Processo eleitoral

Lei Ficha Limpa é compatível com a Constituição

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23 de março de 2011, 10h16

A Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010) deixará a sua marca na história do constitucionalismo brasileiro, independentemente do entendimento a ser firmado pelo Supremo Tribunal Federal com a posse do 11º ministro[2]. Os tribunais e a comunidade jurídica foram instados a presentear o país com debates e argumentos ora tendentes a dar maior relevo aos direitos políticos fundamentais ora tendentes a ressaltar a proteção da legitimidade do processo político-eleitoral.

Com um juiz a menos desde agosto de 2010, quando da aposentadoria do ministro Eros Grau, o Supremo Tribunal Federal, em dois casos, viu-se diante de impasse ao apreciar recursos que impugnavam a lei quanto a sua eficácia para as eleições de 2010 e quanto à proporcionalidade e à retroatividade da causa de inelegibilidade por renúncia ao mandato. As divergências geradas nas duas ocasiões conduzem as linhas aqui traçadas sobre a efetividade da tutela judicial do processo político-eleitoral pelo Supremo Tribunal Federal.

Procurou-se desenvolver uma análise pragmática ao tempo em que também reverente à idealidade das normas constitucionais. Refletiu-se sobre os argumentos aventados no RE 630.147/DF e RE 631.102/PA, interpostos respectivamente por Joaquim Roriz e Jader Barbalho, que impugnavam decisões semelhantes do Tribunal Superior Eleitoral que indeferiam seus registros com base no novo dispositivo do artigo 1º, I, “k”, da Lei Complementar 90/1994. As normas, os fatos e a jurisprudência foram historicamente contextualizados à luz do principal das alterações legislativas, do uso instrumental da renúncia ao mandato e dos julgados que ilustram o entendimento da Corte hoje.

A nosso entender, o Judiciário pátrio vem confundindo a compreensão do devido processo legal eleitoral em sua perspectiva formal da substancial desde que enfrentou a matéria em 1990, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 354, relator ministro Octavio Gallotti, quando o termo “processo eleitoral” do artigo 16 da Constituição foi restritivamente interpretado.

Ressalte-se que as posições convergentes ou divergentes aos entendimentos aqui firmados não são tomadas pelo binômio verdade x inverdade, mas pelo da correção ou incorreção, cujo status dependerá da coerência do discurso apresentado e de sua aceitabilidade pela comunidade jurídica[3]. Isso não quer dizer, entretanto, que críticas ou elogios, e o próprio texto, possam ser todos considerados corretos ou incorretos a depender da perspectiva adotada pelo jurista. Não é caso de tamanho relativismo. Há de se ater à coerência do discurso capaz de projetar um modelo de sociedade capaz de lidar adequadamente com os imperativos sistêmicos das sociedades complexas. Nesse sentido, há de se harmonizarem as liberdades dos antigos com as liberdades dos modernos, assegurando autonomia pública e privada à cidadania, precavendo-se ao mesmo tempo dos perigos da política partidária[4].

Da proteção da probidade e da moralidade considerada a vida pregressa do candidato

Antes de adentrar nos dois casos enfrentados pelo Supremo Tribunal Federal em 2010, é recomendável relembrar o contexto histórico da promulgação da Emenda Constitucional de Revisão 4, de 07 de junho de 1994, quando se alterou a redação do artigo 14, parágrafo 9º, fundamento constitucional da Lei da Ficha Limpa:

§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

O incremento das expressões “probidade administrativa” e “moralidade para o exercício de mandato considerada a vida pregressa do candidato” foi uma de outras reações daquela Legislatura (1990-1994) [5] aos episódios de corrupção envolvendo o presidente Fernando Collor de Mello em 1992 e deputados federais envoltos no chamado “Escândalo dos Anões do Orçamento”, revelado em 1993.

O “Caso Collor” dizia respeito a denúncias de “caixa dois” de sua campanha eleitoral, envolvendo diretamente o tesoureiro Paulo César Farias. O desenrolar dos fatos levaram ao impeachment do presidente, que, antes de ser julgado pelo Senado, renunciou ao mandato para tentar interromper o processo sem sucesso, o que o deixou inabilitado para o exercício de toda e qualquer função pública por oito anos (artigo 52, parágrafo único, CF).

O “Escândalo dos Anões do Orçamento” consistia, por sua vez, num esquema de desvio de dinheiro público em que deputados federais recebiam dinheiro para aprovar emendas do orçamento da União e para ajudar a liberar recursos públicos junto a órgãos federais em benefício de particulares. Investigados e processados por quebra de decoro parlamentar na Câmara Federal, renunciaram aos mandatos às vésperas do julgamento Plenário. Majoritário foi à época o entendimento de que os processos deveriam ser arquivados, evitando eventual cassação e a conseqüente inelegibilidade política de três anos, como previa então o artigo 1º, I, “b”, da Lei Complementar 64/1990 ou Lei das Inelegibilidades[6].

Como que de modo profilático, a ECR 4/1990 prescrevia ao legislador maior rigor às causas de inelegibilidade, a fim de evitar ocorrências semelhantes, devendo observar a moralidade e a vida pregressa do cidadão para o exercício do mandato, a fim de proteger a probidade administrativa.

A mesma publicação da ECR 4/1994 trouxe também a ECR 6/1994, que acrescentara o parágrafo 4º ao artigo 55 da Constituição[7]. O dispositivo vigente prevê a suspensão dos efeitos da renúncia de parlamentar que estiver respondendo a processo que leve ou possa levar à perda do mandato por quebra de decoro parlamentar. Pretendia a norma proscrever os episódios de renúncia ao mandato de 1992 e 1993.

Não obstante a solução constitucional para a renúncia instrumental do mandato, a Câmara dos Deputados, ao decidir sobre a renúncia de dois parlamentares suspeitos de receber dinheiro para votar a favor da “Emenda da Reeleição” em 1997, interpretou restritivamente a expressão “processo que vise ou possa levar à perda do mandato” do artigo 55, parágrafo 4º, da Constituição como referência exclusiva ao processo ético-disciplinar já instaurado[8]. Como os deputados estavam sendo investigados preliminarmente por comissão de sindicância, a renúncia antes da instauração do processo disciplinar permitiu que a investigação fosse arquivada.

O entendimento de que bastava o congressista renunciar antes das mesas das casas legislativas deliberem sobre pedido protocolado de abertura de processo ético disciplinar, para impedir a incidência do artigo 55, §4º, da Constituição, perdurou até a publicação da Lei da Ficha Limpa, admitindo-se inúmeros episódios de renúncia em que parlamentares evitaram a investigação e a inelegibilidade.

Nas eleições de 1996, o artigo 14, parágrafo 9º, da Constituição, ainda sem modificações da lei de inelegibilidades que regulamentasse sua nova redação, tentativas de aplicação direta da norma constitucional foram apreciadas pelo Tribunal Superior Eleitoral, que firmou o entendimento enunciado na Súmula 13 de que “não é auto-aplicável o parágrafo 9º, artigo 14, da Constituição, com a redação da Emenda Constitucional de Revisão 4/94.”

Nove anos mais tarde, em 2005, ainda sem texto que regulamentasse a matéria, o país se deparou com o “Escândalo do Mensalão”, desencadeado por declarações do deputado federal Roberto Jefferson, que apontou José Dirceu, chefe da Casa Civil do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de comprar apoio parlamentar por meio de pagamento mensal em dinheiro a lideranças e congressistas de menor expressão política.


Nas eleições gerais de 2006, como que em reação ao “Mensalão” — e ainda sem modificação na Lei das Inelegibilidades a regulamentar a nova redação do artigo 14, §9º, da Constituição — assistiu-se a outra tentativa de segmentos da comunidade jurídica de auto-aplicar os critérios da vida pregressa e da moralidade para o exercício do mandato aos pedidos de registro de candidatura.

Caso que fez história foi o processo de impugnação de registro de candidatura de Eurico Miranda, dirigente desportivo carioca, com fundamento no artigo 1º, I, ‘e’, da Lei das Inelegibilidades. Por encontrar-se à época respondendo a sete processos criminais, foi afastada a necessidade de aguardar o trânsito em julgado dessas ações, conforme previa o texto legal:

Art. 1º São inelegíveis: I – para qualquer cargo: e) os que forem condenados criminalmente, com sentença transitada em julgado, pela prática de crime contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e por crimes eleitorais, pelo prazo de 3 (três) anos, após o cumprimento da pena.

O Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro entendeu que as inúmeras ações criminais em curso contra Miranda ofendiam o critério da vida pregressa, que se mostrava insuperável ante a necessidade de proteção da moralidade para o exercício do mandato.

Simultaneamente ao Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, outros tribunais regionais eleitorais passaram a fazer o mesmo em 2006, indeferindo o registro de candidatura de casos que lhes pareciam incompatíveis com a moralidade para o exercício do mandato e para a proteção da probidade administrativa.

O Tribunal Superior Eleitoral, ao julgar os recursos, entre eles o de Miranda, confirmou, neste caso (RO 1.069/RJ), por exemplo, por maioria de cinco votos a quatro, o entendimento de que não era auto-aplicável o artigo 14, parágrafo 9º, da Constituição, registrando em ementa que “na ausência de lei complementar estabelecendo os casos em que a vida pregressa do candidato implicará inelegibilidade, não pode o julgador, sem se substituir ao legislador, defini-los.

Em agosto de 2008, ano de eleições municipais, foi a vez da Associação dos Magistrados Brasileiros tentar superar o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral, firmado desde 1996 (Súmula 13). A peça inicial da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 144 pedia para o Supremo Tribunal Federal:

(…) determinar a todos os juízos eleitorais, de qualquer instância, que observem a auto-aplicabilidade da norma do parágrafo 9º do artigo 14 da Constituição Federal, com a redação dada pela ECR 4/94, bem ainda a ocorrência da revogação das condições a seguir mencionadas, de forma a viabilizar o exame da vida pregressa dos candidatos a cargos eletivos:

(a) a exigência do ‘trânsito em julgado’ das alíneas “d”, “e”, e “h”, do inciso I do artigo 1º ,

(…)

Requer ainda a Associação dos Magistrados Brasileiros  (…) que essa eg. Corte, nos termos do artigo 10 da Lei 9.882/92, fixe como condição e como modo de interpretação dos preceitos fundamentais, que caberá à Justiça Eleitoral sopesar a gravidade das condutas apontadas na lei complementar, mesmo sem o trânsito em julgado, para deliberar pela rejeição ou não do registro do candidato.

(destaques do original não reproduzidos)

Em suma, o pleito da Associação dos Magistrados Brasileiros  consistia em obter provimento declaratório de “auto-aplicabilidade da norma do parágrafo 9º do artigo 14 da CF”, determinando a todos os juízos eleitorais que sopesassem a “gravidade das condutas apontadas na lei complementar [64/1994], mesmo sem o trânsito em julgado, para deliberar pela rejeição ou não do registro do candidato.”

Incomodava que políticos profissionais permaneciam na vida pública a despeito de contabilizarem inúmeros processos criminais ou de improbidade, gozando de famigerada fama, e cuja vida pregressa mostrava-se inadequada para o mandato e para a garantia da probidade administrativa. O desconforto chegava ao Judiciário, agora perante a mais alta Corte, para ser apreciado em abstrato, com eficácia erga omnes e efeito vinculante.

O ministro Cezar Peluso em julgamento de 06 de agosto de 2008 assim registrou sua posição contra o pleito:

(…) cairíamos no terreno do puro arbítrio, dentro do qual o recurso à ideia de igualdade é puro contrassenso ou não-senso, porque, no regime do arbítrio, não há lugar para consideração de situações assemelhadas, mas apenas o subjetivismo raso daquele que emite o juízo normativo, e aqui me parece estar uma das conseqüências mais graves da interpretação pretendida nesta demanda, que há de substituir-se o critério objetivo da lei por um juízo moral de qualquer juiz que se põe na condição de déspota; e juízo absurdo, porque emitido ab extra. Notem os senhores que não se trata de um juízo criminal, que se pronuncia ao cabo do processo respectivo, mas de juízo de elegibilidade ou inelegibilidade na só pendência do processo penal, por magistrado que não tem acesso aos autos e, por isso, poderá de fora, como um terceiro, aquilo só que lhe aparenta e sugere a existência formal desse processo.

Os argumentos guardam sentido ante os meios pretendidos: juízes criando normas restritivas de direitos políticos fundamentais dos cidadãos com base em princípios ou conceitos abertos[9].

O relator, ministro Celso de Mello, afirmou ainda que a presunção de inocência requeria o necessário trânsito em julgado das ações penais que por ventura o cidadão estivesse a responder. Para ele, o princípio da presunção estaria a impedir qualquer pretensão de aplicação de causa de inelegibilidade sem o trânsito em julgado das condenações penais[10].

O pedido ainda permitiria ações abusivas de todo tipo. Num contexto de disputa eleitoral, no comumente verificado vale-tudo eleitoral, seria fácil forjar inquéritos e denúncias de última hora, encampados por delegados ou promotores (de boa-fé ou não), inviabilizando jurídica e politicamente a candidatura do cidadão. Os prejuízos eleitorais seriam por vezes irreversíveis, pois o processo de impugnação desenvolve-se concomitantemente à campanha eleitoral. Anotou o ministro Gilmar Mendes que:

Todos sabem quão fácil é, hoje em dia, instaurar procedimentos investigatórios contra quem quer que seja. Não é difícil vislumbrar, mesmo porque são notórios os casos concretos ocorridos e amplamente divulgados nos meios de comunicação, os abusos e arbitrariedades que podem ser cometidos com base nessa interpretação que a entidade autora pretende conferir ao art. 14, parágrafo 9º, da Constituição. A via que se abre é, portanto, perigosa e ameaçadora do próprio regime democrático.

Acrescente-se ainda que o processo de impugnação do registro de candidatura é extremamente simplificado[11], inapto a assegurar a ampla defesa ante a abertura decorrente da aplicação direta do artigo 14, parágrafo 9º, da Constituição.

Para a maioria dos ministros, tratar-se-ia de um problema de legalidade estrita, para usar termo ressaltado pelos ministros Marco Aurélio e Ellen Gracie.

Observou a ministra Cármen Lúcia que a morosidade da justiça contribuía para o sentimento de impunidade e corrupção, e a solução adequada poderia estar em assegurar a razoável duração da prestação jurisdicional.

Já o ministro Eros Grau observou que ética e moralidade não se confundem com o direito posto. A ética, para o direito, é a revelada pela legalidade estrita de suas normas. Ultrapassar a fronteira do legal seria o mesmo que irromper a barreira entre política e Direito, o que equivaleria a prescindir da legalidade.

Ideia que foi complementada pela advertência do Ministro Gilmar Mendes, para quem a atribuição de verificação da vida pregressa dos candidatos seria dos partidos políticos — portanto também dos cidadãos e dos atores envolvidos no processo eleitoral.


Trocando em miúdos, não caberia aos juízes eleitorais se substituírem ao eleitor para retirar do pleito aqueles que lhes parecessem inaptos, sobretudo nas condições de subjetividade pleiteadas, interferindo na liberdade de escolha do cidadão e na liberdade de organização partidária. O eleitor teria, nesse sentido, o direito de votar segundo seus valores e convicções no candidato apresentado pelos partidos, nos termos da legislação vigente. E o partido político seria foro de controle da qualidade política de seus candidatos. Finalmente, ao problema da morosidade do judiciário, que contribuía para o sentimento de impunidade, não poderia ser resolvido à custa da supressão parcial da legalidade.

Havia por trás do pleito a ideia perigosa de que seria melhor uma eleição tutelada por juízes do que deixada à responsabilidade dos eleitores, geralmente desinformados e inábeis para avaliar a vida pregressa do candidato – não obstante a correção da assertiva relativa à desinformação dos eleitores[12]. O voto. Assim como o direito de ser votato, ainda é, prima facie, o instituto nuclear do processo eleitoral e do sistema democrático. Ao Judiciário cabe assegurar a liberdade e a participação dos cidadãos, e não servir de tutor da formação do escrutínio eleitoral, ainda que distorções sociais e políticas possam sugerir um sistema eleitoral débil. Vale dizer que a democracia não prescinde de povo.

