Opinião

75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos: passado, presente e futuro

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10 de dezembro de 2023, 16h12

Em 10 de dezembro, comemoramos o Dia Internacional dos Direitos Humanos, homenagem à adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) em 1948. Neste dia de potente simbolismo para a proteção de direitos humanos, cabe discorrer sobre o passado, presente e futuro da longeva Declaração, que agora completa 75 anos.

O passado. A Declaração decorre da existência de dispositivos genéricos referentes a “direitos humanos” expressos na Carta da Organização das Nações Unidas (ONU). A inserção da temática de direitos humanos na Carta da ONU foi sugerida já na Conferência Intergovernamental entre países aliados na Mansão de Dumbarton Oaks (21 de agosto a 7 de outubro de 1944), nos arredores de Washington (D.C.), na qual foi discutido o formato de uma nova organização internacional apta a assegurar a paz e a segurança internacionais no mundo pós 2ª Guerra Mundial (cujo fim já se previa). As diretrizes aprovadas (Dumbarton Oaks Proposals) continham menção à criação de um Conselho Econômico e Social, incumbido de, entre outras tarefas, promover o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais [1].

Na mesma linha, em fevereiro de 1945, os países latino-americanos reuniram-se na Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz, em Chapultepec (México), para manifestar seu desejo de incluir a temática dos direitos humanos no processo de criação da futura organização internacional, que viria a ser a ONU.

Nas discussões da Conferência de São Francisco (abril a junho de 1945), o texto aprovado incluiu sete menções expressas a “direitos humanos” tanto no corpo principal da Carta quanto em seu Preâmbulo.  Tais menções esparsas a direitos humanos na Carta de São Francisco revelam a ausência de consenso sobre o rol desses direitos.

Por isso, para explicitar quais seriam esses direitos humanos mencionados genericamente na Carta de São Francisco, foi aprovada, sob a forma de Resolução da Assembleia Geral da ONU, em 10 de dezembro de 1948, em Paris, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (também chamada de Declaração de Paris).

A aprovação por 48 votos a favor, sem votos em sentido contrário, da Declaração escondeu divergências: houve oito abstenções (Bielorrússia, Checoslováquia, Polônia, União Soviética, Ucrânia, Iugoslávia, Arábia Saudita e África do Sul). Honduras e Iêmen não participaram da votação.  A Declaração continha apenas 30 artigos, mas seu alcance era amplo. Já no preâmbulo da Declaração é mencionada a necessidade de respeito aos “direitos do homem” e logo após a “fé nos direitos fundamentais do homem” e ainda o respeito “aos direitos e liberdades fundamentais do homem”.

Nos seus artigos, são enumerados os chamados direitos políticos e liberdades civis (artigos I ao XXI), assim como direitos econômicos, sociais e culturais (artigos XXII-XXVII). Entre os direitos civis e políticos constam o direito à vida e à integridade física, o direito à igualdade, o direito de propriedade, o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, o direito à liberdade de opinião e de expressão e à liberdade de reunião. Entre os direitos sociais em sentido amplo constam o direito à segurança social, ao trabalho, o direito à livre escolha da profissão e o direito à educação. Por fim, a Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê, em seu artigo XVIII, que todos têm direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades possam ser plenamente realizados.

Apesar de sua abrangência (um amplo rol de direitos sem diferenciação), do razoável consenso (aprovação sem vetos ou votos contrários) e da amplitude (incluindo a menção a uma ordem internacional justa), a Declaração Universal foi aprovada sob a forma de resolução da Assembleia Geral da ONU, que, nessa matéria não possui força vinculante. A decisão de não adotar um tratado de direitos humanos com força vinculante reflete os duradouros efeitos da Guerra Fria.

Esse período foi marcado pelo antagonismo entre os blocos capitalista e comunista.  Nesse sentido, a Declaração Universal representava na data de sua adoção uma diretriz aos Estados e compunha aquilo que é denominado de “soft law” no Direito Internacional, o chamado direito em formação. Também havia outra fragilidade na DUDH: não havia menção a processos internacionais de direitos humanos, o que permitia que os Estados continuassem a interpretar livremente os direitos humanos nela prevista. Assim, o direito à integridade física era protegido pela DUDH, mas cada Estado poderia livremente interpretar seu alcance e sentido, o que abria oportunidade para diversos tipos de abusos. O universalismo da DUDH era ainda um universalismo em abstrato, teórico, imperfeito e a depender das diferentes interpretações nacionais sobre o alcance e sentido de suas normas. Eram tempos de Declaração Universal local.

