Opinião

Federações partidárias e o museu de grandes novidades (parte 1)

Autor

  • Admar Gonzaga Neto

    é advogado ex-ministro do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Membro Consultor da Comissão Especial de Direito Eleitoral do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral.

20 de maio de 2022, 10h02

A Lei nº 14.208, de 28 de setembro de 2021, alterou a Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/95) e a Lei das Eleições (Lei nº 9.504/97), para prever a possibilidade de associação temporária entre dois ou mais partidos devidamente registrados na Justiça Eleitoral, para que, cumpridos determinados requisitos, passem a atuar como se fossem uma única agremiação.

O objeto do presente estudo, elaborado a partir da revisão bibliográfica de textos legais e doutrinários a respeito do tema, é a análise dos aspectos gerais das federações, da distinção em relação a outras modalidades de associação entre greis, do contexto legal em que concebido esse novel instituto e dos principais pontos dos quais podem resultar insegurança jurídica, especialmente no que diz respeito ao Fundo Partidário.

1 Definição e aspectos gerais
A federação partidária, conforme definição da doutrina (GOMES, 2022), é a associação entre duas ou mais agremiações, em caráter nacional e temporário, para atuar como um único partido, antes e depois do pleito, com a manutenção da identidade e da autonomia das greis, desde que observado o estatuto comum, aprovado pelos envolvidos e registrado no Tribunal Superior Eleitoral.

Às federações partidárias é aplicado todo o regramento constitucional e infraconstitucional atinente aos partidos políticos, inclusive no que diz respeito ao funcionamento parlamentar, à obediência ao regime democrático e às regras de disciplina e fidelidade partidárias. Além disso, devem ser observadas as normas que regem as atividades dos partidos políticos nas eleições, inclusive no que se refere à escolha e registro de candidatos para as eleições majoritárias e proporcionais, à arrecadação e aplicação de recursos em campanhas eleitorais, à propaganda eleitoral, à contagem de votos, à obtenção de cadeiras, à prestação de contas e à convocação de suplentes.

Segundo o regramento legal, apenas os partidos com registro definitivo no Tribunal Superior Eleitoral poderão integrar federação, devendo nela permanecer associados pelo prazo mínimo de quatro anos, sob pena de não poder ingressar em outra federação, de celebrar coligação nas duas eleições seguintes e, até completar o prazo mínimo remanescente, de utilizar o Fundo Partidário.

Diversamente da incorporação e da fusão, as agremiações federadas mantêm a respectiva autonomia, e a união é apenas temporária, ainda que condicionada ao mínimo legal de quatro anos. Também difere da coligação, seja porque abrange todas as candidaturas dos partidos federados — e não apenas aos pleitos majoritários em colégios eleitorais específicos —, seja porque se estende no tempo, perdurando após o pleito pelo mínimo de quatro anos.

Aliás, dentre outros relevantes fatores, as mudanças substanciais no regramento das coligações foram decisivas para o advento da Lei nº 14.208/2021, conforme se verá adiante.

2. Contexto
Rompendo com o modelo partidário restritivo do regime constitucional anterior, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 17, prevê o pluripartidarismo como vetor, como regra, a significar a ampla possibilidade de criação de novas legendas partidárias, desde que respeitados os critérios de representatividade previstos na Lei nº 9.096/95, os quais eram relativamente simples na redação originária da lei.

Esse novo paradigma constitucional, aliado às mudanças no sistema político-eleitoral — a exemplo da amplitude de acesso aos fundos públicos de financiamento das agremiações partidárias e os respectivos valores, bem assim a criação de novo partido como hipótese de justa causa para desfiliação partidária imotivada —, contribuiu para a profusão de legendas registradas no Tribunal Superior Eleitoral e com representação parlamentar no Congresso Nacional, em número superior ao que verificado no âmbito internacional[1] e em descompasso com as correntes políticas existentes no país.

A proliferação das greis não veio sem efeitos. Do aumento de gastos públicos com a manutenção das agremiações via repasses progressivamente maiores do Fundo Partidário à dificuldade de formação de maiorias parlamentares, passando pela incoerência da atuação de um mesmo partido no território nacional, vários são os sintomas que, na avaliação da doutrina especializada, indicam a debilidade da democracia nacional.

