Opinião

É genocídio? Análise da situação yanomami pela Corte Internacional de Justiça

Autor

  • Tatiana Cardoso Squeff

    é professora adjunta de Direito Internacional Ambiental e do Consumidor na UFRGS professora do PPGDI da UFU e do PPGRI da UFSM doutora em Direito Internacional pela UFRGS/U. Ottawa mestra em Direito Público pela Unisinos/U. Toronto membro da ILA-Brasil e da Asadip pesquisadora do Neti/USP e pós-doutoranda em direitos e garantias fundamentais na FDV.

2 de fevereiro de 2023, 13h08

Muito tem-se falado nas últimas semanas sobre os povos indígenas yanomami e o cometimento de genocídio. Ocorre que este delito — crime de genocídio — apresenta diversas particularidades que advém do Direito Internacional Público, as quais não podem ser desconsideradas pelo operador do Direito ao ponderar sobre as condutas do último governo quanto à assistência daquele povo originário. Isso, pois, são tais particularidades que dão ao citado delito uma característica especial, passível de proteção também pelo plano externo.

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Vejamos. A primeira sentença que devemos nos reportar quando se trata da ocorrência de crime de genocídio para apurar eventual responsabilidade estatal é o caso da Bósnia Herzegovina versus Sérvia, julgado pela Corte Internacional de Justiça (CIJ) em 26/02/2007 (Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide). A corte aponta que "matar" e "causar prejuízo mental ou físico sério" devem ser intencionais, conscientes e deliberados (para. 186). Para chegar a essa conclusão, a Corte se vale dos comentários da Comissão de Direito Internacional — órgão das Nações Unidas formado por renomados juristas internacionais que tem como objetivo ponderar sobre o Direito Internacional em prol do seu desenvolvimento contínuo — ao Draft Code of Crimes against the Peace and Security of Mankind de 1996.

Ou seja, não é suficiente apresentar os elementos básicos do crime de genocídio constantes na Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, ou Convenção de 1948, a qual determina que o citado delito ocorre quando há a tentativa ou o ato deliberado de destruir no todo ou em parte certo grupo com base em raça, religião, nacionalidade ou etnia. Para a CIJ é necessário apresentar a intenção e esta deve ser definido precisamente (para. 187). Este "algo a mais" ao ato deliberado, chamado de dolus specialis, é essencial segundo a Corte.

A CIJ ainda faz um diálogo entre cortes ao citar a jurisprudência do Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia (ICTY), especificamente o caso Procurador versus Kupreškic et al. (para. 636), em que foi determinado que "genocídio deveria ser acompanhado pela intenção de destruir, no todo ou em parte, o grupo ao qual a vítima de genocídio pertença", sendo essa a diferença entre perseguição discriminatória para fins de crime contra a humanidade e genocídio. Assim, refere este julgado citado pela CIJ, que pelo means rea, o genocídio "é um ato extremo de perseguição e altamente desumano", que não pode ser confundido com outras razões ou motivos, devendo ser, por isso, claro.

É interessante apontar que no caso da Bósnia Herzegovina versus Sérvia, a CIJ ainda traz que a intenção que caracteriza o genocídio é a de destruir no todo ou em parte um grupo particular, e que outras condutas, mesmo quando realizadas mediante o uso da força, não seriam necessariamente equivalentes a destruição do grupo em si, nem poderiam ser considerados como uma consequência automática do ato (parágrafo 190). Contudo, a CIJ faz uma ressalva importante para a análise do caso dos yanomami, tecendo que infligir deliberadamente nas condições de vida de um grupo para promover a sua destruição física no todo ou em parte poderiam ser considerados atos genocidas, desde que provado, ainda, o aludido dolus specialis na realização da conduta pelo agente. Nessa toada, tem-se que a intenção específica em eliminar no todo ou em parte um grupo é um caráter determinante para que uma conduta possa ser considerada genocídio.