O presente. Após 75 anos de sua edição, determinados direitos da DUDH são compreendidos hoje como espelho do costume internacional de proteção de direitos humanos. Além disso, a Declaração é interpretação autêntica da expressão genérica “direitos humanos” da Carta de São Francisco. Mas, a grande evolução que caracteriza o presente é justamente a ascensão dos processos internacionais de direitos humanos [2], tanto no nível global quanto no nível regional (europeu, interamericano e africano). Todos os órgãos internacionais inseridos nesses processos internacionais invocam a DUDH como reforço hermenêutico ao dever de cumprimento das normas dos tratados institutivos.

Os processos internacionais de direitos humanos representam diferentes mecanismos internacionais que averiguam a conduta dos Estados, identificam violações de direitos e, eventualmente, fixam reparações ou mesmo determinam sanções. Com os processos internacionais de direitos humanos, há a construção da interpretação internacionalista com a consagração do universalismo in concreto. O impacto desse novo universalismo é a crescente importância do controle de convencionalidade de matriz internacional em países como o Brasil. O este controle consiste na aferição de compatibilidade entre normas e decisões nacionais e normas internacionais, sendo controle de matriz internacional aquele que é realizado pelos órgãos internacionais, utilizando a interpretação internacional dos direitos. A internacionalização dos direitos humanos completa o seu ciclo: os textos normativos como a Dudh logram obter uma interpretação internacionalista.

Todavia, no presente, diversos estados democráticos têm dificuldade em aceitar a interpretação internacionalista dos direitos humanos, especialmente quando ela contraria velhos hábitos da maioria local. O universalismo é mais fácil de proclamar do que implementar. Por isso, a centralidade do debate no presente além do controle de convencionalidade  é o necessário estímulo ao “Diálogo das Cortes”, o que permite à interação constante entre os Tribunais nacionais e os Tribunais e demais órgãos internacionais para a fertilização cruzada da interpretação adotada nas incontornáveis colisões de direitos da vida social.

Não há nenhum “intérprete final” dos direitos humanos: os diálogos permitem a evolução e o constante aperfeiçoamento interpretativo.  No específico caso da relação entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), é possível adotar a teoria do duplo controle, pela qual se obtém harmonia entre o guardião da Constituição, o STF, que realiza o controle de constitucionalidade e a Corte IDH, que é a intérprete final da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, entre outros tratados interamericanos. Pela teoria do duplo controle, cabe ao STF realizar o controle de constitucionalidade das normas nacionais e à Corte IDH o controle de convencionalidade de matriz internacional, exigindo-se o respeito a ambos os controles[3].

O futuro. Nesses 75 anos, já é um truísmo reconhecer que a DUDH impulsionou o desenvolvimento qualitativo e quantitativo da internacionalização dos direitos humanos. Sua mensagem inicial é um ideal: todos nascem livres e iguais em dignidade e direitos (art. I).  Entre os mais diversos desafios para sua total implementação no século XXI, destaco sua incidência na Era Digital.

É imprescindível garantir a proteção dos direitos humanos no mundo virtual, abordando questões como privacidade, liberdade de expressão e o resguardo de dados como um direito humano. Em segundo lugar, a dimensão econômica da DUDH é desafiada pelo aumento das desigualdades, com a existência de poderosa minoria de plutocratas globais e da maioria de excluídos da globalização. A efetividade dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais (DESCAs) é pauta prioritária para as próximas décadas.

Em terceiro lugar, a DUDH enfrenta uma crise ambiental sem precedente: urge integrar a gramática dos direitos humanos nas políticas de mudanças climáticas e sustentabilidade, protegendo as populações vulneráveis afetadas por desastres ambientais e zelando pelo desenvolvimento sustentável.

Em quarto lugar, a DUDH serve como baluarte para o fortalecimento da democracia: o aumento das ameaças autoritárias implica na defesa constante do regime democrático, que é o único no qual vicejam os direitos protegidos na Declaração. Finalmente, o quinto desafio para o futuro consiste na regulação pro persona da temática da migração: a DUDH deve ser interpretada para promover a proteção dos direitos dos migrantes e refugiados, em um contexto de crescente deslocamento forçado e crises migratórias.

Neste Dia Internacional dos Direitos Humanos, que seja reafirmado o nosso compromisso com a DUDH, reconhecendo a sua relevância contínua e a necessidade de esforços incessantes para garantir que os direitos humanos sejam uma realidade vivida por todos.

 

[1] CARVALHO RAMOS, André de. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 7ª ed., São Paulo: Saraivajur, 2019.

[2] CARVALHO RAMOS, André de. Processo internacional de direitos humanos. 7ª ed., São Paulo: Saraivajur, 2022.

[3] CARVALHO RAMOS, André de. Curso de direitos humanos. 10ª ed., São Paulo: Saraivajur, 2023.

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