Opinião

Políticas públicas femininas de desenvolvimento sustentável na cidade

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21 de dezembro de 2023, 17h27

A implementação de políticas públicas de fomento à economia feminina nas cidades é uma das formas de consecução do desenvolvimento sustentável, dentro do desenvolvimento da microeconomia própria dos municípios. A política deve entregar uma contraprestação à mulher, base da sociedade e maioria do eleitorado, como modo de se operar a sustentabilidade com ênfase na economia local.

Não se verifica, como essa afirmação, nenhum vitimismo, porque, embora as relações sociais e econômicas tenham proporções muito diferentes na atualidade, na atual “sociedade do cansaço”, a produção legislativa, principalmente nos âmbitos federativos locais, ainda é pensada como se estivéssemos no século 20. Assim, o desafio que se apresenta é conciliar a sustentabilidade com os ditames econômicos, para combater a exaustão dos recursos naturais e o empobrecimento de maneira geral.

O fomento de políticas públicas para a promoção da economia feminina visa a minimizar os principais problemas da assimetria de gênero hoje verificadas, como a disparidade de remuneração entre os sexos; baixa escolaridade feminina; crescimento da força de trabalho feminina nos trabalhos manuais sem qualificação profissional, concentrados na área de serviços; baixa adesão feminina nas áreas de produção do conhecimento; e pouca visibilidade da mulher nos postos de gestão.

No entanto, nem o ingresso maciço das mulheres no mercado de trabalho, tampouco a chefia feminina dentro da família, significou a igualdade de remuneração entre os gêneros. Da mesma maneira, a maioria da mão-de-obra não especializada e precarizada é feminina, tendo em vista que a mulher detém a dupla, ou tripla, tarefa de trabalhar “fora”, exercer a maternagem e cuidar dos afazeres domésticos.

A discussão, sob o ponto de vista econômico, se reporta à possibilidade de investimento estatal consistente em Políticas Públicas voltadas para a promoção da economia feminina no âmbito da cidade, como forma promoção do desenvolvimento econômico sustentável, com finalidade de combate à pobreza e de valorização dos saberes femininos, considerando que mulheres são a maioria da população para o crescimento equilibrado das forças produtivas.

Evita-se, da mesma forma, o ciclo vicioso de pobreza feminina através das gerações. Essa limitação sistêmica da prosperidade feminina acarreta a dependência econômica que pode ser identificada como vetor, por exemplo, em vários temas atuais de debate, tais como: racismo, violência patrimonial, condições análogas à escravidão no trabalho doméstico, invisibilidade e vulnerabilidade social, favelização, baixa escolaridade feminina, concentração do trabalho feminino na área de serviços, ausência de sustentabilidade citadina, além da inexpressiva atuação de mulheres na produção de conhecimento e tecnologia.

Héléne Périvier, economista francesa, afirma que, enquanto durar o atual modelo “senhor-ganha-pão e senhora migalhas”, a prosperidade feminina não será possível, o que já foi constatado por diversas correntes divergentes de pensamento, de John Stuart Mill a Karl Marx, Thorstein Veblen e John Maynard Keynes, no sentido de que a desigualdade econômica entre os sexos são construções sociais, históricas e políticas, e não biológicas, naturais e religiosas.

Na mesma linha, o estudo da professora de Harvard, Claudia Goldin, ganhadora no Prêmio Nobel de Economia em 2023, referente ao gender pay gap (em tradução livre, a diferença de remuneração em razão do sexo), investigou a origem histórica da desigualdade salarial entre homens e mulheres, desde a transição da economia agrícola para a economia industrial. Muito embora as mulheres tenham ingressado maciçamente no mercado de trabalho após o controle da fecundidade proporcionado pela pílula anticoncepcional, a remuneração não acompanhou a mesma linha ascendente, de forma que, para que a mulher seja remunerada de forma paritária, na atual velocidade do progresso da questão, serão necessários 169 anos. Vale dizer que não estaremos aqui para ver alguma mudança, se o modo de vida continuar, com pequenas concessões para a mulher de tempos em tempos.

De acordo com a pesquisa da professora Goldin, que analisou de forma detalhada mais de 200 anos de documentação trabalhista dos EUA, a distância remuneratória entre homens e mulheres se deve a um impedimento social de a mulher concluir seus estudos e planejar sua carreira, o que foi possível em parte até agora por conta do controle da natalidade, pontuando que a discriminação remuneratória surge de forma mais incisiva após o nascimento do primeiro filho.

Boaventura Sousa Santos, sociólogo português, destaca que as mulheres sofrem com a precarização das relações trabalhistas e com a heterogeinização dos mercados, porque trabalham em grande medida nos setores em que as relações salariais são mais degradadas, trabalhando como empreendedoras — ou “por conta própria”, ou seja, em um labor falsamente independente, definido como tal apenas para escapar à legislação trabalhista e tributária, e, sobretudo, à seguridade social.

O design das políticas públicas, dessa forma, deve considerar que o capital se modificou, tornando-se algo antes inimaginável, a exemplo das criptomoedas, um vazio em si mesmas. Se, por um lado, a modificação do sistema se mostra difícil, porque as atuais estruturas ideológicas, econômicas e políticas estão postas de forma eficaz, sobressaindo o padrão estabelecido de solitude da luta do trabalhador, transformando-o em empreendedor individual, de outro eito, a luta para dar início a mudanças deve ser coletiva.

