Observatório Constitucional

Por uma ética constitucional na legislação

Autor

  • Marcelo Casseb Continentino

    é doutor em Direito pela UnB/Università degli Studi di Firenze professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Ufersa procurador do estado de Pernambuco advogado e sócio efetivo do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

8 de outubro de 2022, 8h00

A Constituição Federal de 1988, neste 5 de outubro de 2022, completou seu 34º aniversário, um tempo de vida significativo considerada a história brasileira marcada por sucessivas cartas constitucionais.

Mesmo diante dos desafios de hoje e de sempre e de todas as ordens (crises econômicas, sociais, políticas e institucionais), a "pretensão de eternidade" de que gozam as Constituições, pelo simples fato de existirem, segue adiante. Sua história semântica, como instrumento de limitação e legitimação do poder político, deve sempre ser rememorada e vivenciada em sua plenitude: reafirmar o passado de uma Constituição e sua memória é afirmar seu presente e firmar a expectativa de seu futuro.

Chama-nos a atenção, contudo, que uma das formas mais elementares de perpetuação do projeto constitucional depende exclusivamente dos nossos legisladores e se dá por meio da legislação, que é uma das expressões mais sensíveis do Estado Democrático de Direito, na medida em que propicia a gradual realização fática dos princípios da Constituição na vida das sociedades. Ainda que, por vezes, sejam eles — os legisladores — seus principais algozes ao aprovarem leis, emendas constitucionais ou outras medidas legislativas que atingem o cerne ou a essência da Constituição, ainda que tais atos possam abeirar-se à penumbra textual das normas constitucionais [1], são eles — os parlamentares — um dos principais responsáveis pela efetivação da Constituição e pela preservação do sentimento constitucional.

Para que a legislação se legitime sob o paradigma da democracia constitucional, o processo legislativo não pode se desenvolver livremente de acordo com os ímpetos, paixões ou interesses mais imediatos dos representantes do povo. A preocupação com um processo legislativo mais próximo dos interesses da população em geral tem levado muitos teóricos a refletirem sobre as condições e possibilidades de uma teoria política e constitucional da legislação. Nesse campo, dentre outros já consagrados, destacamos a publicação Political Policital Theory, de Jeremy Waldron.

Levando a sério a atividade legislativa, Waldron [2] elencou e desenvolveu, para além de princípios substantivos (vide Rawls e Bentham) e formais (Fuller) de legislação, sete princípios de legislação (princípios procedimentais à luz de uma visão institucional do processo legislativo), que tenta contemplar a realidade das sociedades modernas, marcadas por sua complexidade, pluralidade e "desacordos razoáveis" em relação a temas centrais da convivência comum. Importante ressaltar que, a exemplo do "juiz Hércules" de Dworkin, que seu leque de princípios configuram um parâmetro normativo de avaliação da própria atividade legislativa, que na sua prática diuturna deve aproximar-se desse modelo ideal.

Esses princípios, podemos dizer, correspondem à versão legislativa do due process of law. Os princípios de legislação, a que se refere Waldron, têm o condão de legitimar as leis e atividade legislativa em geral, isto é, de torná-las obedecíveis para além do fato de serem mero produto da manifestação formal da vontade parlamentar, e sim porque corporificam escolhas que são consideradas socialmente razoáveis e justificáveis perante a comunidade, ainda que muitos dela possam discordar eventualmente [3].

O primeiro dos princípios de legislação é o de "legislação explícita" (principle of explicit lawmaking), que enfatiza a autonomia política dos cidadãos e, como consequência, a competência do Legislativo como fórum adequado para criar leis (e não o Poder Judiciário, que apenas o deve fazer de modo excepcional e indireto). Mais do que uma definição prévia de competência constitucional, está a premissa de que é por meio da legislação que se tem a certeza de mudança clara e transparente das leis.

