Observatório constitucional

Não precisamos de uma nova Constituição, mas de melhores práticas constitucionais

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15 de agosto de 2020, 8h00

No último mês, ficou amplamente conhecida a proposta do constitucionalista norte-americano Bruce Ackerman de instituição, no ano de 2023, de uma assembleia constituinte para elaboração de nova Constituição para o Brasil1. Sobre o caráter equivocado e inoportuno de projetos de substituição da Constituição brasileira de 1988, tenho artigo publicado nesta mesma coluna2, em 2018, cujos argumentos continuam válidos e atuais e não precisam ser aqui repetidos ou rememorados. Além disso, outros qualificados professores já trataram de rebater, com muita pertinência e correção, as desafortunadas teses de Ackermann3, de modo que não vou me ocupar neste momento de contribuir para esse debate específico.

Neste artigo, parto da premissa comprovada de que o Brasil não precisa de uma nova Constituição e tento chamar a atenção para algo que realmente importa neste momento difícil do desenvolvimento da democracia constitucional brasileira: a necessidade de maior conhecimento, análise e aperfeiçoamento institucional das práticas constitucionais.

O Direito Constitucional no Brasil sempre esteve muito concentrado no estudo das estruturas e da organização dos Poderes da República Federativa. É bem verdade que também muito se avançou, nas últimas duas décadas, sobre a interpretação e a aplicação dos direitos fundamentais. Mas muito pouco esforço foi destinado para o conhecimento empírico, a análise normativa e a definição de modelos teóricos para as práticas constitucionais.

Todo sistema jurídico-constitucional é composto não apenas por normas, mas também por práticas institucionais. As instituições de uma democracia constitucional são moldadas por disposições normativas de organização e procedimento e, igualmente, pelas próprias práticas institucionais que se desenvolvem e se consolidam ao longo do tempo, conformando todo o modelo constitucional em concreto e fazendo parte do próprio mecanismo de funcionamento da engenharia desenhada no texto da Constituição.

O direito constitucional europeu, especialmente nos sistemas de common law, sempre esteve atento aos denominados costumes constitucionais que integram os ordenamentos jurídicos como legítimas fontes do sistema constitucional. Como bem resumiu Canotilho em sua conhecida Teoria da Constituição, o costume constitucional passa a integrar o corpus constitucional “quando no sistema jurídico se verifica a institucionalização social de um ato ou fato aos quais é reconhecida a significação de uma norma de caráter constitucional”4. Esses costumes ou práticas fazem parte do chamado “Direito constitucional vivo”, do “Direito constitucional em ação” (law in action), que completa, desenvolve e vivifica o “direito constitucional do texto” ou “dos livros” (law in the books).

No sistema constitucional brasileiro, algumas dessas práticas podem ser facilmente identificadas, como, por exemplo, o costume adotado ao longo de décadas pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal para eleger o seu Presidente, a cada dois anos. Não há nenhuma norma positivada sobre o tema, seja no texto da Constituição ou do Regimento Interno da Corte. Na prática, adota-se a tradicional regra costumeira de se respeitar a ordem decrescente de antiguidade entre os magistrados, de modo que sempre é eleito o Ministro mais moderno em relação ao Presidente que termina seu mandato5. A observância rigorosa dessa norma prática no processo de eleição presidencial tem proporcionado a manutenção de uma ordem institucional no seio do colegiado e assegurado uma legitimidade muito forte do Presidente entre os colegas. É uma prática institucional de caráter constitucional, pois ao longo de muitos anos tem proporcionado a estabilidade e o regular funcionamento do Poder Judiciário brasileiro. Na verdade, trata-se de uma prática constitucional que tem funcionado como uma garantia institucional da magistratura.

