Ainda há juízes no Brasil

É do Poder do Judiciário a responsabilidade de desatar os nós do país

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28 de maio de 2017, 7h00

*Reportagem especial do Anuário da Justiça Brasil 2017, que será lançado na próxima quarta-feira (31/5) no Tribunal Superior Eleitoral.

O ano de 2016 foi marcado pelo mal resolvido processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, um campeonato em que não houve time vencedor. O mundo da política mergulhou no fundo do poço e lá ficou. O Judiciário, por sua vez, ganhou uma segunda cara: a do juiz que veste a capa do caçador de corruptos e não se importa com o que considera meros detalhes do Código de Processo Penal e da Constituição Federal. O barulho dos aplausos foi tão ruidoso que apagou a voz do outro Judiciário – igualmente comprometido com o combate à corrupção, mas não com os métodos do juiz federal de Curitiba. Em abril de 2017, uma seção contramajoritária da Justiça insurgiu-se contra as intermináveis prisões preventivas imotivadas decretadas na operação “lava jato”. A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal estabeleceu que é abuso prender preventivamente por motivos alheios à previsão legal.

Na mesma semana, outros adeptos da condenação por mero “livre convencimento”, ou seja, sem necessidade de provas, foram atingidos. O Plenário da Câmara dos Deputados aprovou reforma da legislação, em busca de equilíbrio nos litígios das relações de trabalho. Quase que simultaneamente, outro lote de abusos subiu na corda bamba. O Senado aprovou a Lei de Abuso da Autoridade, uma bandeira há muito empunhada por uma figura de proa do Judiciário e da política, o ministro Gilmar Mendes. Com dificuldade. A torcida a favor das condenações a qualquer preço rebelou-se contra a possibilidade de, proibidos os abusos, reduzir-se a autonomia da chamada “força-tarefa” – o consórcio que unificou num só corpo a Polícia Federal, o Ministério Público e o juiz federal de Curitiba. Nesse momento em que o Congresso acordou da sua letargia, o Senado começou a encerrar mais um capítulo das normas questionáveis: começou a mudar a legislação que prevê o foro privilegiado.

A cambaleante retomada de protagonismo pelos poderes Executivo e Legislativo, porém, veio acompanhada da quase certeza de que, quaisquer que sejam as decisões tomadas, cedo ou tarde, elas acabariam submetidas ao crivo do Judiciário, de modo especial do STF. Há anos o tribunal convive com a crítica de que é ativista ou que impõe ao país uma “supremocracia”, um governo do Supremo no lugar do governo eleito pelo povo. Para os críticos, a corte constitucional brasileira vem ocupando espaços que não são dela, mas do Legislativo ou do Executivo. O ministro Gilmar Mendes, estudioso de instituições estrangeiras, garante que isso faz parte do jogo democrático. Por serem políticas e terem o papel de interpretar o documento fundamental de um país, cortes constitucionais estão sempre sujeitas a esse tipo de comentário, já que não podem ficar circunscritas a questões puramente jurídicas. O ministro Dias Toffoli acrescenta que o STF “não age de motu próprio”. Para ele, a principal razão para ter assumido o atual protagonismo é “a Constituição extremamente analítica que temos”. Para a presidente da corte, ministra Cármen Lúcia, a equação é simples: “Quando as coisas ficam difíceis, entra o Direito”.

O professor Carlos Blanco de Morais, catedrático da Universidade de Lisboa, vê o quadro de modo diferente: “O STF não tem hesitado em derrogar tacitamente a Constituição, através de mutações constitucionais de natureza jurisprudencial”, explicou, em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico. Cita o exemplo da equiparação da união homoafetiva à união estável descrita na Constituição, embora o parágrafo 3º do artigo 226 diga que “é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar”. Para o professor, o STF sobrepõe princípios a regras constitucionais, especialmente por meio de mecanismos como a súmula vinculante, “uma espécie de medida provisória do Judiciário”. “O Supremo brasileiro é a corte constitucional mais poderosa do mundo”, disse em palestra na USP.

Gil Ferreira/Agência CNJ
Gil Ferreira/Agência CNJ

O fato indiscutível é que o Supremo se tornou protagonista da política nacional. Conquistou espaço na opinião pública ao tomar para si causas de grande repercussão social, como a declaração de constitucionalidade da pesquisa com células-tronco embrionárias ou a liberação do aborto de fetos anencéfalos. Depois do julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, o tribunal incorporou o papel de celebridade. Em 53 sessões e seis meses de 2012 dedicou-se exclusivamente ao processo, que atingiu a cúpula do partido que governava o país. O julgamento rendeu importância simbólica para a corte, mas criou “traumas”, ao colocar em xeque a sua capacidade de trabalho. Depois do mensalão, a competência para julgar casos penais foi transferida para as turmas, o espectro de matérias julgadas pelo Plenário Virtual foi ampliado e os ministros passaram a fazer análises mais restritivas da repercussão geral.