Não estava a Corte a decidir caso teratológico, que viesse a dar um “nó” na racionalidade jurídica e pudesse então levar a uma legítima decisão contra legem da regra, como geralmente ocorre nos chamados casos difíceis (hard cases).

O Supremo Tribunal Federal enterrava assim a possibilidade de interferência do Judiciário no processo eleitoral a partir da interpretação e aplicação direta do artigo 14, parágrafo 9º, da Constituição. A inelegibilidade é restrição que pode ser instituída somente por meio de lei complementar. Para uma melhor proteção da probidade e a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, nova lei complementar haveria de ser promulgada.

A Lei da Ficha Limpa no Supremo Tribunal Federal

A Lei Complementar 135, ou Lei da Ficha Limpa, foi publicada em 7 de junho de 2010, modificando a Lei Complementar 64/1990 e antecipando em três dias o início das convenções partidárias para as eleições gerais do mesmo ano.

À luz do artigo 14, parágrafo 9º, da Constituição, com texto modificado pela ECR 4/1994, a Lei da Ficha Limpa majorou os períodos de inelegibilidades e trouxe novas causas, a fim de proteger a normalidade, a legitimidade das eleições e a probidade administrativa. São essas alterações que desafiam a Constituição, levantando dúvidas sobre a eficácia imediata da lei para as eleições de 2010, a possibilidade de atribuir efeitos a fatos passados para tornar o cidadão inelegível e mesmo a proporcionalidade e razoabilidade de cada nova norma.

Vale registrar, desde logo, que não houve impugnação em sede de controle abstrato da Lei da Ficha Limpa[13].

O caso de Joaquim Roriz foi o primeiro dos dois recursos que ascendeu ao Supremo Tribunal Federal ainda durante as eleições, em 23 de setembro de 2009, por meio do Recurso Extraordinário 630.147/DF, relator ministro Carlos Ayres Britto.

Seu pedido de registro de candidato a governador do Distrito Federal havia sido indeferido pelo Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal, e confirmado pelo Tribunal Superior Eleitoral, com base no novo dispositivo do artigo 1º, I, “k”, da Lei das Inelegibilidades:

K – o Presidente da República, o Governador de Estado e do Distrito Federal, o Prefeito, os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa, das Câmaras Municipais, que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo por infringência a dispositivo da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término da legislatura;

Joaquim Roriz havia renunciado ao mandato de senador em 2007 após a imprensa divulgar uma conversa telefônica em que ele aparecia combinando local a serem divididos aproximadamente R$ 2.200.000,00 (dois milhões e duzentos mil reais). Protocolizado requerimento no Senado para abertura de processo ético-disciplinar por quebra de decoro parlamentar, Roriz renunciou ao mandato antes que a Mesa deliberasse sobre o pedido, evitando, como era praxe no Congresso Nacional desde 1997, a eventual instalação de processo disciplinar e consequente cassação de seu mandato, que o deixaria inelegível por oito anos, a contar do fim do mandato para o qual havia sido eleito em 2006 (artigo 1º, I, “b”, da Lei das Inelegibilidades[14]).

Como a Corte encontrava-se aguardando a indicação presidencial para ocupar a 11ª cadeira, o julgamento terminou em impasse, com cinco juízes desprovendo e cinco provendo o recurso. Impasse que se estendeu também sobre o critério de desempate, o que levou à suspensão do julgamento. Joaquim Roriz então renunciou à sua candidatura em favor da esposa e pediu desistência do recurso, que foi arquivado.

A Corte, em 27 de outubro de 2010, pouco mais de trinta dias depois, voltou a se debruçar sobre caso semelhante ao apreciar o RE 631.102/PA, rel. ministro Joaquim Barbosa, interposto pelo deputado Jader Barbalho, que em 2001 renunciara ao mandato após ter supostamente mentido ao Senado ao esclarecer fatos sobre denúncias de corrupção[15]. Assim como Roriz, Barbalho evitava a abertura de processo ético-disciplinar que pudesse eventualmente levá-lo à perda do mandato e à suspensão dos direitos políticos. O Supremo Tribunal Federal, reprisando o empate anterior, decidiu, por maioria dos membros, que o critério de desempate regimental seria aquele que determinasse a preservação da decisão impugnada. Manteve-se assim o indeferimento do registro de candidato de Jader Barbalho, conforme decisão do Tribunal Superior Eleitoral.

Em síntese do relevante, as questões ou os fundamentos aventados e apreciados pelo Judiciário em ambos os recursos resumem-se à observância ou não da anualidade da lei eleitoral (artigo 16, Constituição Federal), à possibilidade de a nova causa de inelegibilidade retroagir, atingindo renúncias anteriores à publicação da lei, visto que quando os recorrentes renunciaram não havia previsão legal que os tornassem inelegíveis, e, finalmente, à constitucionalidade da nova causa de inelegibilidade em face do princípio da proporcionalidade e da razoabilidade.

Os ministros Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Ayres Britto e Ellen Gracie votaram pela eficácia imediata da lei[16]. Faz-se alusão os fundamentos e precedentes mais importantes.

A Consulta 11.173/1990, Tribunal Superior Eleitoral, decidiu em situação similar, atribuir eficácia imediata da Lei Complementar 64, de 21 de março de 1990 (agora modificada pela Lei da Ficha Limpa), publicada também pouco antes das convenções partidárias para as eleições estaduais daquele ano.

Ação Direta de Inconstitucionalidade 354-2/DF, julgada pelo Supremo Tribunal em 24 de setembro de 1990, quando a Corte concluiu que a alteração na forma de contagem dos votos não constituía lei relativa a procedimento eleitoral, mas sim lei material de Direito Eleitoral. O termo “processo eleitoral” foi entendido em sentido estrito, a indicar somente o período que se inicia com as convenções partidárias para a escolha dos candidatos, finalizando com a diplomação dos eleitos e suplentes. A lei impugnada, por ter sido publicada antes do início das convenções partidárias, não estaria assim a interferir no processo eleitoral. O voto-vista do ministro Moreira Alves na Ação Direta de Inconstitucionalidade 354 assentou:

O que é certo é que processo eleitoral é expressão que não abarca, por mais amplo que seja o sentido que se lhe dê todo o direito eleitoral, mas apenas o conjunto de atos que estão diretamente ligados às eleições. E, ainda aqui, a escassa doutrina existente sobre essa matéria diverge quanto à extensão desse conceito, pois (…) ao dissecar o objeto do direito eleitoral, reserva a expressão processo eleitoral para o “conjunto de atos, que compreende desde a organização e distribuição das mesas receptoras de votos, a realização e a apuração de eleições, até o reconhecimento e diplomação dos eleitos”, José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, 5ª edição, págs. 326 e seg., Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1989), aludindo ao procedimento eleitoral (que é a exteriorização do processo eleitoral), salienta que ele se desenvolve em três fases: 1ª.) apresentação das candidaturas; 2ª.) organização e realização do escrutínio/ 3ª.) contencioso eleitoral.


Os votos vencidos na Ação Direta de Inconstitucionalidade 354 passaram mais tarde a vencedores, formando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, para afirmar que a lei não casuística, respeitadora da isonomia da competição eleitoral, poderia ter eficácia imediata para as eleições do pleito.

Esse entendimento foi consolidado e manejado na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3345 e Ação Direta de Inconstitucionalidade 3365, julgadas em 2005, oportunidade em que o Supremo Tribunal reconheceu legítima parte de resolução do Tribunal Superior Eleitoral que estipulava o número de vereadores segundo população do município nos termos do precedente firmado pela Corte no julgamento do RE 197.917 (Caso Mira Estrela), que, dentre outros argumentos, fundamentou a decisão com base na teoria da transcendência dos motivos determinantes desta decisão, considerando que a resolução do Tribunal Superior Eleitoral somente explicitou a norma do artigo 29, IV, da Constituição, nos termos fixado pelo Supremo Tribunal Federal. Ali ficou assentado também que a parte impugnada da resolução não dispensava tratamento casuístico à matéria, que comprometesse a isonomia e igualdade de condições da disputa eleitoral[17].