Existem outros vários exemplos de práticas constitucionais que regem o funcionamento dos Poderes da República Federativa. O direito constitucional brasileiro conhece muito bem as denominadas “regras de bom aviso”, cunhadas por Carlos Alberto Lucio Bittencourt6 para descrever uma série de conselhos ou de “preceitos sábios” para a tomada de decisão no controle da constitucionalidade das leis. Ademais, em um dos poucos estudos acadêmicos de qualidade sobre o assunto – “Normas constitucionais não escritas: costumes e convenções da Constituição”7 – a colega Carolina Lisboa ressalta as práticas adotadas no procedimento de nomeação dos Ministros do STF (inclusive em torno do significado constitucional da expressão “notável saber jurídico”), assim como as que foram paulatinamente desenvolvidas no processo de edição e aprovação das medidas provisórias.

O fato é que as Constituições contemporâneas nunca foram completamente suficientes para sustentar a plenitude de um regime democrático. Os mecanismos constitucionais de organização, controle e responsabilização dos poderes instituídos sempre dependeram de uma série de costumes e práticas político-institucionais para o funcionamento regular do regime democrático. Como lucidamente constatou Robert Dahl em um de seus principais estudos sobre as democracias contemporâneas: “De um ponto de vista democrático, não existe a Constituição perfeita”8.

Constituições possuem desenhos e modelos que, em algum momento histórico, poderão favorecer ou não o desenvolvimento das instituições democráticas. Em qualquer caso, as disposições constitucionais têm pouco efeito sobre as instituições se não forem acompanhadas de práticas políticas que criem condições para a democracia. Em outros termos, as democracias não são construídas e nem são sustentadas apenas por meio das regras formais presentes no ordenamento jurídico-constitucional, mas também em regras informais que resultam das práticas políticas e são amplamente conhecidas e respeitadas por todos os importantes atores e forças políticas.

Duas dessas regras informais foram muito bem destacadas por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em seu recente estudo sobre “Como as democracias morrem”9, como fundamentais para o regular funcionamento da democracia. A regra informal da tolerância mútua exige que as principais forças políticas adversárias aceitem a submissão às regras do jogo democrático e se reconheçam mutuamente como legítimos competidores pelo governo e pelo poder. A regra da reserva institucional, também crucial para a sobrevivência de uma democracia, diz respeito à necessidade de que os principais atores políticos exercitem constantemente o autocontrole e evitem ao máximo utilizar até o limite as prerrogativas institucionais que lhes são legalmente conferidas.

A observância espontânea dessas regras informais, que correspondem a uma espécie de fair play no jogo político, tem sido cada vez mais dificultada na prática política das diversas democracias contemporâneas, em especial no Brasil, como se tem observado nos últimos anos. A análise mais recente do funcionamento concreto das democracias10 tem revelado que o relacionamento entre as principais forças políticas vem sendo marcado pela intolerância mútua e pelo uso desenfreado dos mecanismos legais mais fortes e extraordinários com o objetivo da eliminação dos adversários políticos. Na verdade, adversários passaram a ser reconhecidos como inimigos políticos, que devem ser varridos com os meios mais duros previstos pelo sistema. O fato de o instituto do impeachment ter se tornado um instrumento comumente presente na linguagem da política dos atuais sistemas presidencialistas, seja como ameaça na disputa política, seja pelo seu efetivo uso como meio de eliminação de figuras políticas e de governos, é um exemplo claro de como o jogo político das democracias contemporâneas tem assumido contornos de um combate adversarial que não observa as exigências informais da tolerância mútua e da reserva institucional.

Quando não há boas práticas políticas democráticas, não há Constituição que solucione os problemas de uma democracia. Uma Constituição não pode ser a única e principal causa de uma crise democrática. Nenhuma Constituição possui arranjos institucionais cuja perfeição ou defeito possam ter um nexo exclusivo de causalidade com o sucesso ou a ruína de uma democracia. Constituições fixam as bases normativas para o funcionamento das instituições democráticas. Impõem uma moldura institucional, dentro da qual os poderes, órgãos e agentes políticos poderão desenvolver as práticas políticas necessárias para a permanente sustentação e consolidação da democracia. Mas a conquista da experiência democrática sempre dependerá das práticas políticas comprometidas com a transformação do modelo constitucional em uma vivência democrática diuturna da comunidade.