O ponto em que esse movimento ficou claro foi a sessão do dia 17 de fevereiro de 2016, quando o STF decidiu não ser cabível Habeas Corpus contra decisões monocráticas de ministros da corte e que a pena de prisão já pode ser executada após decisão condenatória da segunda instância. Ficou claro que o tribunal priorizou argumentos ligados à efetividade do sistema de Justiça, mesmo que isso tenha levado à “esterilização de uma das principais conquistas do cidadão: de jamais ser tratado pelo poder público como se culpado fosse”, segundo disse o ministro Celso de Mello em seu voto sobre a execução antecipada da pena.

Rosinei Coutinho - SCO/STF
A presidente do STF, ministra Cármen Lúcia: “Quando as coisas ficam difíceis, o direito entra.”
Crédito: Rosinei Coutinho – SCO/STF

Cármen Lúcia entende que a tão criticada hipertrofia do Judiciário é sintoma da consolidação da democracia: à medida que a população descobre seus direitos e percebe que o Congresso é omisso, procura a Justiça. Já Edson Fachin acha em que algumas esferas crescem na proporção que outras encolhem. Segundo ele, o Legislativo não tem conseguido superar seus impasses, o que levou à intensa judicialização da política. São os políticos que levam a política para o tribunal, garante.

O ano de 2016 está repleto de casos a comprovar as teses dos dois ministros. Em outubro, o STF autorizou a administração pública a cortar o ponto de servidores que entrarem em greve. Foi uma decisão surpreendente. Em todas as ocasiões anteriores em que abordou a causa, além de decretar a mora legislativa, a corte decidiu que, enquanto não viesse lei, greves de funcionários públicos seguiriam as regras da iniciativa privada. Para os servidores, a decisão significou proibição à greve. Para o mundo político, a corte legislou. Para Luiz Fux, a greve dos servidores foi permitida pela Constituição “num rasgo demagógico”.

A desaposentação foi outro sintoma de vácuo legislativo. O STF considerou inconstitucional a prática de um aposentado voltar a contribuir com a Previdência para se aposentar novamente depois, com um benefício maior. Luiz Fux reconheceu o viés econômico da discussão ao afirmar que a corte proibiu a desaposentação “olhando para a economia”. “Evitamos um rombo de R$ 300 bilhões”, disse. Teori Zavascki e Dias Toffoli defenderam que o princípio da solidariedade da Seguridade Social não permite que o benefício previdenciário seja proporcional à contribuição, já que o valor da contribuição é usado tanto para pagar a aposentadoria de quem contribui, como para custear os benefícios dos outros.

A mesma omissão do Congresso resultou numa decisão já considerada histórica para o controle de constitucionalidade brasileiro. Foi no julgamento de ação em que o Supremo declarou o Congresso omisso em não aprovar lei complementar para tratar da compensação aos estados pela renúncia fiscal de ICMS a produtos destinados à exportação. Em ações desse tipo, cabe à corte apenas declarar se a mora legislativa é ou não inconstitucional, como apontou o ministro Marco Aurélio. Mas venceu a proposta de Gilmar Mendes que deu um ano para o Congresso editar a lei complementar. Caso o prazo não seja respeitado, o Tribunal de Contas da União assume a responsabilidade, junto com o Conselho Nacional de Política Fazendária, de elaborar um critério de compensação. Luiz Fux acredita que essas decisões fazem parte do momento atual da jurisdição, e não apenas do Supremo. Segundo ele, a análise hoje tem de levar em conta o “binômio Direito-Economia”. Já Edson Fachin sustenta que “o federalismo fiscal bateu às portas, pediu para entrar e o Supremo deu a ele uma cadeira privilegiada”.

No caso da renúncia de ICMS, Gilmar Mendes refletiu uma preocupação que é compartilhada por outros ministros: o desrespeito a decisões do tribunal pelos outros poderes. Cita o caso da ADPF 347, em que o Supremo declarou que o sistema penitenciário brasileiro está num “estado inconstitucional de coisas”. A corte decidiu, então, que o Executivo teria de aplicar imediatamente o dinheiro do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) na melhoria do sistema carcerário. A decisão é de 2015 e, em abril de 2017, não havia sido cumprida. Mais recentemente, Luiz Fux determinou que proposta de reforma do Código de Processo Penal aprovada pela Câmara e enviada ao Senado voltasse à casa baixa. O projeto é de autoria do Ministério Público Federal, mas contou com assinaturas de cidadãos, o que tornou o texto “de iniciativa popular”. Para Luiz Fux, o Congresso não pode alterar o sentido da redação de projeto “de iniciativa popular”. A decisão só foi cumprida um mês depois. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), considerou a liminar de Fux uma amarra aos trabalhos parlamentares e anunciou que conferiria a autenticidade das assinaturas de apoio ao projeto.