O termo “processo eleitoral”, para fins de interpretação do artigo 16 da Constituição, segundo os precedentes do Supremo Tribunal Federal, apontavam ora o entendimento estrito de natureza formal para designar as normas procedimentais e o período temporal que se iniciava com as convenções partidárias e finalizava com a diplomação, ora importava em análise substancial e consequencialista da lei impugnada, que seria submetida a uma averiguação quanto à preservação da igualdade de participação dos partidos e candidatos, da manutenção do equilíbrio competitivo da disputa, não podendo ela apresentar propósito casuístico[18].

Entendimento esse utilizado à unanimidade[19] da Corte na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.741, relator ministro Ricardo Lewandowski, quando se questionou, em face do artigo 16 da Constituição, a eficácia da Lei 11.300/2006, a chamada “Minirreforma Eleitoral”, publicada em 11 de maio de 2006, pouco antes das convenções partidárias para as eleições gerais, dispondo sobre propaganda, financiamento e prestação de contas das campanhas eleitorais. A decisão sintetizada em ementa da seguinte forma:

Ementa: (…) I — Inocorrência de rompimento da igualdade de participação dos partidos políticos e dos respectivos candidatos no processo eleitoral. II — Legislação que não introduz deformação de modo a afetar a normalidade das eleições. III — Dispositivos que não constituem fator de perturbação do pleito. IV — Inexistência de alteração motivada por propósito casuístico. V — Inaplicabilidade do postulado da anterioridade da lei eleitoral. (…)

A partir desses precedentes, questionou-se no Tribunal Superior Eleitoral agora a eficácia imediata da Lei da Ficha Limpa. Respondendo à Consulta 112.026, de 2010, formulada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o Tribunal apreciou a questão sob prisma semelhante, para considerar o novo diploma eficaz já para as eleições de 2010, não tendo enxergado qualquer propósito casuístico no diploma. Pelo contrário, a Lei da Ficha Limpa surgia para sanar e deputar o processo eleitoral e para proteger a coletividade.

Cinco ministros do Supremo Tribunal, ao apreciar o recurso de Roriz e Barbalho, acompanharam o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral. Além disso, firmaram o entendimento de que não havia ofensa ao ato jurídico perfeito ou ao princípio da irretroatividade da lei, haja vista estarem preservados os efeitos da renúncia ao mandato, que levou cada qual a deixar o cargo, prejudicando os pedidos de abertura de processo ético-disciplinar protocolizados à época, e a natureza de regime jurídico do sistema de inelegibilidades.

Tratar-se-ia de condição a ser aferida ao tempo do pedido de registro de candidatura, cabendo a verificação da situação jurídica de elegibilidade do cidadão. Afirmara o ministro Dias Toffoli, que “(…) não há direito adquirido a regime jurídico de condições de elegibilidade, muito menos se pode falar em ato jurídico perfeito de renúncia, capaz de gerar direito ao registro de candidatura por efeito de pedido de renúncia.” (voto do ministro)

Entretanto, o ministro Dias Toffoli abriu a divergência para afirmar a necessidade de observar o artigo 16 da Constituição, assentando que as alterações verificadas no campo da disputa eleitoral afetavam a “quebra da previsibilidade das condições subjetivo-políticas dos candidatos” (artigo 16, Constituição Federal).

Já os ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso entendiam, assim como o ministro Dias Toffoli, o dever de observância da anualidade da lei eleitoral pelas mesmas ou semelhantes razões.

De modo geral, consideravam inconstitucional também a aplicação da Lei da Ficha Limpa a fatos passados, sobretudo pelo caráter sancionador da causa de inelegibilidade por renúncia ao mandato. Nesse caso, defendeu-se que haveria de distinguir as causas de inelegibilidade inatas (impedimento do cônjuge, e.g.) daquelas cominadas, como o caso da renúncia ao mandato. Aquelas não teriam conteúdo sancionador, razão pela qual se consideraria a situação jurídica do cidadão no momento do registro, enquanto as causas de inelegibilidades cominadas revestir-se-iam em castigo por cometimento de ato reprovável. Enquanto sanção, as novas causas de inelegibilidade só poderiam afetar candidatos que renunciassem ao mandato após a publicação da lei. O ministro Celso de Mello indicava acolher também a inconstitucionalidade da causa de inelegibilidade por renúncia ao mandato, para quem um ato lícito não haveria de ser condenável[20].

Vale dizer, em suma, que se tratava de preservar a segurança jurídica e as expectativas de direito até então não proibidas, além de inibir a retroatividade inconstitucional da lei. Portanto, para quatro ministros vencidos somente no critério de desempate ao julgar o recurso de Jader Barbalho[21], haveria de se observar o artigo 16 da Constituição (compondo o empate neste fundamento o ministro Dias Toffoli), a irretroatividade da lei sancionadora e, eventualmente, a falta de razoabilidade e proporcionalidade da causa de inelegibilidade[22]. Os ministros que desproviam os recursos acolheram a lei como normas salutares de aperfeiçoamento, cuja relevância para o processo político foi destacada.

A inelegibilidade por renúncia ao mandato e a anualidade da Lei Eleitoral

Três foram os principais pontos de divergência sobre a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa que se passa a analisar: (a) a incidência da anualidade da lei eleitoral do artigo 16 da Constituição; (b) a possibilidade de a Lei da Ficha Limpa atingir os atos de renúncia anteriores à sua publicação para imputar nova causa de inelegibilidade; e (c) a constitucionalidade do artigo 1º, I, “k”, trazido pela Lei Complementar 135/2010, ante o princípio da proporcionalidade e razoabilidade.

(a) Quanto à aplicabilidade do artigo 16 da Constituição, sustentou-se em favor da aplicabilidade imediata da lei a excepcionalidade do fenômeno da publicação da Lei Ficha Limpa, que chega ao mundo jurídico e político por meio de grande mobilização social de combate à corrupção, constituindo momento histórico singular que viria suprir a omissão legislativa de 17 anos da regulamentação do novo texto do artigo 14, parágrafo 9º, da Constituição, do mesma forma como foi considerada imediatamente eficaz pelo Tribunal Superior Eleitoral a Lei Complementar 64/1990. Haveria o Judiciário, em ambas as situação, que privilegiar a eficácia do critério da vida pregressa e do princípio da moralidade para o exercício ao mandato, normas de estatura Constitucional (artigo 14, parágrafo 9º). Ademais, a Lei da Ficha Limpa, pelo seu próprio conteúdo moralizador, não traria desigualdade à disputa eleitoral nem teria propósito casuístico, mas apuraria conhecidos vícios de legalidade, criminalidade e legitimidade da política partidária, aplicando aqui o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3741, que permitia relativizar o artigo 16 da Constituição apreciando-se a validade da lei quanto à preservação da isonomia do pleito e a vedação de propósito casuístico.


Outro argumento apresentado foi o significado estrito do termo processo eleitoral, que designava, por um lado, o período que se inicia com as convenções partidárias e termina com a diplomação dos eleitos. Por outro, o termo “processo eleitoral” seria o mesmo que procedimento eleitoral, a designar normas de natureza formal.

O problema decorrente do tratamento excepcional da Lei da Ficha Limpa para efeitos de relativização do artigo 16 da Constituição – tida como lei social e juridicamente necessária à concretização dos preceitos constitucionais – abre possibilidades de abuso dos discursos axiológicos comunitaristas, geralmente manipuláveis por maiorias contingentes de viés autoritário. Discursos hoje comuns na América Latina, com os influxos populistas e antidemocráticos, são os primeiros a valer-se da ideia do interesse público para suspender as liberdades individuais e alterar as regras que conformam o processo democrático — geralmente inflamando a vida pública mais de emoção do que de razão.

É exemplo a Venezuela de Hugo Chaves, autoproclamada legítima após perseguir opositores e restringir a liberdade de expressão, fechar grande emissora de televisão, alterar a estrutura do Poder Judiciário e viabilizar a reeleição ilimitada para a presidência do país. A fronteira entre o razoável e o imponderável não é nítida quando o que se discute é política.

Exemplos nacionais não faltam e são mencionados inclusive nos precedentes do Supremo Tribunal (Ação Direta de Inconstitucionalidade 354), referindo-se a legislações do regime autoritário precedente. Vide também, a título de exemplo de abuso dos discursos comunitaristas, o primeiro parágrafo do Ato Institucional 5/1968[23].