A atual crise não é uma crise da democracia como modelo preferencial de regime de governo. O regime democrático permanece sendo a melhor escolha institucional entre os alternativos modelos histórico-políticos. A crise evidenciada no presente surge da insatisfação generalizada com a democracia que vem sendo praticada em diversos países. É uma crise da prática, não da ideia de democracia. Os instrumentos para a sua superação, portanto, não se encontram em modelos alternativos de governo, porém, podem ser buscadas por meio da (re)construção das práticas políticas democráticas.

Quais são os costumes, práticas e convenções que integram o sistema constitucional brasileiro? Que práticas institucionais fazem funcionar as engrenagens da democracia brasileira? Como identificar as práticas constitucionais que devem ser mantidas e aperfeiçoadas? Por outro lado, como definir critérios para reconhecer e qualificar as práticas inconstitucionais e criar as condições político-institucionais para a sua interrupção? As respostas a estas questões ainda carecem de muita pesquisa empírica (quantitativa e qualitativa) sobre a dinâmica real dos poderes e órgãos constitucionais no Brasil. O maior conhecimento dessas práticas possibilitará a sua análise teórica e, consequentemente, o desenvolvimento do direito constitucional no sentido do oferecimento de propostas de aperfeiçoamento institucional.

O enfrentamento da atual crise da democracia certamente cobrará da teoria constitucional um foco especial sobre as práticas que regem o relacionamento político entre os poderes e órgãos constitucionais. Nos próximos anos, o Direito Constitucional brasileiro precisará prestar mais atenção às práticas constitucionais.


1 ACKERMAN, Bruce.“O Brasil precisa de nova Constituição”. In: Correio Braziliense, Caderno Opinião, publicado em 13.07.2020 (https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/opiniao/2020/07/13/internas_opiniao,871622/o-brasil-precisa-de-nova-constituicao.shtml)

2 VALE, André Rufino do. Você diz que vai mudar a Constituição; todos nós queremos mudar a sua cabeça. Revista Consultor Jurídico, coluna Observatorio Constitucional, publicado em 11 de agosto de 2018 (www.conjur.com.br/2018-ago-11/observatorio-constitucional-voce-mudara-constituicao-queremos-mudar-cabeca)

3 “Why Replacing the Brazilian Constitution Is Not a Good Idea: A Response to Professor Bruce Ackerman”, de autoria dos professores Thomas da Rosa Bustamante, Emilio Peluso Neder Meyer, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, Jane Reis Gonçalves Pereira, Juliano Zaiden Benvindo e Cristiano Paixão, publicado em 28.07.2020 no I·CONnect, Blog of the International Journal of Constitutional Law (http://www.iconnectblog.com/2020/07/why-replacing-the-brazilian-constitution-is-not-a-good-idea-a-response-to-professor-bruce-ackerman/)

4 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª Ed. Coimbra: Almedina; p. 1061.

5 O Presidente do STF é eleito por voto secreto, pelos próprios Ministros, e o mandato tem a duração de dois anos, vedada a reeleição para o período seguinte. Apesar de não haver qualquer previsão regimental nesse sentido, criou-se a tradição de se eleger para ocupar o cargo o Ministro mais antigo da Corte que ainda não o tenha ocupado. O procedimento para eleição presidencial está previsto no Regimento Interno do Tribunal, artigo 12.

6 BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. O controle jurisdicional de constitucionalidade das leis. 2ª edição. Brasília: Ministério da Justiça; 1997.

7 LISBOA, Carolina Cardoso Guimarães. Normas constitucionais não escritas: costumes e convenções da Constituição. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2012.

8 DAHL, Robert. Sobre a democracia. Trad. de Beatriz Sidou. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2001, p. 157.

9 LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. São Paulo: Ed. Zahar; 2018, p. 103 e ss.

10 LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. São Paulo: Ed. Zahar; 2018, p. 103 e ss.

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