Opinião

Renda básica pode ser financiada por crédito extraordinário (parte 2)

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28 de novembro de 2022, 7h41

Continuação da parte 1.

Restaria, porém, a necessidade de comprovação de que a despesa criada ou aumentada não afetará as metas de resultados fiscais da LDO, como apontado anteriormente. A lei não especifica como deve ser formalizada oficialmente essa comprovação, deixando margem de discricionariedade para o gestor público escolher o instrumento de governança mais adequado.

Uma forma transparente e adequada ao que pretendeu o legislador seria a apresentação de um plano fiscal, na exposição de motivos da medida provisória, comprovando que as metas fiscais estabelecidas para 2023 e os dois exercícios financeiros seguintes não serão afetadas com a manutenção do auxílio financeiro em R$ 600 e com a criação do novo auxílio de R$ 150 para família com crianças em idade inferior a seis anos, cujo custo fiscal gira em torno de R$ 75 bilhões. Por exemplo, esse plano fiscal poderia indicar a revogação de benefícios tributários criados durante o período eleitoral, combinada com a revisão de gastos do orçamento.

Do ponto de operacional, o aludido plano fiscal pode ser implementado, mediante o envio pelo Poder Executivo, antes do primeiro Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias[1], de um projeto de lei para prever a possibilidade de não contabilizar os efeitos fiscais da medida provisória de abertura de crédito extraordinário na meta fiscal da LDO, ou pode indicar o impacto fiscal da medida até o último Relatório Bimestral.

Ainda cabe ressaltar a necessidade de viabilizar a abertura do crédito extraordinário para financiar o programa de renda básica à luz da regra de ouro. De acordo com o inciso III do artigo 167, o volume de operações de crédito não pode superar as despesas de capital (amortização da dívida e investimentos públicos), ressalvada aprovação do Poder Legislativo por maioria absoluta de seus membros. No entanto, essa regra não impediria a abertura do crédito extraordinário no início do próximo ano por duas razões. Em primeiro lugar, o Poder Executivo não precisa comprovar o cumprimento da regra de ouro antes do encerramento do exercício financeiro, o que lhe confere prazo para manejar as fontes de recursos do orçamento ao longo do ano. Mais ainda, o Tesouro Nacional conta com fonte de recursos depositada na conta única que permitem a recomposição do orçamento sem ferir a regra de ouro. É o caso, por exemplo, dos recursos provenientes do superávit financeiro ou do lucro do Banco Central. Ou seja, a regra de ouro não deve ser considerada um entrave para a edição do crédito extraordinário com o objetivo de financiar o programa de renda básica.

À luz de todas as dimensões fiscais em exame, importa alertar que, uma vez estabelecido o benefício de renda básica, é inconcebível descontinuá-lo, sem que haja alternativa robusta a lhe substituir, sob pena de inconstitucional retrocesso no estágio alcançado de proteção estatal ao direito fundamental em questão. As regras fiscais brasileiras, uma vez integradas à Constituição de 1988, não podem ser interpretadas de forma insulada, literal e inadequada. É preciso lhes conferir densidade intertemporal e finalística. Eis a razão pela qual se está a afirmar, neste artigo, que o arcabouço fiscal em vigor viabiliza a manutenção do programa de transferência de renda, apesar do conjunto de distorções e inconstitucionalidades observadas a pretexto de restrições fiscais[2].

É preciso superar estruturalmente as fragilidades do regime jurídico do Auxílio Brasil, evidenciadas nos artigos 118 e 120, parágrafo único do ADCT, para que, de fato, seja assegurada a renda básica familiar inscrita como direito fundamental dos cidadãos em situação de vulnerabilidade no artigo 6º da CF.

Poucos sabem, mas a LRF, em vigor no país desde 2000, apresenta um arranjo de normas específicas que favorece a expansão fiscal dos gastos vinculados à assistência social. Condicionar a satisfação da fome de milhões de brasileiros a pactuações fiscais que se afastam de regras previstas na própria LRF é negar, sem qualquer motivação válida, o direito fundamental à renda básica familiar, além de afrontar a jurisdição da Corte Constitucional do país.