Tais intenções, porém, podem ser provadas por atos paralelos levados a cabo contra um grupo particular — como a sua expulsão de uma localidade — que igualmente podem apresentar indicativos da presença de uma vontade/inspiração específica do perpetrador na realização de genocídio, como apontou-se noutro julgado do ICTY, Procurador versus Stakic (para. 519), referido pela CIJ. Contudo, como arguido pela Sérvia valendo-se desde mesmo caso e de Procurador versus Brdanin, importante dizer que nem sempre tais atos paralelos serão considerados genocidas, sendo esta uma mera possibilidade — e não uma consequência certa. Até mesmo porque, nesses casos, tal tribunal não reconhecera o dolus specialis dos agentes.

Neste mesmo giro, recorda-se que a CIJ entendeu, na decisão em análise, que os eventos em geral perpetrados na Bósnia Herzegovina entre 1991 e 1995 não teriam apresentado a necessária intenção específica dos agentes para constituírem genocídio (para. 370). A CIJ argumenta que a intenção específica de destruir no todo ou em parte um grupo particular "deve ser demonstrada de maneira persuasiva pela referência a circunstâncias específicas, a não ser que haja uma demonstração convincente acerca da existência de um plano geral arquitetado para tal fim" (para. 373). No caso, isso não teria ocorrido, apesar da argumentação da Bósnia no sentido de que teria havido um plano genocida institucionalmente gerido, demonstrado pela existência de campos de concentração não só na Bósnia, mas igualmente na Croácia e no Kosovo. O suporte legal para a decisão da CIJ restou em uma série de julgados do ICTY (paras. 374 e 375), em que se demonstrou que, com a exceção de atos cometidos em Srebrenica (que foram apresentados como genocídio ao ICTY), outras condutas foram apreciadas como crimes contra a humanidade ou mesmo tiveram as acusações retiradas em virtude da falta de intenção específica dos agentes.

Nesse interim, acerca dos yanomami, o que se absorve do julgado da CIJ é que ter-se-ia que comprovar a intenção dos agentes em cometer o ato genocida, não se mostrando suficiente listar algumas violações de direitos humanos, por mais graves que sejam, como a situação de degradação física proveniente de uma situação de inanição e de mortes derivadas desta, de mortes geradas pela desassistência sanitária relativa à pandemia de Covid-19 (como trouxe a Comissão Parlamentar de Inquérito), da concessão de autorizações de garimpo em território ancestral não-demarcado, forçando o seu deslocamento e atos de violência, ou mesmo da existência de diversos pedidos não atendidos de auxílio realizados junto ao governo federal. Seria necessário comprovar que estas condutas eram dirigidas intencionalmente contra os yanomami, com a intenção de matar no todo ou parte membros deste grupo étnico. No caso, resta mais palpável dizer que os atos genocidas foram perpetrados por garimpeiros do que por autoridades do antigo governo, particularmente se essa argumentação tiver como pressuposto a eventual obtenção de responsabilidade internacional individual penal.

Por outra banda, interessante ponderar sobre eventual responsabilidade do Estado derivada dos atos dos antigos governantes, em que pese não seja possível falar em submissão do caso à CIJ em virtude desta não ouvir casos de particulares, mas apenas de Estados, nos termos do artigo 34 do seu estatuto. Outrossim, poder-se-ia beber desta argumentação para fins de uma potencial responsabilização internacional estatal perante corte regional de direitos humanos, quando seria necessário ponderar sobre a atribuição de atos ao Estado.

Para isso, volta-se ao estudo do caso Bósnia Herzegovina versus Sérvia, mas especificamente quanto aos atos realizados em Srebrenica, de julho de 1995. A CIJ apontou para a necessidade de se verificar três questões para conferir a ocorrência de genocídio atribuível ao Estado (para. 379): (a) se os atos foram cometidos por agentes ou órgãos da Sérvia; (b) se os atos, concretos ou tentados, foram cometidos por incitação direta e pública pelas autoridades sérvias ou com a sua ajuda, logo, averiguando a sua atribuição ao Estado; e (c) se o Estado cumprira com a sua obrigação dupla de prevenir e punir tais atos, nos termos do artigo 1 da Convenção de 1948.

