Opinião

Projeto de Lei 3.780/2023: entre sofismas, (mais) penas e seletividade

Autores

  • Ricardo Calmona Souza

    é advogado pós-graduando em Jurisprudência Penal pelo Curso CEI (Faculdade Cers) e integrante do Grupo de Pesquisa Constituição Direitos Humanos e Poder Punitivo da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Grupo de Estudo e Pesquisa em Direito Penal Econômico da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).

  • Hamilton Gonçalves Ferraz

    é advogado doutor em Direito pela PUC-Rio mestre em Direito Penal pela UERJ professor de Direito Penal e Prática Penal (Unesa) e ex-professor substituto de Direito Penal e Criminologia na UFRJ.

12 de dezembro de 2023, 16h25

Há algum tempo, uma obra um tanto conhecida, já alertava (BECCARIA, 2012): que a pena não seja um ato de violência de um ou de muitos contra um membro da sociedade. Ela deve ser pública, imediata e necessária, a menor possível para o caso, proporcional ao crime e determinada pelas leis”. Desde então, não parece ter havido qualquer mudança acerca da redução da criminalidade ou mesmo das penas. A bem da verdade: “a má notícia é que, sem dúvida, acabar com a criminalidade é impossível, uma vez que a tipificação penal é também ato político, e nenhuma sociedade esteve, até hoje, isenta de alguma forma de violência” (FALAVIGNO, 2020).

Sem minimamente levar em conta tais diretas e singelas advertências, recentemente, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei n° 3.780 de 2023 que visa alterar o Código Penal a fim de majorar as penas previstas para os crimes de furto, roubo, receptação, receptação de animal e interrupção ou perturbação de serviço telegráfico, telefônico, informático, telemático ou de informação de utilidade pública, bem como para tipificar os crimes de recepção de animal doméstico e de fraude bancária. É sobre este Projeto que nos debruçamos neste breve ensaio crítico a propósito de seus despropósitos e escancarada seletividade.

Primeiramente, não se pode olvidar que toda criminalização — e, mais sensivelmente, no campo dos crimes patrimoniais, dentre os maiores responsáveis pelo superencarceramento brasileiro — acarreta consequências no âmbito do processo de execução penal, que, representado pelo sistema carcerário, garante a matriz das desigualdades sociais e reproduz a marginalização social (SANTOS, 2022).

Nesse sentido, deve-se também considerar o baixo investimento para infraestrutura e serviços básicos, que prejudica a reintegração das pessoas presas e que o principal custo prisional é relativo aos gastos de manutenção, sendo a maior parcela para o pagamento de funcionários e que de 11 estados que informaram dados com alimentação, dez possuem um gasto mensal abaixo do valor da cesta básica total (CNJ, 2021).

Inobstante, segundo relatório recente elaborado pelo CNJ, em 2022 ingressaram, 3,7 milhões de novos casos criminais, sendo iniciadas, pelo menos 585.000 execuções penais, e, ainda, chama atenção o fato de que um dos assuntos mais demandados nos Tribunais Superiores são referentes à prisão preventiva e de pena privativa de liberdade (CNJ, 2023).

Não bastasse a realidade no mínimo problemática do sistema penal brasileiro acima muito brevemente exposta, vale relembrar que, em 2019, com o advento do “pacote anticrime”, já foram promovidas mudanças significativas quanto aos crimes patrimoniais sob comento: (i) o furto de caixa eletrônico com explosivo foi considerado crime hediondo; (ii) ao incluir o §5° ao art. 171 do Código Penal, alterou-se a natureza da ação penal do crime de estelionato para pública condicionada à representação [1]; e (iii) incluiu o §2°-B no artigo 157 do Código Penal — tornando qualificado o roubo perpetrado com arma de uso restrito ou proibido e dobrou a pena que antes era de 4 a 10 anos para 8 a 20, tão hediondo quanto o roubo com emprego de arma de fogo (artigo 157, §2º-A, I), que conta com aumento de pena de 2/3. Esse cenário revela que exigir representação, como condição de procedibilidade,  apenas quanto ao crime de estelionato, tende a reforçar a seletividade penal, já que, se nem o furto simples conta com a mesma exigência, legitima-se e, quiçá, institucionaliza-se a marginalização.

Assim, aumentar a pena de crimes patrimoniais certamente implicará no aumento da população carcerária, reforço do racismo institucional e aporofobia [2] que permeia sistema carcerário brasileiro já considerado em estado de coisas inconstitucional pelo STF (ADPF 347), isso porque os dados de encarceramento demonstram a naturalização de práticas racistas pelos poderes constituídos que impactam no próprio enviesamento das instituições punitivas (CARVALHO, 2015).

Por outro lado, dados apontados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2023) indicam uma tendência de queda da criminalidade patrimonial violenta, que parece ter se deslocado, de modo aparentemente mais rentável, para o campo das fraudes e das ocorrências que exploram o fenômeno da migração da vida social para o ambiente híbrido que conecta o físico e virtual [3].

Seletividade às claras, com a chancela do legislador e que apenas retroalimenta o próprio poder punitivo: o Projeto de Lei nº 3.780/2023 reforça o sofisma punitivista de que o Direito Penal protegeria os bens jurídicos mais importantes e que bens jurídicos mais importantes seriam aqueles protegidos pelo Direito Penal (TANGERINO, 2016), naturalizando a criminalização e o constante aumento de penas como método “mais adequado” , “proporcional”, “razoável” e “equilibrado” para “cessar” a criminalidade [4].

