Menos protagonismo

Troca na Corregedoria do TSE indica um novo caminho, de mínima intervenção

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9 de novembro de 2023, 8h45

O relevante papel que a Justiça Eleitoral cumpre no Brasil deve se basear em um princípio de mínima intervenção, para a preservação e o aprimoramento da democracia e de suas liberdades. Além disso, o protagonismo estatal nessa seara deve ser autocontido.

Antonio Augusto/Secom/TSE
Raul Araújo assume a função de Corregedor-geral da Justiça Eleitoral no Tribunal Superior Eleitoral

Esse tem sido o entendimento do ministro Raul Araújo, que assumirá a Corregedoria da Justiça Eleitoral em substituição ao ministro Benedito Gonçalves. Ele encerra seu biênio como integrante titular do TSE nesta quinta-feira (9/11).

A troca indica uma nova linha de condução do órgão. A posição acima mencionada foi manifestada por Araújo nos julgamentos de representações por propaganda irregular nas eleições de 2022 e reproduzida, em maior ou menor medida, em diversas outras ações julgadas pela corte eleitoral.

Araújo parte da premissa de que a democracia é um espaço para permissões, licitude, possibilidades, criatividade e livre concorrência, e não para proibições, vedações, restrições ou para categorias e modelos predefinidos ou excessivo dirigismo estatal.

Essa ampla liberdade, porém, não é absoluta. Segundo Araújo, um mínimo de intervencionismo estatal faz-se sempre necessário para inibir práticas desleais, selvageria e agressões desmedidas, em que o mais forte e poderoso pode livremente submeter ou explorar os mais fracos.

A posição fez o novo corregedor ficar vencido em várias das oportunidades em que o TSE adotou posturas restritivas, inclusive nas três ações de investigação judicial eleitoral (Aijes) em que foram reconhecidos abusos de poder na campanha presidencial do ano passado.

Esse rigor do TSE foi manifestado em um cenário de desinformação massificada e ameaça antidemocrática, que, nas palavras do presidente da corte, ministro Alexandre de Moraes, obrigou o tribunal a inovar nas estratégias de defesa do Estado democrático de Direito.

Por isso, a sucessão ganha ainda mais relevância. Benedito Gonçalves ficou no cargo 428 dias, e Raul Araújo terá menos tempo: encerrará seu mandato em 6 de setembro do ano que vem, após 302 dias como corregedor. Com a mudança, a ministra Isabel Gallotti assumirá uma vaga de titular no TSE.

Antonio Augusto/Secom/TSE
Ministro Benedito Gonçalves deixa a função de corregedor-geral da Justiça Eleitoral na quinta

Visões de mundo
Outro indício da mudança de perfil na Corregedoria reside no fato de Benedito Gonçalves e Raul Araújo terem se colocado em polos opostos em diversas ações de alta relevância no TSE — o primeiro, como parte da corrente vencedora; o segundo, com voto vencido.

Foi assim quando o TSE trocou o critério restritivo das “palavras mágicas” para julgar propaganda antecipada, adotando outro mais amplo, baseado no “conjunto da obra”. Na ocasião, Araújo manifestou preocupação com o abandono de fundamento seguro e objetivo para orientar tais análises.

O mesmo ocorreu quando o tribunal ampliou a interpretação da regra da Lei das Eleições criada para vetar manifestações anônimas na internet durante a campanha eleitoral, de modo a permitir a aplicação de multas por disseminação de notícias fraudulentas.

E também quando, sem conhecer o conteúdo, o TSE adiou a estreia de um documentário sobre a facada sofrida por Jair Bolsonaro na campanha de 2018. A obra ficaria à disposição do eleitorado seis dias antes do segundo turno de 2022. O caso levantou discussão sobre censura.

Recentemente, essa diferença de posicionamento ficou mais evidente. Benedito Gonçalves apresentou proposta de resolução que confere à Corregedoria o poder de instaurar, de ofício, inquérito administrativo para apurar risco à normalidade eleitoral no país.

Raul Araújo divergiu por entender que isso ampliaria em demasia a função do órgão, a quem não cabe atuar de ofício, e propôs uma alternativa: delegar tais pedidos de investigação ao Ministério Público Eleitoral. O caso continua em análise na corte, após pedido de vista.

O uso das Aijes é um tema que deixa o novo corregedor procupado. Ainda em setembro de 2022, ele foi contra referendar a liminar que proibiu Bolsonaro de fazer lives nos Palácios do Planalto e da Alvorada, nas ações que seriam julgadas improcedentes em outubro do ano passado.

