Direitos Fundamentais

Dever constitucional de descarbonização da matriz energética brasileira

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10 de novembro de 2023, 8h00

Diversos economistas mundo afora têm empenhado esforços no sentido de reconstruir as bases estruturantes do regime capitalista rumo ao que se poderia denominar de um “capitalismo ecológico/climático”, capaz de reconhecer que o sistema econômico deve obrigatoriamente tomar como condição sine qua non ou premissa incontornável o respeito aos limites planetários, dentre os quais se identifica a integridade e segurança do sistema climático atmosférico [1].

O Relatório do Clube de Roma sobre os Limites do Crescimento (1972) ilustrou bem esse cenário já no início da Década de 1970 [2]. A afirmação em questão não representa nenhuma novidade para a ciência econômica, afinal de contas, a origem etimológica da palavra “economia” deriva das expressões gregas oikos (casa) e nomos (administração, organização, distribuição etc.).

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​Economia, nesse sentido, opera como sinônimo para “administração da casa”. E, na medida em que o planeta Terra é a nossa “casa ou morada existencial”, a administração dos recursos naturais deve obrigatoriamente respeitar os seus limites e sua integridade, sob pena de criarmos um desequilíbrio e, por exemplo, incendiarmos a nossa própria casa (exemplo: aquecimento global), tornando-a inabitável para todos aqueles que dela dependem para a sua sobrevivência.

A teoria econômica tradicional edificada ao longo do século 20 é, no entanto, tributária de uma visão absolutamente deficiente — e, pode-se dizer, até mesmo irracional — do ponto de vista ecológico e do respeito aos limites planetários, tal como descritos há décadas pela ciência, notadamente pela ciência da terra. O suposto êxito do modelo econômico contemporâneo, calcado no conceito de “crescimento econômico”, opera, para utilizar a metáfora da “decolagem” de W. Rostow, popularizada no início da década de 1960, e replicada criticamente pela economista inglesa Kate Raworth [3], como um avião que nunca aterrissa e se mantém constantemente em pleno voo (de cruzeiro).

Não é preciso ser um notável expert na matéria, para perceber que há algo de muito errado em uma abordagem econômica que defenda um crescimento econômico “constante” (e, portanto, ilimitado) num cenário planetário de recursos naturais limitados. Esse cálculo não fecha! Os custos ecológicos (poluição generalizada dos recursos naturais, mudanças climáticas, perda da biodiversidade, desmatamento das florestas tropicais etc.) têm sido sistematicamente negligenciados e deixados “de fora” do cálculo econômico. Não por outra razão, tais “custos ecológicos” são conceituados como “externalidades” da atividade produtiva até negligenciados no cálculo do Produto Interno Bruto (PIB).

​Desde o início da Revolução Industrial, em meados do século 18, com a invenção da máquina a vapor, o crescimento econômico tem sido sustentado a partir da queima de combustíveis fósseis (carvão, gás natural, petróleo etc.). Em outras palavras, a “economia do carbono”. O ápice desse processo de intervenção humana no mundo natural em escala planetária ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, alcançando os dias atuais), correspondendo ao período que recebeu o nome de “A Grande Aceleração” e que nos colocou numa nova época geológica denominada de Antropoceno [4], como consequência da magnitude geológica da nossa intervenção no equilíbrio da Terra. Como referido por Raworth, retornando à metáfora do avião, nós precisamos criar uma forma de fazê-lo “aterrissar” e “desacelerar”.  

É justamente o diálogo entre ciências naturais, economia e direitos humanos que propõe Raworth ao descrever o seu conceito de “economia Donut”, reconhecendo os limites planetários (ou teto ecológico) e o piso social como premissas básicas de qualquer teoria e pensamento econômico, notadamente em vista de metas de longo prazo para a humanidade [5]. O conceito de economia Donut, além de operar em sintomia com a concepção de limites planetários e da Ciência da Terra, também se alinha aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU.

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No mesmo esforço de restabelecer uma correção de rota no regime capitalista, destaca-se o trabalho da economista italiana Mariana Mazzucato em torno da sua concepção de “Mission Economy” (Economia-Missão). Temos uma “missão” urgente e central em termos civilizatórios no enfrentamento de problemas altamente complexos (wicked problems), entre os quais se destacam o aquecimento global e as mudanças climáticas.

A economia, por sua vez, deve necessariamente situar-se como aliada da solução de tais problemas, e não do seu agravamento. Os governos, conforme pontua Mazzucato, devem igualmente se reinventar e assumir um protagonismo na construção de um pacto público-privado em prol, por exemplo, da inovação tecnológica sustentável da nossa matriz energética. Como afirma Mazzucato, deve-se “estabelecer metas que sejam ambiciosas, mas também inspiradoras, capazes de catalisar a inovação de múltiplos setores e atores econômicos. Trata-se de imaginar um futuro melhor e organizar investimentos públicos e privados para alcançar este futuro” [6], no sentido de uma economia orientada por propósitos (purposed oriented economy), ademais de ancorada na realização do interesse público primário, mediante a reformulação dos instrumentos governamentais para que se centrem menos em subsídios e mais em investimentos proativos na salvaguarda do bem comum, reestruturando a governança empresarial e repensando a teoria econômica [7].