Carlos Moura - SCO/STF
Edson Fachin: São os políticos que levam a política para o tribunal. Crédito: Carlos Moura – SCO/STF

O Senado adotou postura de maior enfrentamento quando Marco Aurélio determinou que Renan Calheiros (PMDB-AL) se afastasse da Presidência da casa. A Mesa Diretora informou ao STF que só cumpriria decisões tomadas pelo Plenário do Supremo. O Pleno derrubou a liminar e Renan declarou que “decisão ilegal não é para ser cumprida”. Para Marco Aurélio, tudo isso é sintoma do protagonismo que o STF assumiu. “Toda vez que o tribunal avança, lançamos um bumerangue que pode voltar em nossas testas”, costuma dizer. Ao Anuário, afirmou que “parece moda o não cumprimento de decisões judiciais”.

No voto sobre a compensação pela renúncia de ICMS, Gilmar Mendes escreveu: “Na realidade constitucional brasileira, atormenta o risco de julgados do STF estarem se transformando em meros discursos lítero-poéticos. A despeito da força normativa de que dispõem, o efetivo cumprimento de importantes acórdãos tem se mostrado sonho cada vez mais distante”. Um exemplo foi a liminar do ministro Luís Roberto Barroso que proibiu o Senado de enviar para sanção presidencial projeto de reforma da Lei Geral de Telecomunicações. Para o ministro, o projeto é de “destacada relevância” para o país por seu impacto econômico e não poderia ter sido aprovado sem que fossem analisados todos os recursos contra sua tramitação. Dois dias depois, o Senado enviou o texto para a Presidência da República, acompanhado de uma nota dando ciência da liminar de Barroso. Analistas acreditam que a liminar do ministro é um marco no controle judicial de projetos de lei. A jurisprudência do tribunal é a de que não podem ser analisadas questões internas do debate legislativo. Nesse caso, Barroso fez um “controle preventivo” de constitucionalidade das normas do processo legislativo, apontou o advogado Eduardo Borges Espínola Araújo, em artigo publicado pela revista eletrônica ConJur.

Em matéria eleitoral o fenômeno da hipertrofia do Judiciário é especialmente sensível. Na discussão sobre a alínea ‘l’ da Lei da Inelegibilidade (LC 64/1990), conforme redação dada pela LC 135/2010, (a Lei da Ficha Limpa), por exemplo, as variações na jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral têm tido efeitos diretos em resultados de eleições. Somente em 2016 a corte deu duas interpretações diferentes à matéria, nenhuma delas condizentes com a definida durante as eleições de 2014. O dispositivo descreve a causa de inelegibilidade por ato doloso de improbidade administrativa. De acordo com a lei, esse ato deve resultar em dano ao erário e em enriquecimento ilícito de quem o praticou. Em 2014, o TSE decidiu que ambas as condições devem constar da condenação por improbidade para que se consume a inelegibilidade.

José Cruz/ Agência Brasil
Gilmar Mendes, presidente do TSE: Leis mal feita levam a grandes confusões. Crédito: José Cruz/ Agência Brasil

Em 2016, ao julgar um ex-prefeito do município de Quatá (SP), o TSE manteve o entendimento de 2014. Mas o ministro Herman Benjamin lançou a tese de que, embora a Lei da Ficha Limpa exija que o ato de improbidade tenha resultado em dano ao erário e enriquecimento ilícito, a existência de um dos dois é suficiente para declarar a inelegibilidade. Ou seja, onde a lei diz “e”, o tribunal deve entender “ou”. Segundo Herman Benjamin, a interpretação de que é necessária a presença dos dois critérios é “gramatical”, mas, “segundo as lições de hermenêutica”, os métodos de interpretação devem ser aplicados em conjunto. Dois meses depois, ao julgar ex-prefeito de Foz do Iguaçu (PR), o TSE aplicou a tese de Herman Benjamin e declarou a inelegibilidade do político. Com o detalhe de que a denúncia não falava em enriquecimento ilícito, mas em “diferença imotivada” entre o valor contratado e o valor pago pelo serviço.