O segundo princípio de legislação é do dever de cuidado (the duty to take care), que aponta para a necessidade de levar-se em consideração a importância dos direitos, dos interesses e das liberdades em jogo no âmbito do processo de elaboração de leis. O legislador tem de respeitar e cuidar dos direitos e interesses em jogo no debate eleitoral; buscar promover o bem geral e a equidade e justiça social, sem sacrificar em vão o povo. A legislação não é um jogo político, mas uma atividade que reclama por princípio ouvir "todas as vozes".

O princípio da representação (principle of representation), segundo o qual a lei deve ser elaborada em fóruns em que se dê voz aos interessados e se reúnam as informações necessárias sobre todas as opiniões possíveis, levando em conta a diversidade e a pluralidade presente na sociedade. A numerosa composição dos parlamentos é um reflexo imediato do esforço de representação de todos os segmentos da sociedade.

O quarto princípio de legislação é o do respeito ao "desacordo (razoável)' (principle of respect of disagreement), que admite em certos temas sociais a impossibilidade de atingimento de consenso dada a complexidade e diversidade das sociedades atuais. Nesse ambiente, as pressões e os interesses mais díspares dos diversos grupos de interesses recomendam que não se forjem acordos artificiais, ou "esquemas", como rota de fuga dos debates públicos para abreviarem-se soluções sectárias e unilaterais.

Pressupõem-se aqui estruturas institucionais e partidárias sólidas, bem como a noção de "oposição leal", isto é, que o direito de o parlamentar ser contrário a uma determinada lei não se limite apenas à questão de sua liberdade de expressão, mas que haja instrumentos normativos idôneos à manifestação de sua oposição (v.g.: líder da oposição), respeitando-se os direitos das minorias.

Pelo princípio da deliberação (principle of deliberation), o quinto da lista, reconhecendo na linha de Ion Fuller e Ronald Dworkin que as cortes configuram um "forums of reasons", destaca-se que a atividade do legislador configura um "espaço de debate", que também deve ter responsividade em relação ao público e aos futuros destinatários das leis, buscando formar consensos em torno das questões discutidas. É dever dos parlamentares em ação manter acesa a predisposição ao consenso, mediante a abertura ao debate e à possibilidade de mudança de opinião ("not frozen positions"). Em outras palavras, o parlamento não é um "congresso de embaixadores" com interesses e posições diversas e rígidas, mas uma assembleia em que deve prevalecer o interesse de todos e a força do melhor argumento, como ideais regulativos da atuação.

À luz do sexto princípio procedimental de legislação, o princípio da formalidade legislativa (principle of legislative formality), compreende-se que o processo legislativo não é um processo informal. Sendo o Parlamento o espelho da própria sociedade, deve ser caracterizado pela diversidade e desacordos. Logo, a existência de regras claras e objetivas no disciplinamento do processo legislativo é conditio sine qua non à legitimidade das leis produzidas e à mitigação dos efeitos deletérios decorrentes de desacordos havidos durante sua elaboração.

Por fim, o princípio da equidade política (principle of political equality), o mais importante de todos, que preconiza, para além do respeito às regras do jogo e da necessidade de regulamentação das questões sociais mais importantes, que, diante da falta de consenso atingido por meio da deliberação, há de prevalecer a "regra da maioria" no procedimento legislativo, eis que, com ela, satisfaz-se a necessidade da igualdade política.

Aqui estaria um catálogo de princípios de legislação (evidentemente a lista não é taxativa, mas indicativa), o que permitiria aos legisladores exercerem suas atividades com integridade, coerência e legitimidade, inclusive minorando os impactos da crise das leis e da representatividade, que tanto assola os Legislativos mundo afora. Um conjunto de mandamentos que nortearia a atividade legislativa no rumo do desenvolvimento constitucionalmente adequado de nossa democracia.

É claro que, no processo legislativo brasileiro positivado na Constituição Federal de 1988 e nas demais normas infraconstitucionais, podemos identificar uma boa dose de recepção desses lineamentos fundamentais da legislação.

Porém, devemos nos perguntar o que falta em nosso processo legislativo para atingir-se inequivocamente esse patamar de legitimação no paradigma do Estado Democrático de Direito?