Por todo o exposto, e em sentido completamente avesso ao PL nº 3.780/2023, a criminalização deveria ser tratada sem qualquer sensacionalismo ou soluções fáceis, com foco em suas potenciais consequências e impactos, para que seja efetivamente possível diminuir a população carcerária e otimizar recursos públicos empregados na persecução e execução penal. Sobretudo quando se trata de crimes patrimoniais, pelos quais encontram-se presas  832.295 pessoas [5] (FBSP, 2023). Por isso, repudiar o mencionado PL se mostra necessário e urgente. 

 

REFERÊNCIAS
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Neury Carvalho Lima. São Paulo: Hunter Books, 2012.

Brasil. Conselho Nacional de Justiça. Calculando custos prisionais [recurso eletrônico]: panorama nacional e avanços necessários / Conselho Nacional de Justiça, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Departamento Penitenciário Nacional ; coordenação de Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi [et al.]. Brasília : Conselho Nacional de Justiça, 2021.

CARVALHO, Salo de. O encarceramento seletivo da juventude negra brasileira: a decisiva contribuição do Poder Judiciário. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 67, pp. 623 – 652, jul./dez. 2015.

Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Justiça em Números 2023 / Conselho Nacional de Justiça. – Brasília: CNJ, 2023. 326 p.: il. ISBN: 978-65-5972-116-0

CORTINA, Adela. Aporofobia, a aversão ao pobre: um desafio para a democracia. Trad. Daniel Fabre. São Paulo: Editora Contracorrente, 2022.

FALAVIGNO, Chiavelli. A ausência de política criminal no Brasil. CONJUR, Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-28/chiavelli-falavigno-ausencia-politica-criminal-brasil/. Acesso em: 18 nov 2023.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em: 19 nov 2023.

GISI, Bruna; TONCHE, Juliana; ALVAREZ, M. C., & OLIVEIRA, T. (2017). A teoria da “Racionalidade Penal Moderna” e os desafios da justiça juvenil: Entrevista com Álvaro Pires. Plural24(1), 124-160.

SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 5. Ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022.

SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Comentários ao pacote anticrime. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2020.

TANGERINO, Davi. Culpabilidade no estado democrático de direito. In: Responsabilidade e pena no Estado democrático de direito [recurso eletrônico] : desafios teóricos, políticas públicas e o desenvolvimento da democracia / Marta Rodriguez de Assis Machado e Flavia Portella Püschel (orgs). – São Paulo : FGV Direito SP, 2016. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/17701/Responsabilidade-e-pena.pdf?sequence=5&isAllowed=y/. Acesso em: 23 nov 2022.

[1] Vale ressaltar que, o PL 3780/2023 também visa suprimir o dispositivo introduzido em 2019 no Código Penal que condiciona o início da ação penal para o crime de estelionato à representação da vítima, evidenciando, no mínimo, o delírio punitivo do legislativo.

[2] Segundo CORTINA (2022), ao discorrer sobre a busca em se definir a aporofobia: “infelizmente, a vida cotidiana não pode ser compreendida sem se dar nome a esse mundo de fobias como as mencionadas, (…), consistem na rejeição a pessoas concretas por terem uma característica que as inscreve em um determinado grupo que se despreza ou se teme, ou ambas as coisas, precisamente por ter essa característica. Neste mundo existe a rejeição ao pobre, a aporofobia”.

[3] Nesse ponto, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, em 2022, os estelionatos alcançaram o recorde de 1.819.409 ocorrências, sendo um crescimento de 37,9% de registros estelionatos. Tal dado assume especial importância tendo em vista a tentativa do legislador em dar resposta ao crescimento vertiginoso das práticas criminosas por intermédio de redes sociais, aplicativos e outros meios digitais se utilizando da tipificação da fraude eletrônica.

[4] A constância do incremento punitivo é empiricamente verificável. Álvaro Pires, conjuntamente com André Cellard e Gérald Pelletier, analisou todos os pedidos de reforma legislativa entregues ao Ministério da Justiça que encontraram nos Arquivos Nacionais o Canadá. Investigando o período de 1892 a 1955, Pires observou que, sob os mais diversos contextos políticos, econômicos e sociais ao longo desse tempo, “93% dos pedidos encontrados e 96% das modificações legislativas efetivas caminhavam na mesma direção: eles queriam seja alargar as definições dos crimes, seja aumentar a severidade das penas, seja criar um crime novo com uma pena adicional” (TONCHE; ALVAREZ; OLIVEIRA, 2017, p. 131).

[5] Merece atenção o fato de que, segundo o FBSP, em 2019 o total de pessoas encarceradas era de 755.274, incidindo, portanto, um aumento de, ao menos, 10% (dez por cento) da população carcerária desde a vigência da Lei n° 13.964/18. Ademais, constata-se um aumento no número de presos no Sistema Penitenciário e redução do número de presos sob Custódia das Polícias.

Autores

  • é advogado, pós-graduando em Jurisprudência Penal pelo Curso CEI (Faculdade Cers) e integrante do Grupo de Pesquisa Constituição, Direitos Humanos e Poder Punitivo da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Grupo de Estudo e Pesquisa em Direito Penal Econômico da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).

  • é professor de Direito Penal (UFF — Macaé), doutor em Direito (PUC-Rio), mestre em Direito Penal (Uerj) e bacharel em Direito (Uerj). pesquisador-líder do Grupo de Pesquisa Constituição, Direitos Humanos e Poder Punitivo da UFF (Universidade Federal Fluminense).

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