Opinião

Federações partidárias e o museu de grandes novidades (parte 2)

Autor

  • Admar Gonzaga Neto

    é advogado ex-ministro do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Membro Consultor da Comissão Especial de Direito Eleitoral do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral.

20 de maio de 2022, 11h02

Continua parte 1

3. Pontos polêmicos e (in)segurança jurídica
A primeira e uma das mais relevantes questões diz respeito à constitucionalidade da norma, ora discutida na ADI 7.021/DF, proposta pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), cuja pretensão é a declaração de inconstitucionalidade dos arts. 1º e 2º da Lei nº 14.208/2021, o que acarretaria também a inconstitucionalidade do artigo 3º, por arrastamento.

Entre os argumentos vertidos na ação, destacam-se:
i) a inconstitucionalidade formal, por descumprimento do devido processo legislativo, uma vez que a apreciação do projeto de lei pelo Senado Federal ocorreu antes da Emenda Constitucional 97/2017, quando ainda eram permitidas as coligações nas eleições proporcionais, ao passo que a aprovação pela Câmara dos Deputados se deu após essa importante alteração constitucional. Em razão disso, seria necessária a reapreciação pela casa iniciadora, sob a égide do novo paradigma constitucional;

ii) a inconstitucionalidade matérial, em face do descompasso com o sistema partidário e proporcional admitido pelo art. 17 da Constituição Federal, dispositivo que previu apenas duas formas de união definitiva de partidos, a fusão e a incorporação, e limitou a união temporária a apenas uma hipótese, a coligação para cargos majoritários;

iii) a inconstitucionalidade material, por contrariar o disposto na Emenda Constitucional 97/2017, que vedou a celebração de coligações para cargos proporcionais. A ótica do autor é que a federação partidária seria espécie de coligação, uma forma de obter maior sucesso eleitoral, o maior número de postos em uma eleição proporcional e o melhor resultado na eleição para cargos majoritários;

iv) a inconstitucionalidade material, por contrariar a vedação constitucional de verticalização das coligações partidárias. Novamente, o raciocínio encampado é da similitude entre as federações e as coligações, de modo que a exigência de que as federações tenham abrangência nacional (artigo 11-A, § 3º, IV, da Lei nº 9.096/95) seria contrária ao § 1º do artigo 17 da Constituição Federal.

Ao apreciar a questão em sede de medida cautelar, o Supremo Tribunal Federal (2022) referendou a cautelar deferida parcialmente, apenas para adequar o prazo para constituição e registro das federações partidárias e, nesse sentido:

i) suspendeu o inciso III do § 3º do art. 11-A da Lei nº 9.096/1995 e o parágrafo único do art. 6º-A da Lei nº 9.504/1997, com a redação dada pela Lei nº 14.208/2021;

(ii) conferiu interpretação conforme à Constituição ao caput do art. 11-A da Lei nº 9.096/1995, de modo a exigir que, para participar das eleições, as federações estejam constituídas como pessoa jurídica e obtenham o registro de seu estatuto perante o Tribunal Superior Eleitoral no mesmo prazo aplicável aos partidos políticos;

(iii) ressalvadas as federações constituídas para as eleições de 2022, as quais deverão preencher tais condições até 31 de maio de 2022.

Curiosamente, muito embora a liminar deferida parcialmente sugira a constitucionalidade dos demais aspectos da norma, fato é que o Supremo Tribunal Federal não apreciou todos os argumentos vertidos pelo autor, notadamente no que diz respeito à contrariedade entre a instituição de federação por meio de lei ordinária, as hipóteses constitucionais de associação de partidos (fusão, incorporação e coligação, apenas para cargos majoritários) e do telos da Emenda Constitucional 97/2017, que textualmente vedou as coligações aos cargos proporcionais e estabeleceu cláusulas de desempenho, ainda que em sistema de progressão no tempo.

Em princípio, ainda que as federações não sejam idênticas às coligações — visto que aquelas devem prevalecer após as eleições, atuando como se única legenda fosse —, essa novel forma de associação partidária teve como mote de sua criação a sobrevida a partidos menores, presumivelmente afetados pela aplicação progressiva da cláusula de desempenho. E nessa medida, entendemos que o arranjo efetivamente contraria o disposto na Emenda Constitucional 97/2017.

