Opinião

'Lava jato' morre por vaidade

Autor

  • André Callegari

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid professor nos cursos stricto sensu (mestrado e doutorado) do IDP/Brasília e sócio do Callegari Advocacia Criminal.

8 de dezembro de 2023, 6h12

A divulgação da lista enviada pelo procurador-geral da República ao Supremo Tribunal Federal no final do ano de 2014 gerou um clima de ansiedade e de expectativa. A sociedade estava diante de um processo de “limpeza” que envolveria a classe política, que alguns se referem como “o andar de cima”. Finalmente o Direito Penal atingiria todas as classes sociais e o PGR começou a lançar a suas flechas (lembrem-se: enquanto havia bambu, havia flechas).

As famosas listas de denunciados oriundas da PGR, bem como àquelas que se espalharam pelo Brasil advindas das operações das forças-tarefas instituídas para o combate — palavra que sempre uso a contragosto — à corrupção e à lavagem de dinheiro foram tomando força e ganharam a simpatia da população.

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Sergio Moro e “japonês da Federal” viraram bonecos do Carnaval de Olinda

Os agentes públicos envolvidos diretamente com a operação rapidamente se transformaram em heróis diante de uma população desavisada sobre os métodos que eram utilizados e que hoje demonstram claramente que as boas práticas jurídicas, além do bom direito, foram deixadas de lado.

Passado esse primeiro momento que impactou o país, deve ficar claro que a divulgação na maioria dos casos não só não incriminou os envolvidos, como tampouco implicou na condenação destes.

As recentes decisões dos tribunais superiores têm refutado as acusações lastreadas em dados não comprovados em colaborações realizadas sem os devidos dados de corroboração. Hoje certamente grande parte dos acordos de colaboração não seriam homologados diante da ausência dos requisitos legais impostos pela Lei 12.850/13.

Mas a ânsia do arqueiro e comandante da PGR à época dos fatos levou a que dezenas de políticos fossem denunciados com elementos mais do que precários de prova.  Ou melhor: nem provas eram. Talvez fossem meros indícios, para dar o benefício da dúvida.

Recordemos que muitas denúncias de centenas de páginas traziam no seu início uma explicação histórica da operação “lava jato”, como se isso fosse importante numa peça acusatória que exige tão-somente os requisitos dispostos no Código de Processo Penal. Mas naquela quadra da história isso não importava mais. A narrativa agora era midiática. A imputação técnica perdeu espaço diante da narrativa simbólica e quem perdeu fomos todos nós.

Spacca
Criminalista André Callegari

Os elementos que apareciam nas denúncias e que supostamente foram decisivos para a abertura da investigação foram baseados em trechos de colaboração premiada. Em outras palavras, em citações extraídas dos depoimentos prestados por sujeitos que eram réus em processos criminais que já tramitavam na justiça ou por aqueles que foram premidos a fazer um acordo, numa espécie de vale-tudo para se salvar.

Esses depoimentos por si só não podem constituir prova robusta para a incriminação dos investigados, pois dependem da confirmação efetiva de tudo o que disseram (formas de participação, local de ocultação dos valores etc.). As meras citações extraídas de outros depoimentos são insuficientes para um juízo de culpabilidade dos investigados. Aliás, hoje sequer se prestariam para o recebimento da denúncia de acordo com a alteração legislativa introduzida na Lei 12.850/13.

É verdade, e faça-se justiça aqui, que parcela do STF já rejeitava as denúncias lastreadas tão-somente na palavra dos colaboradores à míngua de qualquer elemento que emprestasse veracidade aos fatos relatados.

O problema é que outras tantas denúncias foram e seguem sendo recebidas com dados construídos (essa é a palavra) pelos investigadores para fundamentar o indiciamento e posterior denúncia pelo Ministério Público.

Assim, viu-se investigados denunciados porque ingressaram “x” vezes em repartições públicas, porque estiveram em festas sociais com os delatores, porque tomaram café num mesmo estabelecimento comercial que um ou outro investigado, como se tudo isso fosse suficiente para indicar a participação criminal de uma pessoa. Mas foi! Basta olhar os autos de vários processos para ver que a construção da narrativa acusatória está alicerçada em fatos e vestígios como estes.

Não bastasse tudo isso, agora revelam-se fatos mais graves: conversas em grupos que envolveram responsáveis pela investigação, membros do Ministério Público e do Judiciário. Claro que todos negam tudo, com o argumento de que a invasão em suas contas dos celulares foi criminosa. O paradoxo dessa negativa é que alegam que tais diálogos são normais e ocorrem também entre eles e advogados, muito embora não tenha surgido até o momento nenhuma conversa não republicana entre os defensores e os agentes públicos combinando como seria a sentença absolutória ou instruindo quais as testemunhas eram necessárias para a defesa.

Aliás, esse mesmo grupeto não quer que essa prova descoberta em seus celulares seja utilizada pois se trata de prova ilícita, pese embora defensores fervorosos de que a prova ilícita de boa-fé poderia ser utilizada (conforme proposta do pacote anticrime que não foi aprovado com esse dispositivo). Também eram contra o uso dos prazos e recursos no processo criminal, mas se utilizam deles para que seus processos prescrevam nas esferas jurídica e administrativa. Claro! Como diria Zaffaroni, esse é o processo penal deles. O que vale para eles, não cabe para os meros mortais.

Há muitos defensores entristecidos com o fim da operação lava jato, que continuam acreditando que os fins justificam os meios. Desprezaram o devido processo legal, acreditaram que a justiça estava sendo feita, mas o dia que forem alvo de um processo sentirão na pele como é bom ter respeito à constituição e às garantias, tão caras para todos nós.

A lava jato poderia ter sido uma grande operação e talvez uma parte dela ainda teria salvação, o problema foi a vaidade — talvez um dos piores pecados do ser humano — de alguns, que em nome de uma guerra contra a corrupção pensaram e ainda pensam que podem tudo, mesmo ao arrepio da legislação.

Autores

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid, professor de Direito Penal no IDP-Brasília e sócio do Callegari Advocacia Criminal.

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