Como já dito, a edição de créditos extraordinários para viabilizar o programa de renda básica previsto no parágrafo único do artigo 6º da CF/1988 é opção fiscal e juridicamente válida, ainda que não seja aprovada uma nova emenda constitucional, a qual se destinaria, em última instância, apenas à prorrogação formal do prazo de vigência da dispensa dos requisitos de compensação fiscal e de imprevisibilidade (a exemplo do que fizeram os incisos II e III do parágrafo único do artigo 120 do ADCT).

A Constituição já autoriza gastos extrateto, entre outros casos, quando lastreados na edição de créditos extraordinários, se e quando as circunstâncias de fato e de direito assim o ensejarem. Não é preciso afirmá-lo no ADCT, em redesenho sucessivo e excessivo do próprio texto constitucional. Do mesmo modo, vale repetir, o artigo 17 da LRF — que tem como objetivo controlar a edição de atos que criem despesas obrigatórias de caráter continuado — fica afastado no caso de expansão fiscal de gastos pré-existentes que forem vinculados à assistência social, nos termos do artigo 24 da própria LRF.

Dito isso, cabe alertar que o direito à renda básica familiar foi fixado pela Emenda 114/2021, a mesma que concomitantemente impôs parcelamento de precatórios no artigo 107-A do ADCT e condicionou a abertura de espaço fiscal no teto à garantia de cobertura financeira suficiente para o programa de transferência de renda (§§ 5º e 6º acrescidos ao artigo 4º da Emenda 113/2021). Em outras palavras, o espaço fiscal adicional que foi gerado a partir da promulgação da EC 114/2021, seja pelo parcelamento de precatórios, seja pela mudança na metodologia de cálculo do teto de gastos, deveria ter sido obrigatoriamente alocado para cobertura do programa de transferência de renda, sem que caiba agora alegar ausência de fonte de custeio para sua manutenção.

Admitir a redução de valor e o retorno da fila de espera na renda básica aos brasileiros em situação de vulnerabilidade, a pretexto de falseada restrição fiscal, configura-se, desse modo, comportamento evidentemente fraudulento e contraditório (venire contra factum proprium), além de afronta à decisão do STF nos autos do Mandado de Injunção 7.300 e risco de grave retrocesso no estágio alcançado de proteção estatal do direito a que se refere o parágrafo único do artigo 6º da CF/1988. É preciso conferir interpretação conforme aos artigos 118 e 120, parágrafo único, ambos do ADCT para resguardar a natureza jurídica de programa permanente à transferência de renda aos cidadãos em situação de vulnerabilidade.

Caso o próximo governo deseje, no âmbito da sua discricionariedade, adotar tal hipótese para resolução do impasse no custeio do programa de renda básica familiar, certamente poderá provocar o STF nos próprios autos do Mandado de Injunção 7.300, citando, entre outros fundamentos, o Acórdão TCU 1.716/2016-Plenário.

Ampliar o escopo temporal dos artigos 118 e 120 do ADCT para além da insuficiente e potencialmente danosa vigência de 31/12/2022 é medida limítrofe que visa mitigar riscos de retrocesso e, ainda, objetiva prover custeio suficiente à continuidade da transferência de renda aos brasileiros em situação de vulnerabilidade. O ordenamento jurídico já permite essa ação, sem impedir que efetivamente os Poderes Executivo e Legislativo promovam as medidas necessárias ao atendimento, em sua integralidade, do regime jurídico do artigo 6º, parágrafo único, da CF e ao cumprimento, de fato, do quanto decidido pelo Supremo Tribunal Federal no Mandado de Injunção 7.300.

A continuidade do manejo de créditos extraordinários em 2023 para suportar o custeio do programa permanente de transferência de renda a que se refere o parágrafo único do artigo 6º da CF/1988 e o Mandado de Injunção 7.300, nesse sentido, é hipótese que se revela mais aderente ao ordenamento jurídico vigente, do que um falseado ajuste fiscal às custas da fome de milhões de brasileiros em situação de vulnerabilidade social.

Independentemente de o Ploa-2023 vir a ser aprovado, o fato é que nele não foi incluída dotação para concessão de renda básica aos vulneráveis nos termos introduzidos pela EC 114/2021 e exigidos pelo STF no Mandado de Injunção 7.300. Não se trata daquela prevista para o Auxílio Brasil, por mais que boa parte do público seja o mesmo. Por ser outra a natureza do gasto e por não ter sido sequer proposta dotação para seu atendimento, são atendidos aos requisitos constitucionais para abertura de crédito extraordinário com tal finalidade, por medida provisória e, como tal, a exemplo de várias situações anteriores, não são suas despesas submetidas às restrições da EC 95/2016.