Sobre o primeiro ponto, a corte concluiu (para. 395) que os atos não seriam atribuíveis diretamente ao Estado Sérvio, justamente por aqueles que cometeram atos genocidas em Srebrenica não (1) serem oficiais ou representantes de órgãos estatais, ou mesmo (2) agirem em dependência completa ao Estado, enquanto um mero instrumento seu de manobra. Nesse item ainda se discutiu se aqueles indivíduos que cometeram tais atos estavam agindo em nome do Estado. Sobre o tema, a corte rememorou que para que isso ocorresse, seria necessário provar que os indivíduos seguiam ordens diretas do Estado para a realização de condutas específicas ou estavam sob seu controle efetivo (para. 400). E, sobre isso, apontou que não havia elementos suficientes para considerar a Sérvia responsável, tendo a Bósnia falhado em comprovar que Belgrado havia fornecido instruções para o cometimento de genocídio ou mesmo que essas condutas teriam sido conduzidas sob seu efetivo controle, de modo que o país também teria incorrido em falha em comprovar que haveria um dolus specialis presente nas próprias supostas instruções (para. 413). Além disso, quanto ao segundo ponto, a CIJ expressou que não haviam provas de incitação direta e pública pelas autoridades sérvias (ou mesmo aquelas que eventualmente estariam em seu controle efetivo) para o cometimento de genocídio em Srebrenica (para. 417).

Já em relação ao último item, uma constatação salta aos olhos, qual seja, se poder-se-ia falar de cumplicidade estatal para o cometimento de crime de genocídio (paras. 381 e 383). A cumplicidade estatal, segundo determinou a CIJ, não estaria atrelada ao ato genocida em si, cometido pelo agente ou seus órgãos. Tratar-se-ia de uma obrigação derivada do dever de prevenção, isto é, havendo genocídio, falharia o Estado não só por ativamente cometer essa conduta por meio de agente estatal ou seus órgãos (nos termos debatidos acima, referentes aos itens a e b), como por agir de maneira omissiva, não o prevenindo (sendo, portanto, “cúmplice” por omissão).

Essa cumplicidade não pode ser, porém, confundida com aquela havida nas discussões do para. 419ss da decisão da CIJ sobre facilitação (facilitating) ou permissão (enabling) da ocorrência do genocídio. Importante dizer que, à luz deste julgado, a cumplicidade estatal igualmente advém da sua assistência no cometimento do ato internacionalmente ilícito (que seria relativo aos debates do item b). Aqui, todavia, seria necessário comprovar que os órgãos estatais ou os seus agentes colaboraram para a conduta perpetrada por outrem e, ainda, no caso específico de genocídio, que este sabia abertamente (knowingly) da intenção do perpetrador principal quanto ao cometimento do ato genocida. E sobre isso, a Corte diz que não tinha como comprovar sem quaisquer dúvidas (beyond any doubt) que os sérvios sabiam ou mesmo se existia abertamente uma intenção genocida da Republika Srpska (VRS) na condução de suas operações em Srebrenica em eliminar fisicamente os membros do gênero masculino e de religião muçulmana que ali habitavam (para. 422). A mera existência de apoio político, militar e financeiro da Sérvia à VRS não era suficiente para esse fim.

