como parâmetro, como foi a eugenia de Hitler, culminando no trágico e vergonhoso Holocausto.

Não é demais lembrar que a maconha chegou ao Brasil em meados de 1549, trazida pelos negros escravizados, especialmente vindos de Angola. Essa substância servia como um alento para aquilo que chamamos de “banzo”, descrito como certa melancolia ou tristeza, experienciados pelas pessoas que eram tiradas de suas casas para serem trazidas ao Brasil e aqui escravizadas. A cannabis, portanto, se popularizou nas populações negra e indígena, passando a ser criminalizada apenas na década de 30, mais como forma de combate a uma população, do que por eventuais malefícios que possa causar o seu uso.

Nós, enquanto sociedade civil, não devemos nos curvar a essa política racista e comprovadamente falida. Toda a discussão se dá em uma época que as drogas já são criminalizadas e o seu uso e comércio existem, não importa quanto se invista em repressão. Exterminam-se certas populações, mas o narcotráfico ainda é um dos negócios mais lucrativos do planeta.

Ou seja, se a intenção é reduzir o consumo abusivo e o poder de narcotraficantes, há que se abordar as políticas de drogas sob outro olhar, como o de educação, conscientização e redução de danos. Um exemplo palpável de políticas de redução de danos aplicada às drogas é o do tabaco, que há alguns anos tinha seu uso influenciado e propagado e, após constatado seus efeitos nocivos, não se cogitou a criminalização, mas outra abordagem política que reduzisse o seu consumo problemático. Optou-se por uma série de medidas restritivas que, a longo prazo, reduziram significativamente o consumo da substância que mata mais de 8 milhões de pessoas [2] ao ano (contra os índices da cannabis que, até hoje, não se tem notícias de uma morte sequer por seu uso, abusivo ou não).

É vital, diante de todo o exposto, que o Brasil reconsidere abordagens legislativas objetivas que permitam uma distinção clara entre o uso adulto, uso abusivo, uso medicinal, e o comércio da cannabis, assegurando que todos os cidadãos possam acessar os cuidados de saúde de que necessitam sem o risco de criminalização em nenhuma esfera.


[1] São palavras da Dra. Sílvia Souza, Presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB, na oportunidade que se discutiu, na Câmara dos Deputados, a PEC 45/23. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=C9M8hysFdBI >.

[2] Disponível em https://g1.globo.com/saude/noticia/2024/01/16/consumo-de-tabaco-diminui-em-todo-o-mundo-mas-ainda-ha-125-bilhao-de-fumantes-aponta-relatorio-da-oms.ghtml

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  • é advogada, especialista em ciências criminais, presidente da Comissão de Políticas de Drogas da OAB/SC, sócia-fundadora do escritório Schramm Advogados Associados, diretora regional da Rede Reforma em Santa Catarina e diretora jurídica na Associação Brasileira de Cannabis Medicinal (Santa Cannabis).

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