Em síntese, o excesso de republicanismo facilita a instrumentalização de seu próprio discurso, permitindo o desvio de finalidade que passa a infirmar, de forma cínica ou inconsciente, os seus próprios supostos de legitimidade.

Hoje se vive momento de plena normalidade democrática. Quanto ao amanhã, entretanto, não se pode ter certeza. A interpretação da Constituição, tanto mais em se tratando de matéria afeta ao exercício, controle e legitimidade do poder político, deve se sustentar e firmar-se sólida ante as circunstâncias de instabilidade autoritárias, reafirmando sempre a separação entre Direito e política, ao reforçar precisamente os procedimentos constitucionais eleitorais, conforme adverte Niklas Luhmann:

Do conceito de acoplamento estrutural, por fim, podemos também compreender que os conteúdos normativos dos textos constitucionais não podem ser arbitrariamente escolhidos. E não porque as normas procedimentais ocupem um espaço muito importante; com efeito, por meio da observação dos procedimentos o sistema político pode respeitar o sistema jurídico sem que com isso deva descuidar das exigências de tipo político. Por isso o postulado da democracia é traduzido em fatores mediante procedimentos. Essa constatação ensina ainda quão perigosas são essas normas que refletem exigências políticas de um modo excessivamente direto – por exemplo, as normas de natureza ideológica nos Estados socialistas ou a predominância dos interesses de segurança militar no direito constitucional (não escrito) de Israel. Aí precisamente reside a tentação representada por se buscar facilitar a influência e a adaptação mediante acoplamento estrutural: na escolha de normas constitucionais tais que permitam ao sistema jurídico reconhecer a legalidade em quase todas as formas do agir político e que, vice-versa, toda decisão acerca da constitucionalidade-inconstitucionalidade do sistema político indica como se deve descrever qualquer tipo de decisão de modo a se encaixar (estromettere) na jurisdição constitucional. Sobre esse pano-de-fundo, delineiam-se os direitos humanos como formas dotadas de complexidade suficiente para levarem uma vida jurídica própria; ou delineiam-se também regras procedimentais (eleitorais, por exemplo) que garantem o papel político dos interesses de um modo politicamente não direcionável, sem a obrigação política de legitimá-los como tais em uma hierarquia de valores pré-existentes.[24]

A posição do ministro Sepúlveda Pertence na Ação Direta de Inconstitucionalidade 354/90 enfatizava precisamente a importância dos procedimentais no contexto de Estado Democrático de Direito. Requeria o Partido dos Trabalhadores a suspensão da ineficácia da Lei 8.037, de 25 março de 1990 para as eleições de 1990, que modificava a forma de contagem dos votos. O ministro Sepúlveda Pertence fundamentava seu entendimento maximalista de processo eleitoral assentando que:

O pensamento político contemporâneo tende a emprestar um relevo crescente ao papel das normas processuais lato sensu no funcionamento e na própria definição de democracia, na medida em que nelas se traduza a expressão de Cândido Dinamarco, ‘a disciplina do exercício do poder estatal pelas formas do processo legalmente instituídas e mediante a participação do interessado ou interessados.’ O processo, por isso, erige-se num poderoso instrumento de legitimação das decisões públicas, independentemente do seu conteúdo concreto e dos detentores momentâneos do poder.

Tem esse significado, por exemplo, a ênfase dada por Norberto Bobbio à ‘defesa das regras do jogo’, frase de que, significativamente, se utiliza como subtítulo de sua preciosa coleção de ensaios sobre O Futuro da Democracia: democracia em torno da qual, explica, o único ponto de acordo possível, quando se fala de democracia, ‘entendida como contraposta a todas as formas e autocracia, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras, primárias ou fundamentais, que estabelecem quem está a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos’.

Na mesma linha, creio, é que se põe a cerrada teorização de Niklas Luhmann em torno da ‘Legitimação pelo Procedimento’ (ed. UnB, 1980).

Na democracia representativa, nenhum dos processos estatais é tão importante e tão relevante quanto o processo eleitoral, pela razão óbvia de que é ele a complexa disciplina normativa, nos Estados modernos, da dinâmica procedimental do exercício imediato da soberania popular, para a escolha de quem tomará, em nome do titular dessa soberania, as decisões políticas dela derivadas. Essa preocupação com a exigência da disciplina normativa das regras do jogo democrático é que, evidentemente está à base do artigo 16 da Constituição de 88, segundo o qual ‘ a lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor um ano após a sua promulgação’. É que o reclamo de normas gerais e abstratas sobre os processos estatais, particularmente o processo eleitoral, — abstração e generalidade a que bastariam a reserva de lei nessas matérias — perde, na verdade, o seu sentido, se a essa generalidade, se a essa abstração da lei, não se somar a exigência de sua anterioridade ao fenômeno que cuidam de regular: anterioridade que é essencial à aspiração de segurança e de isonomia que estão subjacentes à ideia qualificada de processo, como do devido processo legal. Não basta, assim que o jogo tenha regras, é preciso que essas regras sejam prévias à apresentação dos contendores e ao desenvolvimento da disputa e, portanto, imutáveis, até a sua decisão.

O processo eleitoral é um sistema: a influência recíproca de seus vários momentos é um dado essencial de caracterização do todo.

(…)

Minha tendência, assim é de emprestar ao conceito de processo eleitoral, para os fins do artigo 16, extensão tão ampla quanto seus termos comportam, de modo a abranger, radicalmente, desde o alistamento dos eleitores e a habilitação dos partidos à escolha dos candidatos, definindo assim todas as personagens do drama eleitoral, do registro dos candidatos á propaganda, da votação ao procedimento e aos critérios de apuração até o momento culminante da proclamação e da diplomação dos eleitos.

(…) sequer consigo alimentar dúvidas no que se refere à apuração do voto: ela está, para o processo eleitoral, mais ou menos como estaria uma regra de interpretação das sentenças, no processo judicial. Pouco me importa, se a previsível influência dessa mudança de regra de interpretação do voto que contém contradição entre o candidato indicado e a legenda assinalada, será grande ou pequena. Muito menos me importa saber se ela é boa ou má, e se se deve dar preferência à presumível vontade de um eleitorado rebelde aos partidos ou se, ao contrário, se deva dar preferência ao reforço da legenda partidária. Como já disse a outro propósito nesta Casa, parece-me que esses valores, conjunturais, e remediáveis, de tal ou qual decisão política concreta não superam jamais o valor do respeito e da estabilidade devidos à norma constitucional. E assegurá-los, pelo menos, é a nossa função primordial.


Estou mesmo, Senhor Presidente, em que, se se quer dar ao artigo 16 da Constituição a força de contenção da mania nacional do casuísmo, esta força não pode estar sujeita as sutilezas de distingui interpretação. A regra deve ter uma interpretação, se necessário, até menos inteligente, para evitar que ao casuísmo das legislações se siga, amanhã, o casuísmo ou a suspeita de casuísmo das aplicações ou não da lei casuística.

Trata-se de argumento forte na defesa de uma acepção ampla do termo processo eleitoral, a qual se mostra mais compatível com o constitucionalismo atual e com a ideia de democracia procedimental[25].

Por processo eleitoral, para fins do artigo 16 da Constituição, compreende-se a liberdade e a certeza assegurada a todos (partidos, candidatos, eleitores) de que o desenrolar dos fatos e os resultados das eleições não serão influenciados em nenhum aspecto a partir de um ano antes do dia do pleito, sejam as novas normas de feições procedimentais ou substanciais. Sua razão reside em dar segurança aos destinatários diretos e indiretos do pleito, permitindo-lhes o conhecimento, com um ano de antecedência, das regras que regerão a competição, e ao mesmo tempo a atuação racional do agir no presente a partir da colocação de suas ações em perspectiva.

Quando o Supremo Tribunal Federal permitiu modificar as regras de contagem dos votos na Ação Direta de Inconstitucionalidade 354, o ministro Marco Aurélio constatava que “se se inverteu a preferência, a definição das situações ambíguas, privilegiando-se o lançamento do nome ou número do candidato em detrimento da sigla do partido, introduziu-se uma modificação que (…) terá visível repercussão nos resultados do próximo pleito” (p. 12 do acórdão).