O debate em questão, por sua vez, pode ser transposto para o plano do Direito Constitucional, notadamente no sentido de se reconhecer a conformação de um novo programa normativo de proteção ecológica e climática, caracterizado por deveres atribuídos ao Estado (e mesmo aos agentes privados) no sentido da progressiva descarbonização da nossa matriz energética e sistema econômico.

Para além das previsões genéricas dos artigos 170, VI [8], e 225 da CF/1988, a iluminar essa compreensão constitucional, destaca-se o novo inciso VIII inserido no §1º do artigo 225 pela Emenda Constitucional 123/2022, que contempla expressamente deveres de proteção climática do Estado, no sentido da promoção da descarbonização da matriz energética brasileira e neutralização climática, relativamente às emissões de gases do efeito estufa decorrente da queima de combustíveis fosseis, ao “manter regime fiscal favorecido para os biocombustíveis destinados ao consumo final, na forma de lei complementar, a fim de assegurar-lhes tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis, capaz de garantir diferencial competitivo em relação a estes(…)”.

A medida em questão expressa os “deveres estatais de mitigação” mediante a redução da emissão de gases do efeito estufa derivada da queima de combustíveis fósseis, inclusive estimulando mudanças e inovações tecnológicas na nossa matriz energética rumo ao uso progressivo de energia limpas (biomassa, eólica, solar, hidrogênio verde etc.). O rol dos deveres de proteção ambiental do Estado traçado pelo §1º e demais dispositivos do artigo 225 da CF/1988, cabe frisar, é apenas exemplificativo, estando aberto a outros deveres de proteção indispensáveis à tutela abrangente e integral do meio ambiente e do clima, especialmente em razão do surgimento permanente de novos riscos e ameaças à natureza provocadas pelo avanço da técnica e intervenção humana no meio natural, como é o caso hoje, por exemplo, do aquecimento global e das mudanças climáticas, impondo ao Estado novos deveres de proteção climáticos (Klimaschutzpflichten [9]).

Como conteúdo dos deveres de proteção climática resultantes do regime constitucional de proteção ecológica estabelecido pelo artigo 20ª da Lei Fundamental alemã — e que foram consagrados no julgamento do Caso Neubauer e Outros v. Alemanha (2021) pelo Tribunal Constitucional Federal alemão —, Thomas Groß, destaca, além da vedação de proteção insuficiente (Untermaßverbot), como objetivo estatal (Staatsziel) correlato, a “vedação ou proibição de piora ou deterioração” (Verschlechterungsverbot) das condições climáticas, inclusive em vista de um dever de adoção de medidas, por parte dos Poderes Executivo e Judiciário, que contemplem a resolução de conflitos lastreados por uma espécie de “princípio” (o autor não chega a utilizar tal nomenclatura) “in dubio pro natura et clima” e, portanto, com práticas resolutivas “amigas do clima” (klimafreundliche Lösungen). Igual desenvolvimento constitucional verificou-se recentemente no Brasil, tanto no plano legislativo (EC 123/2022) quanto jurisprudencial (ADPF 708/DF e ADO 59/DF).

O STF, no julgamento da ADPF 708/DF (Caso Fundo Clima), no ano de 2022, reconheceu expressamente os tratados internacionais em matéria ambiental e climática — como, por exemplo, a Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas de 1992 e o Acordo de Paris de 2015 — como “espécie” do “gênero” tratados internacionais de direitos humanos. Além de estabelecer o status e hierarquia normativa supralegal dos tratados internacionais ambientais e climáticos, a Corte, ao fazer tal equiparação, reconheceu o status de direito humano (e, pela ótica constitucional, de direito fundamental) inerente ao direito ao meio ambiente (e ao clima).

O ministro Barroso, no seu voto-relator, reconheceu expressamente os deveres constitucionais (e convencionais) de proteção climática a cargo do Estado, ao assinalar que: Dever constitucional, supralegal e legal da União e dos representantes eleitos, de proteger o meio ambiente e de combater as mudanças climáticas. A questão, portanto, tem natureza jurídica vinculante, não se tratando de livre escolha política. Determinação de que se abstenham de omissões na operacionalização do Fundo Clima e na destinação dos seus recursos. Inteligência dos arts. 225 e 5º, §2º, da Constituição Federal (CF)” [10]. Igual entendimento encontra-se configurado no voto-vogal do ministro Fachin: “o respeito aos deveres estatais de proteção climática é imperioso. Não há discricionariedade administrativa que permita políticas públicas ou programas de governo que ignorem tais deveres, os quais derivam diretamente do texto constitucional” [11],

Para além do artigo 225 e, em particular, no novo inciso VII inserido no §1º pela EC 123/2022, os deveres estatais de proteção climática também podem ser extraídos do rol de competências constitucionais legislativas (artigo 24) e administrativas (artigo 23) em matéria ambiental, tanto em relação a “deveres de mitigação” das emissões de gases do efeito estufa quanto a “deveres de adaptação” às mudanças climáticas (já em curso e futuras), com especial atenção para a salvaguarda de indivíduos e grupos sociais vulneráveis (ex. deslocados climáticos, vítimas de enchentes, secas, etc.), inclusive em vista da reparação de danos patrimoniais e extrapatrimoniais sofridos por tais pessoas em decorrência de episódios climáticos extremos.