Por outra banda, retornando à análise do item c acerca do dever de prevenção, rememora-se que a obrigação dos Estados em prevenir atos de genocídio é de meio, como apontou a CIJ (para. 430), de modo que o país não incorre em responsabilidade internacional pela ocorrência de um ato de genocídio caso ele, dentro das suas capacidades, tenha adotado todas as medidas para evitá-lo. Ademais, anota-se que somente poder-se-ia falar em responsabilidade internacional por omissão estatal caso o ato de genocídio tivesse sido realizado ou quando a tentativa do seu cometimento fosse conhecida pelo país (ou que este devesse ter tido conhecimento da mesma), como bem lembra a corte (para. 431). Assim, teceu a CIJ que a Sérvia tinha conhecimento da operação, que estava ciente do clima acirrado entre os sérvios-bósnios e os muçulmanos na região e que teria os meios para prevenir o massacre em virtude da sua influência em relação à liderança da VRS, incorrendo em responsabilidade (para. 438). Vale ainda dizer que, neste parágrafo, quando se trata de prevenção, a CIJ parece ter apontado que o potencial risco de um ato ser posteriormente marcado como genocídio mostra-se suficiente para fins de responsabilização, não sendo necessário ponderar se o ato posteriormente foi de fato um ato de genocídio para responsabilizar o Estado por sua omissão de prevenção.

Acerca do exposto, portanto, em relação aos yanomami, pode-se inferir sobre alguns fatos. Inicialmente, para a responsabilização direta do Estado, precisar-se-ia comprovar a intenção dos agentes estatais (ou daqueles que conduziram tais atos como agindo sob ordens diretas ou sob seu efetivo controle) em realizar um ato genocida, com dolus specialis. Nesse caso, parece ser uma argumentação um pouco distante do que se tem em mãos hoje em dia em termos de provas. Ademais, sobre a incitação ou a ajuda das autoridades brasileiras para o cometimento de genocídio, não só provas relativas ao fornecimento de instruções devem existir para o primeiro, como também deveria conhecer-se a intenção aberta dos perpetradores em matar no todo ou em parte o grupo indígena para o segundo.

Por fim, o ponto que parece oferecer um raciocínio mais palpável neste momento para fins de responsabilização brasileira por genocídio diz respeito à prevenção. Não só o Brasil internalizou a Convenção de 1948 por meio do Decreto 30.822/1952, como o governo federal recebera informações de que os indígenas precisavam de assistência, omitindo-se de atuar, logo, gerando violações de direitos humanos. A grande questão neste ponto, porém, é se essas violações teriam um potencial de serem consideras como indicativos da presença de uma vontade/inspiração específica do perpetrador para a realização de genocídio. Talvez, considerando os garimpeiros como perpetradores, a invasão de terras de maneira violenta por estes e o consequente deslocamento também violento populacional seriam os mais próximos a isso. Entretanto, considerando o caso da CIJ em comento, isso talvez não seja suficiente.

Mas é claro que em eventual análise pelo Sistema Interamericano, o argumento não seria especificamente o genocídio, mas a ação/omissão geradoras de violações prescritas na Convenção Americana, como o direito à vida (artigo 4), à integridade física (artigo 5), à propriedade (artigo 21) e os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais (artigo 26), como o direito à saúde, ao alimento, à água potável e à cultura. Vale lembrar que a Corte Interamericana já havia ordenado, em sede de medidas provisórias em 2022, que o Brasil resguardasse os direitos dos yanomami. Agora, porém, tem-se que aguardar as vias internas deliberarem sobre o tema — passo necessário para que, no caso de contínua violação, o plano externo seja acionado.


Referências

CIJ. Bósnia Herzegovina v. Sérvia. Julgamento 26/02/2007. Disponível em: https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/91/091-20070226-JUD-01-00-EN.pdf (acesso em 27/1/2023).

Autores

  • é professora de Direito Internacional e Direito do Consumidor da UFRGS e professora do PPGD/UFU e do PPGRI/UFSM, mestre pela Unisinos. Doutora em Direito Internacional pela UFRGS, com período-sanduíche junto à University of Ottawa, membro da ILA-Brasil e do Brasilcon.

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