Opiniâo

Lei nº 11.445: prestação direta de serviços de saneamento com auxílio de particulares

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11 de dezembro de 2023, 17h18

Tivemos notícia do lançamento de uma série de editais de licitação contemplando o repasse a operadores privados da responsabilidade pela prestação dos serviços de saneamento previstos no artigo 3º da Lei nº 11.445/07. Embora isso seja permitido, e até mesmo incentivado pelo novo Marco Legal do Saneamento Básico (Lei nº 14.026/20), que tem dentre os seus objetivos fundamentais o incremento da competitividade no setor, há a condicionante de que qualquer delegação deve ser precedida da celebração de contrato de concessão.

Muitas dessas licitações, contudo, preveem ao fim a celebração de contratos ordinários de prestação de serviços, regulados pelas Leis Gerais de Licitação (Lei nº 8.666/93 ou Lei nº 14.133/21). Esse modelo geralmente tem por fundamento a diferenciação entre os regimes de prestação indireta via delegação (que exigiria concessão) e de prestação direta com auxílio de particular [1] (dispensaria concessão). Sob tal pretexto, a execução da integralidade dos serviços de saneamento pertinentes a uma determinada localidade poderia ser transferida à exploração privada por meio de contrato ordinário de prestação de serviço, desde que a “gestão” desses serviços continuasse a cargo da administração.

Nos opomos a esse entendimento, e entendemos que, como regra, o repasse da execução da integralidade das atividades pertinentes à prestação de serviços públicos de saneamento somente pode ocorrer mediante a instrumentalização de contrato de concessão de serviços públicos.

Nos termos dos artigos 9º, inciso II, e 10, da Lei nº 11.445/07, a prestação dos serviços previstos em seu artigo 3º pode se dar de duas formas: direta ou indireta. A direta é executada pelo próprio poder concedente, por meio de órgão ou entidade que integre a sua administração. A indireta pressupõe seu transpasse a particular, por meio, necessariamente, de contrato de concessão. Não há terceira opção.

O debate acerca dos limites da terceirização de serviços pela administração pública (que envolve conceitos muito disseminados e pouco criticados, como os de “atividades-fim” e “atividades-meio” do Estado), é uma grande zona de incerteza jurídica.

Mas em meio a esse deserto, é possível encontrar um oásis de certeza jurídica no qual devemos instalar o tema: como regra, o poder público não pode meramente terceirizar a execução da integralidade de serviços públicos. Quem o diz é o artigo 175 da Constituição, segundo o qual incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

No caso dos serviços públicos de saneamento básico, esse entendimento é reforçado pelo artigo 10 da Lei nº 11.445/07, o qual prevê que “a prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular depende da celebração de contrato de concessão”. Portanto, o trespasse da integralidade de serviços previstos no artigo 3º da Lei nº 11.445/07, mediante a formalização de alguma modalidade de contratação, não pode ser considerada prestação direta.

Logo, não existe prestação direta de serviços públicos de saneamento que seja repassada a particular por intermédio de contrato.

Por outro lado, acaso se deseje providenciar a prestação indireta do serviço público de saneamento, a única modalidade contratual admitida é a concessão de serviços públicos. Cuida-se de contrato típico, regido por normas próprias, e que não pode ser confundido ou transmutado em mera prestação de serviços ordinários.

Respeitosamente, o argumento de que a concessão seria desnecessária, uma vez que os serviços seguiriam sendo prestados diretamente pelo poder público (ainda que com “auxílio” de particulares), aplicando-se a exceção do artigo 10, não procede.

Atividades de gestão de contratos públicos nada mais são do que uma qualificação das atividades de fiscalização. Quem gere contratos públicos vai além da fiscalização de aspectos meramente operacionais do contrato; fiscaliza também questões de cunho administrativo, financeiro, e até estratégico. Mas a essência permanece a mesma: quem gere, fiscaliza.

Sob essa perspectiva, a pretensa prestação direta de serviços públicos de saneamento, “auxiliada” por particular, nada mais é do que a instrumentalização de modelo por meio do qual a iniciativa privada presta a integralidade dos referidos serviços, sob fiscalização (qualificada, é verdade), da administração pública. Exatamente aquilo que deve ocorrer na hipótese de prestação indireta.

Além disso, a diferença entre “transferência da gestão” e “transferência da execução”, levantada por aqueles que defendem o modelo, não encontra lastro na Lei.

Assim, a modalidade de prestação direta de serviços, prevista no novo Marco Legal do Saneamento, quando lida à luz da Constituição, pressupõe, quando menos, que a administração pública realize não apenas a gestão (leia-se, fiscalização qualificada e mais ampla) dos serviços públicos de saneamento, mas também a execução direta de um núcleo duro de atividades que o compõem.

Em resumo: para os fins da lei, prestação direta é aquela feita por ente que integra a administração do titular, que pessoalmente toma as providências essenciais para garantir que a população frua serviços públicos de saneamento.

Não há jogo de palavras capaz de alterar o fato de que a tese encampada por esses municípios pretende repassar integralmente a prestação de serviços públicos de saneamento para particulares, sem a prévia celebração de contratos de concessão. E isso, reputamos nós, é contrário à Lei n. 11.445/07.

A prestação de serviços de saneamento por sujeito que não integre a administração municipal exige o planejamento, a licitação e formalização de contratos de concessão.


[1] Também chamada de terceirização de serviços públicos, é a modalidade prevista no art. 10, §7º do Decreto-Lei nº 200/67, segundo o qual “Para melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e contrôle e com o objetivo de impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa, a Administração procurará desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, à execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos de execução.”

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