Nessa mesma linha argumentativa, a exigência por lei ordinária, nos termos do inciso IV do § 3º do artigo 11-A da Lei nº 9.096/95, que a federação seja reproduzida em âmbito nacional, se contrapõe ao § 1º do artigo 17 da Constituição da República, com a redação conferida pela Emenda Constitucional 52/2006, a qual estipulou não ser obrigatória a vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal. Ou seja, ainda que não se trate propriamente de coligação, o objetivo da federação é muito assemelhado, qual seja, a combinação de forças para obtenção de resultados eleitorais mais expressivos.

Há, no entanto, quem defenda a plena constitucionalidade da Lei 14.208/2021, baseando-se na premissa de que não será alterada a regra alusiva ao prazo mínimo das coligações in verbis:

Tais previsões [de prazo mínimo e das sanções para o respectivo descumprimento] tornam improvável a utilização da federação apenas para fins eleitorais, ou seja, apenas para viabilizar a transferência de votos, sem qualquer identidade ideológica entre partidos, que era o problema central da formação das coligações partidárias no sistema proporcional. Isso porque eventuais partidos reunidos em federação terão de permanecer atuando conjuntamente após as eleições, em todos os níveis, no exercício dos mandatos e nas votações dos distintos temas.

Além disso, tal união alcançará as eleições subsequentes, que ocorrerão dois anos mais tarde.

Por fim, as penalidades aplicáveis ao desligamento antecipado de um partido podem impactá-lo gravemente, impedindo a celebração de coligações e o uso do fundo partidário, até que se complete o período mínimo remanescente desde seu ingresso na federação.

Em tais condições, a Lei nº 14.208/2021 cria incentivos adequados para evitar que a federação partidária proporcional funcione como mera coligação de ocasião, evitando os problemas representativos já descritos. (CAVALCANTE, 2022)

Isso posto, vem à mente um outro ponto polêmico do instituto: a possibilidade de, após os pleitos eleitorais e por maioria simples, ser modificada a Lei nº 9.096/95, para desobrigar as agremiações a permanecerem federadas pelo prazo estabelecido, ou mesmo – e ainda pior — para retirada (ou anistiar) as sanções daquelas que se retirarem de eventuais federações.

Nesse particular, independentemente da sorte da já citada ADI 7.021/DF, eventual mudança nas regras da federação partidária, notadamente quanto ao seu aspecto temporal e as sanções previstas, deve ser analisada sob o regime instituído pela Emenda Constitucional 97/2017, a qual, como já dito, proibiu a celebração de coligações para cargos proporcionais. Com efeito, o que seria uma federação sem prazo mínimo e sanções senão o corpo e a alma de uma coligação?

Não se pode ignorar a possibilidade de os partidos federados, aproveitando-se da união de forças no momento pré-eleitoral, elejam expressivas bancadas parlamentares e, com essa vantagem competitiva, trabalhem para a modificação da lei, para a atenuação ou eliminação das sanções decorrentes do descumprimento do prazo mínimo da federação.

Nessa hipótese, o lobo estaria em pele de cordeiro, ou seja, a coligação proporcional, proscrita pela Constituição da República, voltaria ao cenário político-eleitoral sob a forma de federação. Institutos supostamente diferentes, mas essencialmente iguais. Poder-se-ia cogitar de inconstitucionalidade flagrante da lei alteradora, ou mesmo de inconstitucionalidade superveniente da norma vigente.

Contudo, a realidade é que, mesmo que o Supremo Tribunal Federal venha a considerar constitucional a Lei nº 14.208/2021, melhor seria que a instituição da federação partidária tivesse ocorrido pela via de emenda constitucional, e não apenas por lei ordinária.

Nessa mesma linha, questão da maior importância é a possível utilização da federação como mecanismo de desequilíbrio no financiamento de partidos e de candidaturas. Como é cediço, desde o julgamento da ADI 4.650/DF, o financiamento eleitoral ficou deveras restrito, porquanto se considerou inconstitucionais as doações efetuadas por pessoas jurídicas, as quais representavam a maior fatia das receitas de candidatos, partidos e coligações. A partir de então, as principais fontes se limitam a doações por pessoas físicas e as verbas públicas decorrentes do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha.