A competência administrativa comum atribuída a todos os entes federativos (União, estados, Distrito Federal e municípios), prevista no artigo 23, VI, de “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas”, deve ser compreendida como abarcando o combate à poluição atmosférica, inclusive no controle da emissão de gases do efeito estufa e do aquecimento global.  As competências previstas no inciso VII do mesmo dispositivo, consistente em “preservar as florestas, a fauna e a flora”, implicam, por exemplo, o dever estatal de proteção da Floresta Amazônica, o que é sinônimo de proteção do clima e dos serviços climáticos — por exemplo, a regulação do regime de chuvas etc.

Nesse contexto, calha destacar que o Brasil é o quinto maior emissor global de gases do efeito estufa, justamente em razão do desmatamento florestal e queimadas, notadamente na região amazônica. Note-se, ainda, que nada obstante a Amazônia Legal represente menos de 9% do PIB brasileiro, ela é responsável por 48% das emissões de gases do efeito estufa [12].

Por fim, para além da proibição de retrocesso ecológico e climático, como já apontado em reiteradas decisões do STF, deriva da ordem constitucional vigente um dever do Estado de aprimoramento e melhoria progressiva do regime jurídico de proteção ecológica e climática, o que passa ,em grande medida, por políticas públicas adequadas à renovação tecnológica e à descarbonização da matriz energética brasileira, estimulando, portanto, o uso progressivo de biocombustíveis e energias limpas, em substituição aos combustíveis fósseis.

Da norma constitucional (artigos 170, VII, e 225, caput e §1º, VIII) e da jurisprudência do STF (ADPF 708/DF e ADO 59/DF), em combinação com o reconhecimento de um direito fundamental ao clima limpo, saudável e seguro [13], verifica-se a caracterização normativa de um verdadeiro dever constitucional de descarbonização da matriz energética e da economia brasileira, de modo a vincular tanto agentes públicos quanto privados num regime de responsabilidade compartilhada.


[1] A respeito dos limites planetários (Planetary Boundaries) e da Ciência da Terra (Earth Science), v. ROCKSTRÖM, J.; GAFFNEY, O. Breaking boundaries: the science of our planet. New York: DK, 2021, bem como o filme-documentário inspirado na obra citada disponível no Netflix.

[2] MEADOWS, Donell H.; MEADOWS, Dennis L.; RANDERS, Jorgen; BEHRENS III, William W. Limites do crescimento: um relatório para o Projeto do Clube de Roma sobre o dilema da humanidade. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1978.

[3] RAWORTH, Kate. Economia donut: uma alternativa ao crescimento a qualquer custo. Rio de Janeiro: Zahar, 2019, p. 289-291.

[4] STEFFEN, Will et al. The Anthropocene: conceptual and historical perspectives. Philosophical Transactions: Mathematical, Physical and Engineering Sciences (Royal Society), v. 369 (The Antropocene: a new epoch of geological time?), nº 1938, mar. 2011, p. 849-853.

[5] RAWORTH, Kate. Economia donut…, p. 54-55.

[6] MAZZUCATO, Mariana. Mission economy: a moonshot guide to changing capitalism. New York: Harper, 2021, p. 6

[7] Idem, ibidem.

[8] Artigo 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…) VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação (redação dada pela Emenda Constitucional nº 42/2003).

[9] GROß, Thomas. Welche Klimaschutzpflichten ergeben sich aus Art. 20a GG. In: ZUR, Heft 7­8, 2009, p. 367 (p. 364‑368).

[10] STF, ADPF 708/DF, Tribunal Pleno, relator ministro Barroso, j. 01.07.2022.

[11] Idem.

[12] VERÍSSIMO, Beto; ASSUNÇÃO, Juliano; BARRETO, Paulo. O paradoxo amazônico: o desastroso processo de ocupação da Amazônia Legal nos oferece, atualmente, as chaves para a construção do seu futuro sustentável (Vol. 50). Manaus: Amazônia 2030, set. 2022, p. 3.

Disponível em: https://amazonia2030.org.br/o-paradoxo-amazonico/.

[13] Na doutrina, v. SARLET, Ingo W.; WEDY, Gabriel; FENSTERSEIFER, Tiago. Curso de direito climático. São Paulo: Thomson Reuters, 2023, p. 148 e ss.

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