O artigo 16 da Constituição estaria a vedar, a nosso entender, o próprio Judiciário de aferir cada nova norma impugnada os critérios matérias de manutenção da igualdade na disputa e inexistência de casuísmo da lei para fins de aplicação do artigo 16. Mais segura e razoável é a interpretação “menos inteligente” do artigo 16.

Analisando agora resultado do entendimento vigente do Supremo Tribunal sob uma perspectiva consequencialista, a Constituição terminou por autorizar a modificação do regime de inelegibilidades meses antes da votação, abrindo espaço a pretensões de toda ordem, já para a próxima legislatura tentar modificar as regra. Até mesmo pretensões liberalizantes de causas de inelegibilidades de última hora ficam facilitadas, a permitir a candidatura de um ou outro inelegível. A cada nova alteração no período de um ano antes do pleito (e não só quanto às causas de inelegibilidades), restará ainda a necessidade de impugnar a novidade para, como que em consulta, permitir aos partidos e à cidadania ter certeza da eficácia da nova norma, uma vez que o Supremo Tribunal deverá necessariamente certificar a inexistência de casuísmo ou manipulação eleitoral da lei[26]. Tais conclusões, se corretas, reprovam o atual entendimento, e, como se verá abaixo, enfraquece também a própria legitimidade da jurisdição constitucional na tutela do devido processo político-eleitoral.

(b) e (c) Quanto à impugnação versando sobre os princípios da irretroatividade da lei e da proporcionalidade e razoabilidade da causa de inelegibilidade por renúncia ao mandato, não se vislumbrou incompatibilidade com a Constituição a forma com aplicada pelo Tribunal Superior Eleitoral e pelos ministros que mantinham a impugnação do registro de Roriz e Barbalho.

Há de se reconhecer que a causa de inelegibilidade por renúncia ao mandato aplicada aos casos de Joaquim Roriz e Jader Barbalho atinge fatos passados para impor consequência nova, até então inexistente no sistema jurídico. Tal é a razão de muitos enxergarem ofensa aos princípios da irretroatividade da lei e da segurança jurídica, sobretudo se observado o caráter de sanção da causa de inelegibilidade[27].

Não obstante, é a própria Constituição que determina à lei complementar que, ao estabelecer causas de inelegibilidade, observe a vida pregressa do candidato. À luz desse mandamento, as novas causas de inelegibilidade devem considerar o passado da vida pública do cidadão.

Supondo que a lei não pudesse tomar fatos anteriores à sua publicação, a vida pregressa resumir-se-ia, para efeitos de inelegibilidade, ao período posterior ao de sua publicação, ou seja, a partir de 07 de junho de 2010 em diante, como se o ocorrido antes, que constitui o histórico de vida do cidadão, fosse irrelevante para a Constituição. Tal entendimento compreenderia parte da vida pregressa do cidadão, e não a sua vida pregressa. Seria a “vida pregressa após a publicação da lei”, o que se mostra ao menos estranho.

O resultado dessa interpretação tornaria o dispositivo constitucional parcialmente inócuo, como que se o passado do cidadão fosse irrelevante para a teleologia do artigo 14, parágrafo 9º, e ante a interpretação sistemática de todos os preceitos ali contidos. É a Constituição que elege o tempo anterior como objeto da lei das inelegibilidades.

A seguir esse modesto raciocínio, deve-se considerar válida a atribuição de novos efeitos aos fatos passados, independentemente de se tratar de causa de inelegibilidade cominada ou inata, prescindindo da discussão sobre regime jurídico das inelegibilidades e da irretroatividade da lei. A se entender o contrário, mais coerente seria enfrentar a discussão quanto a uma hipotética arguição de inconstitucionalidade do critério da vida pregressa, trazida pela ECR 4/1994.

Abre-se, então, breve excurso sobre a constitucionalidade do critério da vida pregressa do candidato[28]. É sabido que o preceito constava na legislação do regime autoritário precedente. Questiona-se: seria seu percurso ali razão bastante para considerá-lo inconstitucional? A pecha de norma autoritária não revelaria sua incompatibilidade com o direito de voto e o direito fundamental de ser eleito? Em segundo lugar, não teria o eleitor a atribuição exclusiva de avaliar a vida pregressa do candidato? A possibilidade de intromissão legislativa não retiraria da cidadania espaços de liberdade próprios da autonomia pública?

A despeito de ter figurado em constituições autoritárias, o critério da vida pregressa não apresenta, só pela sua existência ali, incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito. A ser mais preciso, ela poderá ser concretizada em leis constitucionais ou inconstitucionais, a depender do conteúdo das novas regras. Trata-se de operação semelhante à da recepção de diplomas do regime anterior à luz da Constituição ou ainda a operação de violação de preceito fundamental de diploma legal pré-constitucional.

Certamente a ideia de vida pregressa pode servir a regimes autoritários sob o discurso do “ame-o ou deixe-o” das razões de Estado, assim como todo princípio ou regra podem ser objetos de fraude interpretativa[29].

A intenção de aperfeiçoar as práticas da política partidária, sancionando comportamentos contrários ao direito, deve mostrar-se adequada à preservação da autonomia pública e privada do cidadão.

As causas de inelegibilidades trazidas pela Lei da Ficha Limpa devem ser claras e objetivas[30], proporcionais e constitucionalmente adequadas a justificar a restrição de direito subjetivo do candidato de se candidatar, do direito dos partidos políticos de indicarem seus quadros e das opções de escolha do eleitor quanto à vida pregressa dos candidatos.

Devem ser tipificadas apenas condutas graves e de reprovabilidade contundente, sobretudo porque a escolha sábia do eleitor é quase sempre o resultado de uma complexa composição de fatores, valores e preferências pessoais. Não raro o cidadão é levado a escolher obrigatoriamente entre opções que não são ideais ou estritamente corretas sob seu ponto de vista. O eleitor é comumente levado a ter de optar pelo mal menor. Tarefa essa que não prescinde de uma séria de reflexões que só um juízo livre de ingerência ou interferências pontuais permite haver. Portanto, cada nova causa de inelegibilidade deve passar pelo crivo crítico de busca por virtudes libertárias e democráticas, observando um mínimo de certeza ou clareza dos tipos legais ou fatos que está a reprovar, fazendo-se justificar a restrição a direito individual, às opções dos eleitores e dos partidos políticos.


Deve ser medida adequada a assegurar a normalidade e a probidade na administração pública, bem como a legitimidade do processo eleitoral. Enfim, as causas de inelegibilidade devem afastar dos centros decisórios de poder aqueles que demonstraram distorcer de forma grave e antijurídica a legitimidade do processo de formação da vontade política.

A buscar alguma inteligência democrática e libertária no novo artigo 1º, I, “k” da Lei das Inelegibilidades, deve-se recuperar o histórico de uso instrumental da renúncia pelos congressistas e representantes parlamentares em todo o país.

Atendo-se ao período recente de redemocratização do país[31], e sem pretensão de esgotar as ocorrências do uso instrumentalizado da renúncia, o presidente Fernando Collor de Mello talvez tenha sido o primeiro a tentar valer-se dela para evitar a inabilitação para o exercício da função pública decorrente do impeachment. Sem sucesso, ele foi condenado pelo Senado em 1992[32].

No ano seguinte, foi revelado que deputados estariam recebendo dinheiro de particulares para agenciar emendas no orçamento federal e a liberação de recurso em órgãos públicos. A baixa estatura dos envolvidos deu nome ao episódio, identificado por “Escândalo dos Anões do Orçamento”. Vários deles renunciaram ao mandato pouco antes do julgamento ético-disciplinar a ser realizado pelo Plenário da Câmara Federal. Dessa forma conseguiram evitar, com o arquivamento do processo, a eventual cassação de seus mandatos e a inelegibilidade por três anos dele decorrente, conforme previa à época o artigo 1º, I, “b”, da Lei Complementar 64/1990.

Em abriu de 1994, a mesma legislatura que experimentou as renúncias de Fernando Collor e dos “Anões do Orçamento” reagiu contra essa prática promovendo reformas constitucionais e legais. Logo se alterou a Lei Complementar 64/1990, ampliando de três para oito anos o período de inelegibilidade decorrente da cassação por quebra de decoro parlamentar, do art. 1º, I, “b” [33].