No caso do Fundo Partidário, a teor do artigo 41-A da Lei nº 9.096/95, 95% serão distribuídos aos partidos na proporção dos votos obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, e apenas 5% serão designados para entrega, em partes iguais, a todos os partidos que atendam aos requisitos constitucionais de acesso aos recursos do Fundo Partidário. Ou seja, quanto maior a votação obtida pela legenda — ou no caso da federação, quanto maior for a votação dada a esse ente tratado como se partido único fosse —, maior será o valor total desses recursos públicos que, a despeito da vinculação teleológica de sua utilização (artigo 44 da Lei nº 9.096/95), podem ser aplicados em campanhas eleitorais.

Quanto ao Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), o art. 16-D da Lei nº 9.096/95 estabelece critérios de distribuição fortemente vinculados à votação aos cargos proporcionais, in verbis:

Art. 16-D. Os recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), para o primeiro turno das eleições, serão distribuídos entre os partidos políticos, obedecidos os seguintes critérios
I – 2% (dois por cento), divididos igualitariamente entre todos os partidos com estatutos registrados no Tribunal Superior Eleitoral
II – 35% (trinta e cinco por cento), divididos entre os partidos que tenham pelo menos um representante na Câmara dos Deputados, na proporção do percentual de votos por eles obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados;
III – 48% (quarenta e oito por cento), divididos entre os partidos, na proporção do número de representantes na Câmara dos Deputados, consideradas as legendas dos titulares;
IV – 15% (quinze por cento), divididos entre os partidos, na proporção do número de representantes no Senado Federal, consideradas as legendas dos titulares.
[Grifou-se]

Feita a soma, 83% dos recursos destinados especificamente ao financiamento de campanhas estão, de algum modo, ligados ao sucesso eleitoral da agremiação, de modo que, assim como sucede com o Fundo Partidário, a federação — considerada como se única agremiação fosse —, poderá ser beneficiada por um influxo considerável de recursos, eventualmente desproporcionais aos recebidos por outras legendas.

Não bastasse, considerando-se a evolução do valor total dos referidos fundos e a progressão da cláusula de desempenho, a tendência é que as federações tenham ainda mais poder de atração de outras legendas nos pleitos subsequentes, tornando o descompasso ainda mais grave.

Registre-se, ainda, considerada a desconcerto em tela, que também o tempo de propaganda no rádio e na televisão é definido pelos resultados eleitorais, visto que "90% [são] distribuídos proporcionalmente ao número de representantes na Câmara dos Deputados, considerado, no caso de coligação para as eleições majoritárias, o resultado da soma do número de representantes dos seis maiores partidos que a integrem" (artigo 47, § 2º, I, da Lei nº 9.504/97).

Desse modo, a federação, cujo contexto indica tratar-se de alternativa à coligação proporcional, vedada pelo texto constitucional, acaba por se beneficiar em tripla frente: (i) no Fundo Partidário, (ii) no Fundo Especial de Financiamento de Campanhas e (iii) na propaganda eleitoral. Beneficia-se no plano econômico e no campo midiático, com potencial de crescimento geométrico da respectiva influência, frente aos demais.

É bem verdade que, nos termos legais, a federação deve ter abrangência nacional e prazo mínimo de 4 anos, elementos relevantes que a distinguem da vetusta coligação proporcional. No entanto, conforme já exposto, tais exigências decorrem de mera lei ordinária, cuja alteração demanda apenas maioria simples, quórum de votação singelo, de fácil alcance por uma federação composta de muitas siglas.

Embora os aspectos acima citados sejam os mais críticos, há outros pontos polêmicos no instituto das federações.

O primeiro deles é a inexistência de regramento detalhado acerca dos processos decisórios, antes da formação da federação e após a sua constituição e registro.