Foi antes de tudo uma mudança de postura. No caso de Quatá, quando o TSE manteve a decisão de 2014, vice-presidente da corte, Luiz Fux, alertou os colegas para terem a “consciência de que não estamos num governo de juízes”. “No Estado Democrático de Direito, a instância hegemônica é o Parlamento”, afirmou. Gilmar Mendes fez outro alerta: “Estamos vendo o custo de uma lei mal feita”, afirmou, referindo-se à Lei da Ficha Limpa. “Analfabetos não podem fazer leis, pessoas despreparadas não podem fazer leis, porque, depois, isso dá uma grande confusão no Judiciário.” O resultado dessas flutuações é que, no dia seguinte ao segundo turno das eleições municipais, 145 cidades aguardavam decisão do TSE para saber quem seria o prefeito.

Em março de 2017, o número de candidatos que aguardavam decisão do TSE para tomar posse – ou dar lugar a novas eleições – havia caído para 63. Em 23 casos, o tribunal marcou novas eleições, o que também foi fruto de novo entendimento por parte da corte: o de que devem ser marcadas novas eleições toda vez que o candidato mais votado tiver o registro de candidatura indeferido ou o diploma cassado. A jurisprudência anterior era de que isso só deveria acontecer no caso de o candidato mais votado ter alcançado mais de 50% dos votos válidos.

No Tribunal Superior do Trabalho a briga é por direitos. Enquanto a Câmara dos Deputados aprova a reforma das leis trabalhistas proposta pelo governo, os ministros do TST brigam para mostrar que o papel da Justiça do Trabalho é defender o trabalhador. Em setembro de 2016, o STF decidiu que acordos entre sindicatos e patrões podem tratar de salário e jornada de trabalho mesmo que contrariem a lei, desde que o acerto fique “dentro do limite do razoável”. Duas semanas depois, o presidente do TST, Ives Gandra Martins Filho, convocou o Plenário para discutir se o tribunal seguiria ou não a “orientação” do STF. Ele e a ministra Maria Cristina Peduzzi entendem que o Supremo encerrou a discussão, mesmo que a decisão não esteja alinhada com a jurisprudência da corte trabalhista. A reforma aprovada pela Câmara prevê que o acordo pode se sobrepor ao que dispõe a lei.

Jefferson Rudy/Agência Senado
Direito de greve de servidores públicos: Legislativo se omite, Judiciário legisla
Crédito: Jefferson Rudy/Agência Senado

A terceirização de serviços é uma questão histórica para o tribunal. Até 2017, valeu a Súmula 331 do TST, que proíbe a terceirização da atividade-fim das empresas. É uma jurisprudência a que os ministros são tão apegados que, em 2016, publicaram manifesto contra a “precarização da mão de obra”, que é como chamam a terceirização. Em março de 2017, o projeto foi aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente Michel Temer. O ministro Lélio Bentes Corrêa, representante da corte no Conselho Nacional de Justiça, entende que flexibilizar leis trabalhistas em momentos de crise “preserva o lucro em detrimento das garantias e direitos dos trabalhadores”.

O contraponto vem do STJ. Em 2016, julgar mais e melhor tornou-se a principal meta do tribunal sob a Presidência da ministra Laurita Vaz. Por exemplo, o Núcleo de Análise dos Recursos Repetitivos, o antigo Nurer, ganhou novas funções na análise de admissibilidade de recursos e proporcionou uma redução de 38% na sua distribuição. Foi criado, também, o Plenário Virtual para julgar agravos e embargos e regulamentado um instrumento de assunção de competência, que funciona junto com o Núcleo de Gerenciamento de Precedentes (Nugep), órgão criado para acompanhar matérias que podem ser afetadas como recursos repetitivos. Foi criada, ainda, comissão para analisar a aplicação das teses definidas em recursos repetitivos pelo STJ e nos recursos com repercussão geral pelo STF.

Tudo isso porque o tribunal tem se preocupado com o tal ativismo. Hoje, a corte analisa a possibilidade de fazer relatórios sobre incoerências ou falhas na legislação para encaminhá-los ao Congresso. Ministros da corte estudam incluir sugestões de alterações, baseadas em suas experiências como julgadores. Segundo os envolvidos, é um trabalho que pode diminuir atritos com parlamentares, que costumam acusar o Judiciário de invasão de competência toda vez que um direito em discussão no Congresso é reconhecido pela Justiça.

Serviço
Lançamento do Anuário da Justiça Brasil 2017
Quando:
31 de maio, quarta-feira
Onde: Sede do Tribunal Superior Eleitoral
Horário: 18h30
Para comprar o Anuário: Livraria ConJur

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