Nesse sentido, aponta-se o diagnóstico de Braga (2006):

Uma legislação partidária extremamente permissiva quanto à organização e funcionamento dos partidos e um sistema eleitoral fraco, marcado por mecanismos como a permissão tanto para realizar coligação para os cargos proporcionais, quanto para a troca de legenda e o número exacerbado de candidatos concorrentes, estariam na raiz de uma estrutura institucional que incentiva a multipartidarização e a fragmentação excessiva.

Além disso, é razoavelmente aceita a tese segundo a qual a formação de coalizões com diversas correntes partidárias, ou de múltiplas coalizões, dificulta ou impede que o cidadão exerça a electoral accountability, mediante a identificação de quais legendas representam o governo ou oposição (Powell, 2000; Arato, 2002; Samuels, 2004). Ou seja, a análise do sucesso ou insucesso dos governantes, ou mesmo da efetividade da atuação daqueles que defendem interesses contrários, fica turva, tão fragmentada quanto o número de legendas existentes.

Atento a esse cenário, o legislador brasileiro passou a criar regras que, ao menos em sua teleologia, tinham como objetivo a redução do número de partidos registrados e em criação, a exemplo de: i) o aumento dos percentuais de apoiamento mínimo, conforme disposto na Lei nº 13.107/2015 e na Lei nº 13.165/2015; ii) a revogação da justa causa para desfiliação partidária decorrente da criação de novo partido (Lei nº 13.165/2015); iii) estipulação de cláusula de desempenho, com percentuais progressivos nos pleitos de 2018, 2022 e 2026, para acesso aos recursos de Fundo Partidário e à propaganda no rádio e na televisão, conforme o disposto na Emenda Constitucional nº 97/2017; e iv) vedação da celebração de coligações nas eleições proporcionais, a partir do pleito de 2020 (Emenda Constitucional nº 97/2017).

Os efeitos imediatos dessas medidas foram a diminuição do número de novos partidos criados, o desestímulo ao surgimento de novas legendas, a condenação ao ostracismo das legendas que não alcançaram a cláusula de desempenho e a impossibilidade de somatório de esforços para a eleição aos cargos proporcionais. Com essas mudanças, o partido que deseje permanecer relevante deve, sozinho, lograr êxito nas eleições proporcionais, sobretudo para o legislativo federal, sob pena de perder acesso a recursos do Fundo Partidário e ao tempo de propaganda no rádio e televisão.

Com essas medidas, já nas eleições de 2018, 14 partidos não atenderam à cláusula de desempenho e deixaram de receber recursos do Fundo Partidário e de acessar o tempo de propaganda no rádio e na televisão.

Ademais, somente no ano de 2019, o Tribunal Superior Eleitoral aprovou três incorporações partidárias, a do Partido Republicano Progressista (PRP) ao Patriota, a do Partido Pátria Livre (PPL) ao Partido Comunista do Brasil (PC do B) e a do Partido Humanista da Solidariedade (PHS) pelo Podemos. Tais incorporações ocorreram exatamente na esteira na aplicação da primeira etapa da cláusula de desempenho, ou seja, representaram tentativas de manutenção dos interesses do partido incorporado no debate público.

Já nas eleições de 2020, levantamento feito pelo sítio de notícias G1 revelou que o fim das coligações reduziu o número de partidos nas Câmaras de Vereadores em aproximadamente 73%, com reduções mais significativas nos municípios com menos de 150 mil habitantes. Segundo a matéria, em pelo menos 14 cidades, apenas um partido integra a Câmara dos Vereadores, sendo que em 12 destas, o partido é o mesmo do prefeito eleito.

É nesse contexto, de quebra de paradigmas do texto originário da Constituição e de mudança das estratégias políticas das agremiações, que foi editada a Lei nº 14.208/2021, para prever a possibilidade de os partidos celebrarem federação partidária, ou seja, mais um arranjo para manter partidos sem expressão no contexto eleitoral.

Esse indisfarçável propósito é a pedra angular dos questionamentos opostos em face do novel instituto.

Continua parte 2

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