Falta uma outra dimensão, essencial e complementar à positivação desses princípios, de que parte da literatura constitucional italiana (e também naciona l[4]) tem se ocupado e que responde pelo nome de "ética constitucional".

Segundo Francesco Bilancia [5], a ética constitucional faz parte da atitude de reconhecimento das regras constitucionais por parte dos agentes políticos encarregados da função pública ao mesmo tempo em que devem atuar orientados pelo dever de conciliar o interesse público e a formação de um consenso entre seus pares. Não se trata de introduzir conteúdos éticos e morais nos complexos métodos da hermenêutica constitucional em face da natureza aberta e axiológica das normas constitucionais, mas do cometimento ético, isto é, do compromisso atitudinal desses agentes em exercerem seu múnus público conforme as normas basilares da Constituição.

É isso que esperamos do Congresso Nacional eleito para a legislatura que se iniciará em 2023: ética constitucional. Um exercício do mandato político voltado ao atendimento das normas constitucionais, das necessidades da sociedade e da busca do consenso mediante ressignificação ética das próprias atribuições legislativas e constitucionais.

 


[1] O exemplo mais recente desses atos formalmente aprovados segundo o processo legislativo, mas materialmente contrário ao devido processo legislativo constitucional reside na promulgação da Emenda Constitucional nº 123, de 14 de julho de 2022, que fabricou um "estado de emergência" para a autorizar a excepcional concessão de uma série de benefícios sociais e econômicos às vésperas do período eleitoral, configurando-se medida legislativa com finalidade prioritariamente eleitoreira em desacordo com diversas normas constitucionais e infraconstitucionais.

[2] WALDRON, Jeremy. Political Political Theory: essays on institutions. Cambridge & London: Harvard University Press, 2016, p. 145-166.

[3] Essa distinção conceitual do Waldron remonta à noção elementar de Paolo Grossi que distingue o direito como ordenamento observado, em que se entrevê na regra positiva um valor prévia e socialmente acolhido pela comunidade que quase que espontaneamente o segue, do direito como ordenamento obedecido, em que as pessoas cumprem passivamente o comando normativo por mero dever legal, similar a uma servidão civil, apenas para livrarem-se das sanções comináveis. Cf. GROSSI, Paolo. Primeira Lição sobre Direto. Trad. Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 1-34.

[4] A propósito, vide contribuição de André Rufino publicada nesta mesma Coluna: VALE, André Rufino do. Não precisamos de uma nova Constituição, mas de melhores práticas constitucionais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-ago-15/observatorio-constitucional-nao-precisamos-constituicao-melhores-praticas [5 de outubro de 2022]. Dela, vale destacar as seguintes ponderações do prof. André Rufino: "Constituições possuem desenhos e modelos que, em algum momento histórico, poderão favorecer ou não o desenvolvimento das instituições democráticas. Em qualquer caso, as disposições constitucionais têm pouco efeito sobre as instituições se não forem acompanhadas de práticas políticas que criem condições para a democracia. Em outros termos, as democracias não são construídas e nem são sustentadas apenas por meio das regras formais presentes no ordenamento jurídico-constitucional, mas também em regras informais que resultam das práticas políticas e são amplamente conhecidas e respeitadas por todos os importantes atores e forças políticas". E, por fim, sintetiza com muita precisão a consequência capital da ausência de uma ética constitucional no quadro geral da efetivação da democracia constitucional: "Quando não há boas práticas políticas democráticas, não há Constituição que solucione os problemas de uma democracia".

[5] Cf. BILANCIA, Francesco. La legge e l'interesse generale: un paradigma per un'etica costituzionale? Disponível em: https://www.costituzionalismo.it/la-legge-e-linteresse-generale-un-paradigma-per-unetica-costituzionale/ [5 de outubro de 2022].

Autores

  • é doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB)/Università degli Studi di Firenze, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco (FCAP/UPE) e do programa de pós-graduação em Direito da Ufersa, procurador do estado de Pernambuco, advogado e sócio efetivo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!