Com efeito, para integrar a federação, basta a apresentação de "cópia da resolução tomada pela maioria absoluta dos votos dos órgãos de deliberação nacional de cada um dos partidos integrantes da federação" (artigo 11-A, § 6º, I, da Lei 9.096/95), não se exigindo manifestação de diretórios estaduais e municipais, ou mesmo de quantidade significativa de filiados. Da mesma forma, após a constituição da federação, decisões que impactam as agremiações federadas, em âmbito nacional, se sujeitam apenas ao crivo dos órgãos previstos no respectivo estatuto, sem exigência de participação ampla dos filiados.

Esse déficit democrático é especialmente relevante no âmbito eleitoral, haja vista que a própria Lei nº 14.208/2021 impõe a unidade da atuação da federação em âmbito nacional, como também cria regras de fidelidade partidária, que podem afetar filiados sem nenhum poder de interferência nas decisões dos órgãos de direção.

Afinal, nos termos do § 9º, do art. 11-A da Lei nº 9.096/95, "perderá o mandato o detentor de cargo eletivo que se desfiliar, sem justa causa, de partido que integra federação". Ou seja, o eleito, consagrado pelo manto da soberania popular, poderá ter o mandato interrompido por contrariar orientações da federação, que não necessariamente coincidirão com as regras inscritas no Estatuto da agremiação pela qual foi originariamente eleito, ainda que os filiados não tenham sido chamados a opinar.

Por fim, há forte insegurança acerca do procedimento de prestação de contas das federações partidárias. Com efeito, não está claro (i) se será um procedimento conjunto, (ii) se cada partido vai preservar a autonomia de acionar a Justiça Eleitoral, (iii) como será o regime de responsabilização dos dirigentes, (iv) se as ações de um partido autônomo poderão afetar (prejudicar) os demais, enfim, são pontos não esclarecidos e que só tornam mais obscuro e excêntrico o instituto.

Considerações finais
O novel regime de federações, instituído pela Lei nº 14.208/2021, é, possivelmente, uma das maiores quebras de paradigma no Direito Eleitoral. Seja porque reintroduziu a possibilidade de soma de esforços de partidos para o sucesso em eleições proporcionais — essencialmente proscrita pela Emenda Constitucional 97/207 —, seja porque inovou, considerada a regra de atuação conjunta por, pelo menos, quatro anos, que pode ser revogada por maioria simples.

Apesar de se tratar de instituto relevante, muitas são as dúvidas que geram real insegurança jurídica. A começar pela arguição de inconstitucionalidade formal e material, por descumprimento do devido processo legislativo, bem assim por contrariar o disposto no artigo 17 da Constituição Federal, com a redação conferida pelas Emendas Constitucionais 52/2006 e 97/2017.

Ademais disso, gera perplexidade o fato de a federação surgir como sucedâneo sui generis da proscrita coligação proporcional, ou seja, desvio de regra constitucional que poderá resultar aos partidos federados resultados eleitorais expressivos, e assim redundar em maiores fatias dos fundos públicos de financiamento de partidos e campanhas, maior exposição no rádio e na televisão e, por conseguinte, maiores resultados eleitorais em eleições subsequente, com potencial de influenciar o cenário político de maneira assimétrica, desigual.

O cenário fica ainda mais crítico quando se considera que essa federação, com potencial de monopolizar o jogo político, terá maior facilidade na construção de maiorias parlamentares, inclusive para eventualmente retirar a exigência de prazo mínimo de permanência e as sanções correlatas, em frontal colisão com o telos das reformas constitucionais recentes.

Desse modo, seja pela via da declaração de inconstitucionalidade, seja pela via da interpretação infraconstitucional, o Poder Judiciário precisa evitar que as citadas distorções afetem negativamente o já combalido sistema proporcional de votação.

Referências bibliográficas
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[1] Conforme notícia veiculada pela BBC Brasil (2016), a Universidade de Gotemburgo, na Suécia, divulgou levantamento no qual o Brasil aparecia como o país com o maior número de partidos com força política na Câmara em um conjunto de 110 países monitorados. Na comparação, baseada em dados de 2011, o número de partidos políticos efetivos do país era 11, enquanto a média mundial era de 4,1.

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