Dois meses mais tarde, a ECR 6/1994 acrescentou o parágrafo 4º ao artigo 55 da Constituição[34], o qual suspendia os efeitos da renúncia do parlamentar que estivesse respondendo a processo capaz de levá-lo à cassação do mandato por quebra de decoro parlamentar. O dispositivo procurava impedir o uso instrumental da renúncia como ocorreu em 1993 na Câmara dos Deputados, assegurando às casas parlamentares o direito de punir os faltosos, preservar sua imagem e de seus membros, o decoro nos trabalhos, reportando-se com transparência à cidadania, além de efetivar os preceitos do artigo 14, parágrafo 9º, da Constituição e à causa de inelegibilidade (majorada para oito anos) de parlamentar cassado por quebra de decoro parlamentar (art. 1º, I, “b”, da Lei das Inelegibilidades).

Juntamente com a ECR 6/1994, foi promulgada e publicada a ECR 4/1994, que alterou o texto do artigo 14, parágrafo 9º, da Constituição, acrescentando os critérios da vida pregressa e da moralidade para o exercício do mandato a serem concretizados por alteração ou substituição da Lei das Inelegibilidades, conforme visto item acima.

Das seis emendas constitucionais promulgadas pelo Poder Constituinte de Revisão, duas tratavam do assunto corrupção e causa de inelegibilidade. Isso mostra como essa legislatura (1990-1994) ficou marcada pelos escândalos de corrupção na Presidência da República e na Câmara dos Deputados.

Em 1997 dois parlamentares eram suspeitos de receber dinheiro para votar a favor da “Emenda da Reeleição”. Como ficou demonstrado, a Câmara dos Deputados interpretou restritivamente o artigo 55, parágrafo 4º, da Constituição, de modo a compreender a suspensão dos efeitos da renúncia unicamente do parlamentar que tivesse contra si já instaurado o processo ético-disciplinar propriamente dito.

Contabilizando algumas renúncias apenas no âmbito do Senado da República, dos cinco membros que deixaram a Casa em razão de fatos ou indícios de quebra de decoro parlamentar, somente o senador Luiz Estevão foi processado e julgado pelos seus pares, em 2000. Os senadores Jader Barbalho (2001)[35], Antônio Carlos Magalhães (2001), José Roberto Arruda (2001)[36] e Joaquim Roriz (2007) renunciaram aos mandatos para evitar a instauração de processos disciplinares.

Algumas dessas renúncias guardam nexo de causalidade com investigações em curso no Distrito Federal, que levou à prisão temporária do então governador José Roberto Arruda, quando revelado o “Mensalão do DEM”. No episódio, o governador, o vice-governador e alguns deputados distritais renunciaram ao mandato para evitar os respectivos processos de impeachment ou ético-disciplinares, conforme o caso.

O “Mensalão” foi um das maiores denúncias de corrupção que já se teve notícia no país. E trata de casos replicados nas esferas estaduais e municipais, como verificado mais tarde no “Mensalão do DEM”, do Distrito Federal, e no município de Dourados-MS[37].

À luz desse contexto histórico é que se compreendem as virtudes ou razões fáticas capazes de justificar a causa de inelegibilidade por renúncia ao mandato agora estudado. A ideia de vida pregressa, no que toca a particular prática política de renunciar ao mandato para evitar a causa de inelegibilidade, apresenta-se como norma que reforça a efetividade dos dispositivos constitucionais e agrega força normativa à Constituição.

Trata-se de relacionar texto e contexto, mais do que Constituição e lei. É a causa de inelegibilidade destinada a eliminar a brecha aberta com a interpretação restritiva conferida ao artigo 55, parágrafo 4º, da Constituição. Com efeito, a norma tem o resultado prático de impedir que o parlamentar renuncie ao mandato após o protocolo de requerimento pedindo abertura de processo disciplinar. Ela procura evitar o uso instrumental da renúncia, assim como pretendia o artigo 55, parágrafo 4º, da Constituição, quando de sua promulgação em 1994.

Ao impedir o uso instrumental da renúncia, reafirma-se a contrariedade ao direito dessas atos, expressamente reprovados na Constituição pelo menos desde 1994, quando acrescentado o dispositivo do artigo 55, parágrafo 4º, suspendendo os efeitos da renúncia utilizada para evitar a sanção inelegibilidade.

Além disso, é a punição do congressista direito da Casa a que pertence, traduzindo-se em oportunidade de zelar por sua imagem e credibilidade, assim como de seus pares. Afinal, decoro não significa somente dignidade moral, nobreza, acatamento ou decência, mas respeito de si mesmo e dos outros[38].

A causa de inelegibilidade por renúncia ao mandato reprova, vedando, a simulação, a impunidade e a perpetuação de práticas políticas antirrepublicanas que subvertem a finalidade constitucional do mandato. Isso ocorre justamente porque ela faz valer a efetividade das normas sancionadoras que disciplinam e reprovam, por meio da coação e da coerção, a quebra do decoro parlamentar. Trata-se de norma antifraude, que se justifica ante o histórico de abusos, de falta de qualidade dos partidos e dos candidatos, ante a necessidade constitucional de assegurar a legitimidade não só das eleições, mas, sobretudo, da representação política e das leis.

Convém então aprofundar a compreensão normativa do mandato representativo, cuja lição de J.J. Gomes Canotilho mostra-se pertinente:

O princípio da representação [formal], como componente do princípio democrático, assenta nos seguintes postulados: (1) exercício jurídico, constitucionalmente autorizado, de ‘funções de domínio’, feito em nome do povo, por órgãos de soberania do Estado; (2) derivação directa ou indirecta da legitimação do domínio do princípio da soberania popular; (3) exercício do poder com vista a prosseguir os fins ou interesses do povo. Nisto se resumia a tradicional ideia de Lincoln: ‘governo do povo, pelo povo e para o povo’ (…) A representação democrática, constitucionalmente conformada, não se reduz, porém, a uma simples ‘delegação da vontade do povo’. A força (legitimidade e legitimação) do órgão representativo assenta também no conteúdo dos seus actos, pois só quando os cidadãos (povo), para além de suas diferenças e concepções políticas, se podem reencontrar nos actos dos representantes em virtude do conteúdo justo destes actos, é possível afirmar a existência e a realização de uma representação democrática material. Existe, pois, na representação democrática, um momento referencial substantivo, um momento normativo que, de forma tendencial, se pode reconduzir às três ideias seguintes: (1) representação como actuação (cuidado) no interesse de outros e, concretamente, dos cidadãos portugueses; (2) representação como disposição para responder (responsiveness, na terminologia norte-americana), ou seja, sensibilização e capacidade de percepção dos representantes para decidir em congruência com os desejos e necessidades dos representados, afectados e vinculados pelos actos dos representantes; (3) representação como processo dialéctico entre representantes e representados no sentido de uma realização actualizante dos momentos ou interesses universalizáveis do povo existentes no povo (não em puras ideias de dever ser ou em valores apriorísticos)[39].


(destaques do original)

O princípio da representação política reforça os fundamentos de validade da causa de inelegibilidade do artigo 1º, I, “k” trazido pela Lei das Inelegibilidades, na medida em que reforça o caráter prescritivo e funcional do mandato representativo. Vale dizer, noutras palavras, que dar efetividade às sanções da Lei das Inelegibilidades equivale a agregar força normativa ao princípio democrático, uma vez que a representação política legítima é ideia central do Estado democrático.

Por isso o uso da renúncia ao mandato como subterfúgio ao processo de reabilitação social da credibilidade do parlamento após o conhecimento de fatos ou indícios de comprometimento do decoro parlamentar é uma vez mais contrária ao direito.

Ao complementar a interpretação restritiva do artigo 55, parágrafo 4º, da Constituição, prevendo período igual de inelegibilidade ao do artigo 1º, I, “b”, da Lei das Inelegibilidades, a nova causa de inelegibilidade por renúncia ao mandato reafirma o princípio da representação política, efetivando as sanções de reprovação dos atos que contrariam e negam o preceito de que “a força (legitimidade e legitimação) do órgão representativo assenta também no conteúdo dos seus actos, pois só quando os cidadãos (…) se podem reencontrar nos actos dos representantes em virtude do conteúdo justo destes actos, é possível afirmar a existência e a realização de uma representação democrática material.”