O magistrado entendeu que os autores da ação não demonstraram que a conduta poderia representar abuso de poder político. Assim, não caberia o uso da Aije, cuja competência é exclusiva do corregedor do TSE. O certo, para ele, seria ajuizar uma representação, que tem distribuição livre e aleatória.

E, em março, Araújo também foi contra a ordem de devolução de recursos públicos feita pelo TSE em uma Aije. Ele sustentou que essa imputação é própria da prestação de contas e depende de análise de despesas. Em uma ação que discute fraude à cota de gênero, seria impor uma “sanção surpresa”, de acordo com o seu entendimento.

José Cruz/Agência Brasil
Corregedor do TSE é sempre o relator das ações de investigação judicial eleitoral da eleição a presidente

Legado e rigor
Benedito Gonçalves, por sua vez, encerra sua passagem pelo TSE deixando forte legado jurisprudencial, pelo qual tem sido apoiado e elogiado publicamente. A começar pela forma como conduziu as Aijes da intensa campanha presidencial de 2022.

Ele adotou o rito de resolver antecipadamente questões preliminares que poderiam levar à extinção do processo sem resolução de mérito ou afetar a definição do curso da instrução. Isso levou ao fim prematuro de 12 das 34 Aijes ajuizadas contra os presidenciáveis.

Nas chamadas decisões saneadoras do processo, surgiram importantes inovações. A principal foi o estabelecimento de critérios para a inclusão de novos documentos, uma conduta que, como mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico, criou ponto cego recursal para as defesas.

Isso serviu para a “minuta do golpe”, descoberta apenas em janeiro deste ano, mas usada para julgar a reunião de Bolsonaro com embaixadores ocorrida em agosto de 2022. Juristas ouvidos pela ConJur concluíram que o TSE ampliou a análise do abuso, mas eles divergiram sobre o acerto da medida.

Já na ação sobre abuso de poder econômico por meio da contratação de links patrocinados, o corregedor desagradou às partes ao ampliar pedido de informações ao Google, com a justificativa de obter o contexto completo sobre o uso da plataforma Google Ads em 2022.

As Aijes foram julgadas improcedentes pelo TSE, mas as informações recebidas apontaram indícios de abuso no uso da ferramenta tanto pela campanha de Bolsonaro quanto pela de Luiz Inácio Lula da Silva, o que pode levar o tribunal a regulamentar o tema — inclusive por sugestão de Raul Araújo.

Com Benedito Gonçalves, o TSE foi célere. Apenas um ano após as eleições de 2022, oito Aijes já foram concluídas. Para isso, ele admitiu pela primeira vez o julgamento conjunto por similitude jurídica de ações sobre fatos distintos e com causas de pedir diferentes.

A busca por celeridade também o levou a separar ações que tiveram instrução processual conjunta. Foi o que ocorreu no caso que culminou na condenação de Bolsonaro e seu vice na campanha de 2022, Walter Braga Netto, por abuso de poder na celebração do bicentenário da Independência.

Três Aijes sobre o episódio correram simultaneamente, mas só duas foram levadas a julgamento. O relator não quis aguardar a terceira por ser mais ampla e complexa: é a única que implica também empresários e membros de movimentos sociais. São 15 deles, ao todo.

Os presidenciáveis não foram os únicos a experimentar o rigor com que Benedito Gonçalves atuou no TSE. Foi ele também o responsável pelo voto que cassou o mandato do ex-chefe da “lava jato”, Deltan Dallagnol, por fraude à lei eleitoral, tornando-o inelegível por oito anos.

Veja as Aijes julgadas sob relatoria de Benedito Gonçalves:

ProcessoTemaAutorRéuResultado
0600814-85.2022.6.00.0000Reunião com embaixadoresPDTJair BolsonaroProcedente
0600828-69.2022.6.00.0000Lives feitas com uso de bens públicosPDTJair BolsonaroImprocedente
0601212-32.2022.6.00.0000Lives feitas com uso de bens públicosPDTJair BolsonaroImprocedente
0601665-27.2022.6.00.0000Lives feitas com uso de bens públicosColigação Brasil da EsperançaJair BolsonaroImprocedente
0601312-84.2022.6.00.0000Links patrocinados durante a campanha eleitoralColigação pelo Bem do Brasil e Jair BolsonaroLulaImprocedente
0601382-04.2022.6.00.0000Concessão de entrevistas durante o horário de votaçãoColigação pelo Bem do Brasil e Jair BolsonaroLulaImprocedente
0600972-43.2022.6.00.0000Abuso no Bicentenário da IndependênciaPDTJair Bolsonaro e Braga NettoProcedente
0600986-27.2022.6.00.0000Abuso no Bicentenário da IndependênciaSoraya ThronickeJair Bolsonaro e Braga NettoProcedente

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