Malgrado haja políticas públicas ineficientes, por desconexão com a realidade, a tomada de decisão deve considerar a especificidade da luta diária feminina. Embora o fim da maternidade forçada com o surgimento de métodos contraceptivos tenha significado um elemento libertador, há outros empecilhos atualmente à prosperidade feminina, como o exercício da maternagem forçada e a imposição de tarefas domésticas e deveres de cuidado com pessoas com necessidades especiais e idosos. Essas obrigações, que não são biológicas, mas sociais, causam uma desvantagem social feminina para a consecução da plenitude econômica.

Para que se mude o ângulo da questão, o cuidado deve ser uma obrigação coletiva para com as pessoas mais vulneráveis — bebês, crianças, adolescentes, pessoas com necessidades especiais e idosos. A ideia do dever coletivo de cuidado da própria comunidade não é um fato inédito. O próprio sentido Ubuntu africano e a dinâmica de acolhimento da tribo verificada nos povos originários são exemplos de como o exercício da maternagem deve ser um dever e um direito coletivo.

Para a implementação de políticas públicas de desenvolvimento sustentável nas cidades, as evidências apontam que a mulher preta traz consigo o saber ancestral e atual suficientes para mudar a sociedade. Lélia Gonzalez, intelectual brasileira, estudou o tema de forma profunda, verificando que a mulher negra, base da sociedade brasileira, é submetida a uma gama de tarefas laborais decuplicada, haja vista que, além de ser o alicerce moral e religioso da comunidade, promove o sustento da família, e, ainda, por muito tempo, trabalhou limitada à função de empregada doméstica nas casas de classe média, ou na área de serviços subalternizados, como limpeza.

Dessa forma, a mulher negra, base da sociedade brasileira, deve ser a atenção das políticas públicas para alavancar a economia nas cidades, diante da simples conclusão de que, uma vez que a base da pirâmide social seja tocada com a prosperidade econômica, o restante da sociedade acompanha essa evolução.

Mas não se deve olvidar que os desafios políticos do século 21 perpassam por uma nova forma de mobilização social, no combate à apatia política e à precarização da vida em geral. Assim, a preocupação no desenho das políticas públicas deve levar em consideração os seguintes aspectos: envelhecimento da população e suas consequências, violência de gênero, maternidade e maternagem forçadas, diferença remuneratória em razão do sexo, população invisibilizada desprovida de renda e favelização, pontos de convergência entre vários movimentos sociais, inclusive o feminista.

Assim, a agenda política se vê de forma inelutável enredada na agenda dos direitos das pessoas socialmente vulnerabilizadas, mulheres, negras e LGBTQIA+, dentro do conceito de interseccionalidade, o que significa que as pautas se entrelaçam e têm pontos de convergência, mas também de divergência.

Sobre o papel dos homens no processo, Angela Davis, pensadora estadunidense, sustenta que sua participação é fundamental. Para a ativista, o feminismo não está relacionado a um corpo, em específico ao corpo feminino, mas se trata de guia para as estratégias de luta social: “a questão de como se unir os movimentos [sociais] é também uma questão sobre o tipo de linguagem que é utilizado e a conscientização que se tenta transmitir”.

Nessa toada, sob o ponto de vista dos direitos das mulheres, há uma série de questões que devem ser enfrentadas: fardo desproporcional da pobreza sobre a mulher, discriminação no mercado de trabalho, analfabetismo, assistência médica inadequada, mutilação genital, e imagens corporais distorcidas pela mídia e pelas redes sociais.

Sem dúvida que mulheres são mais afetadas pela falta de oportunidades de empregos e educação. Nesse sentido, o professor estadunidense Mike Davis estuda a condição econômica de precariedade da condição feminina mundo afora, exemplificando que os direitos de higiene e resguardo da privacidade não existem em muitos locais em que as mulheres são obrigadas a fazer as necessidades orgânicas em público, como na África e na Índia. Limitadas muitas vezes pelo aspecto religioso e com medo da violência sexual, optam por fazer suas necessidades em grupos, às 5h da manhã, uma única vez no dia.

Verifica-se, dessa forma, que o combate à pobreza significa o incremento da agenda feminina e a melhoria das condições econômicas femininas dá origem à prosperidade da sociedade.

As políticas públicas devem, para alcançar objetivos exitosos, espelhar de forma significativa a realidade das mulheres, maioria da população, como força de trabalho pujante e esperança econômica para o desenvolvimento sustentável necessário, com a adoção de leis que instituam a igualdade substancial entre os sexos pode mudar o contexto social, porque a diferença entre os sexos tem maior raiz histórica que biológica, ou seja, tudo é artificial na coletividade humana.

A partir do que foi exposto, surgem algumas conclusões: para que a condição da mulher evolua dentro do contexto social, a luta deve ser coletiva, de ambos os sexos; para a implementação de políticas públicas de fomento à economia feminina, no âmbito das cidades, afigura-se indispensável a adoção de noções de interseccionalidade; e para se minimizar o avanço limitado das mulheres aos bens do capital de geração em geração, são necessárias políticas de capacitação feminina, tendo em vista que a maioria da mão-de-obra sem especialização é feminina.

As políticas públicas devem ser implementadas com ênfase no combate à diferença de remuneração em razão do sexo, condição laboral precária, precarização dos custos laborais inerentes à proteção da manutenção dos postos de trabalho femininos e carência de prestações sociais de fomento à criação de postos de trabalho qualificados para as mulheres.

Portanto, uma melhor distribuição de renda, mais oportunidades de ascensão econômica feminina e inclusão social, com predominância da capacitação feminina nas áreas do conhecimento para o desenvolvimento sustentável, além de incentivos fiscais ao trabalho feminino, se mostram medidas necessárias para o desenvolvimento social como um todo.

 

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