Por último, é importante registrar que este caminho abre oportunidade para se avançar, com o devido tempo e cautela, no imenso desafio de reconstrução das instituições e das regras fiscais brasileiras. A natural complexidade e a relevância que cercam as finanças públicas exigem debates e decisões circunstanciados tecnicamente e, por maiores que sejam as deficiências fiscais brasileiras, não impõem a mesma pressa nem a premência constitucional que cabem para enfrentar a vulnerabilidade social.

Não há mais urgente no Brasil que combater a fome e a miséria que assolam dezenas de milhões de brasileiros. Sem precisar mudar a Constituição, é perfeitamente viável ao novo governo federal, se quiser, atender essa prioridade se valendo das regras fiscais já em vigor. Melhor ainda é que não apenas pode responder de forma tempestiva a tais desafios, quanto deve aproveitar a oportunidade para abrir um duplo processo de reconstrução, seja no imediato combate à vulnerabilidade social, seja na posterior consolidação contra a vulnerabilidade fiscal. A responsabilidade na gestão pública pode e deve ser o princípio norteador no equacionamento de ambos os desafios.

A mudança de ano e de governo pode ensejar uma radical reorientação de estratégia. Para maior segurança, orçamentária e social, é possível seguir o caminho que troca auxílio por renda. No lugar de benefício frágil, a Constituição passou a prever expressamente o direito a uma renda básica. Para implementar o parágrafo único do seu artigo 6º da CF/88, sugere-se que: (i) a inegável e temporalmente instável motivação político-eleitoreira seja substituída pela inclusão social e produtiva; (ii) o acesso a benefícios sociais passe por cadastro único, prévia e automaticamente cruzado com outros dados governamentais sobre a situação econômica de cada cidadão; (iii) as condicionalidades do programa incentivem a melhoria da saúde, do ensino e do trabalho; (iv) a gestão do programa envolva coordenação com os governos estaduais e sobretudo municipais, mais próximos da comunidade atendida.

O acesso ao direito inscrito no parágrafo único do artigo 6º da CF e exigido pelo STF no MI 7.300/DF dever ser moldado pelo governo, de forma a oferecer serviços públicos básicos, notadamente saúde e educação, que busquem reduzir e mesmo eliminar a situação de vulnerabilidade, em esforço de articulação intersetorial que tende a dispensar tal renda e reduzir o gasto público no futuro. Uma gestão eficiente da responsabilidade social é o melhor caminho para assegurar a responsabilidade fiscal, e vice-versa.

Em conclusão, as atuais regras e os procedimentos fiscais previstos na LRF e na CF/1988 não criam obstáculos para a manutenção do custeio da renda básica nos moldes estabelecidos pelas Emendas 114/2021 e 123/2022. Também deve haver no país uma agenda de governo voltada para o ajuste fiscal mais equitativo e intertemporalmente coerente, cuja elaboração reclama debate maduro, algo que somente ocorrerá se o programa de transferência de renda aos brasileiros mais vulneráveis deixar de ser moeda de troca a condicionar e interditar a inadiável tarefa de revisão das regras fiscais. Como a própria LRF ensina, aliás, por meio do seu pouco lembrado artigo 24, é perfeitamente possível e necessário conciliar responsabilidade social e fiscal.

[1] De acordo com o art. 9º da LRF, o Poder Executivo deve apresentar Relatório de Receitas e Despesas após o encerramento de cada bimestre para demonstrar o atingimento das metas fiscal de acordo com o cronograma de arrecadação e gastos projetado para o exercício financeiro.

[2] Interessante notar que recentemente foi promulgada a Lei 14.469, de 16 de novembro de 2022, oriunda da conversão em lei da MP 1130, de 22 de julho de 2022, relativa à abertura de crédito extraordinário no valor de R$27,094 bilhões para manter o Auxílio Brasil em R$600,00 até 31/12/2022, em consonância com o art. 120 do ADCT, bem como com o art. 5º, inciso I da EC 123/2022.

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

  • é analista do Senado e especialista em orçamento público.

  • é pós-doutorado em administração pública (Univ.Lisboa), doutor em economia (Unicamp), professor (IDP e ISCSP), pesquisador (Capp) e consultor em finanças públicas.

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