É o caráter coativo (preventivo) e coercitivo (repressivo) das sanções de inelegibilidade, que, aliadas à efetividade das normas criminais, civis e administrativas, impõem certo grau de responsabilidade (responsiveness) e responsabilização no exercício do mandato. É a efetividade dessas normas que contribuem para o resgate da capacidade do Congresso Nacional, das assembleias legislativas, da Câmara Legislativa do Distrital Federal e das câmaras de vereadores em todo o país, assim como dos executivos em todas as esferas da federação, de responder aos anseios dos representados, contribuindo para a concretização da representação política como processo dialético entre representantes e representados.

Ao processo dialético de atualização da representação política democrática é possível agregar a observação do sociólogo Jürgen Habermas quanto ao caráter intersubjetivo dos direitos políticos, que, somando ao caráter subjetivo negativo dos direitos fundamentais políticos, em face do Estado, instituem, positivamente, um processo político de comunicação e discussão que visa alimentar o fluxo de informações e argumentos que orientam as decisões públicas. Decisões afetas ao interesse de todos os membros da sociedade política:

Encontrar os direitos humanos e os direitos de cidadania na ideia de dignidade humana, como os juristas usualmente fazem hoje, não é errado, mas é insuficiente. Esse conceito refere-se polemicamente à ‘honra’ social particularisticamente determinada de ser membro de um Estado. O que foi originalmente definido como a inviolabilidade de status resultante da pertinência a um determinado Estado foi generalizado em uma “dignidade universal” que todo homem possuiria. No processo dessa universalização, no entanto, o aspecto intersubjetivo se perdeu. Enquanto o conceito de autonomia do cidadão une o sentido de autodeterminação individual com o de autolegislação política, a dignidade humana, por sua vez, é vista como intrínseca ao indivíduo singular, pensada como se fosse uma propriedade da pessoa abstrata anterior a qualquer socialização. […] Para além disso, o vocabulário moderno da liberdade expressa melhor o fato de que as Constituições devem ser construídas como ordens legítimas da vida em comum do que o ‘vazio discurso’ ontológico sobre a dignidade humana.”[40]

As funções dos direitos fundamentais políticos não se resumem, assim, ao seu caráter negativo, de assegurar o exercício dos direitos de cidadania do indivíduo e o direito de participação no processo eleitoral contra a intervenção injustificada do Estado, mas implica em alguma medida na exigência de instituir um processo legítimo de formação da opinião e da vontade parlamentar, no qual os representantes políticos mostram-se sensíveis e em face do qual devem atuar de forma transparente.

Os direitos políticos, teleologicamente concebidos para assegurar as liberdades públicas e privadas, em última instância, está a garantir aos cidadãos instrumentos de participação e controle sobre o próprio processo de formação da vontade no Congresso Nacional. Nesse sentido, o cargo público eletivo impõe ao escolhido o dever de atuar com transparência[41]. O julgamento político da quebra de decoro parlamentar reporta-se, em última instância, a esse processo político público de comunicação e formação da opinião pública.

A despeito do ato de renúncia ser exercício de um direito potestativo, um ato lícito, prima facie, o artigo 1º, I, “k”, da Lei das Inelegibilidades reprova a forma e o desvio de finalidade do uso da renúncia que é aferido pelas condições apresentadas na lei e pelo contexto. É o que o artigo 55, parágrafo 4º, da Constituição c/c o artigo 1º, I, “b”, da Lei das Inelegibilidades também condena. Ou seja, considera-se ato contrário ao direito a renúncia estratégica do parlamentar que se nega a explicar os fatos a ele imputados, procurando evitar o dano maior além da perda do cargo, que é a inelegibilidade, sanção mais rapidamente sentida pelo parlamentar depois da perda do cargo, que, tido como certo, era antecipado para evitar-se a cassação. É pela rapidez e rigor a sanção mais efetiva para depurar a imagem da política partidária e fortalecer o regime democrático.

Portanto, os direitos políticos são direitos fundamentais subjetivos, e, enquanto tal, sua função clássica tem caráter negativo de proteção individual, impondo ao Estado a abstenção de restrição injustificada desses direitos. É ele que protege o cidadão e assegura sua permanência como membro da sociedade política. Só na titularidade desses direitos inerentes ao status de membro é possível afirmar seu pertencimento à sociedade política. E é em razão de uma sociedade que reconhece seus membros como sujeitos livres e iguais que se pode afirmar o caráter intersubjetivo dos direitos políticos, cuja finalidade instaura um procedimento aberto que permite aos seus membros atuar na preservação de suas liberdades e da igualdade entre todos. São essas duas características (subjetividade e intersubjetividade), à luz de suas funções (proteção contra o Estado e institucionalização de um processo político legítimo), que precisam ser equacionadas ao apreciar as causas de inelegibilidade.

Devido processo Político-Eleitoral

Auxilia-nos na compreensão do devido processo político o histórico princípio do due process of law[42]. Traduzido como devido processo legal no contexto do positivismo jurídico, quando o Direito nos países do civil law identificava-se mais com a lei do que com uma Constituição principiológica e aberta. Hoje, a expressão mais fidedigna seria devido processo do Direito ou devido processo jurídico ou ainda devido processo constitucional.

O devido processo legal transcendeu a seara do processo judicial para conformar os procedimentos administrativos e determinados situações privadas, com o acolhimento da teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais[43].

Para além de assegurar direitos fundamentais, há a ideia de processo constitucional impõe, por exemplo, a observância pelas casas legislativas do devido processo legislativo constitucional.

Nessa toada, não é demais se referir ao artigo 16 da Constituição como um dos traços específicos do devido processo eleitoral, juntamente com as normas que regulam o processo político como um todo, de modo a traduzir-se em procedimento adequado e razoável à finalidade das eleições[44].


Vale dizer que o devido processo constitucional eleitoral implica, assim como o devido processo legal e o devido processo legislativo, em um conjunto de normas formais e materiais que podem ser objeto de controle de constitucionalidade tanto no que diz respeito a seus aspectos formais (e.g., a eficácia da lei em face da data de publicação ou ainda vício do processo legislativo), quanto nos aspectos materiais (causas de inelegibilidades proporcionais e razoáveis, leis eleitorais não casuísticas e respeitadores da isonomia da disputa).

A eleição, enquanto visar também a legitimidade da representação política democrática, não prescinde de normas substantivas e procedimentais razoáveis e adequadas a essa finalidade, enquanto exigência e aplicação dos próprios princípios da igualdade e liberdade, como defende Humberto Ávila[45], e, ainda, enquanto necessidade imposta pelo princípio hermenêutico da unidade da constituição[46].

Portanto, o devido processo eleitoral precisa e deve dispor de procedimentos adequados e resultados proporcionais e razoáveis, capazes de proteger a normalidade, a legitimidade e a probidade no exercício do mandato. E a jurisdição constitucional do devido processo eleitoral deve tutelar, portanto, esse processo no seu aspecto material e formal.

No caso do direito eleitoral, para além do que tradicionalmente se desenvolveu em cada ramo jurídico em termos de teoria, há de tornar imutáveis as normas eleitorais durante o ano que precede o dia da votação e segue, para além do de um ano cronológico, até a diplomação dos eleitos e suplentes.

A regulamentação das eleições repercute nos direitos políticos dos partidos, dos candidatos e dos eleitores e nos resultado do escrutínio, levando à insegurança jurídica e à surpresa após o início de atos que conturbam o processo de organização partidária, como a filiação do candidato um ano antes do pleito.

Entende-se que o artigo 16 da Constituição assegura a imutabilidade do Direito Eleitoral quanto às normas de caráter formal e material, assim como o princípio do respeito às regras do jogo assegura aos indivíduos que as leis e a Constituição só serão alteradas nos termos da Constituição. A anualidade da lei eleitoral é norma específica deste princípio. Há um paralelismo entre ambos os dispositivos, vez que prezam pela segurança jurídica. O artigo 16 proíbe, assim, qualquer alteração das leis eleitorais nesse período, assim como respeitar as regras do jogo pressupõe a observância desse dispositivo constitucional. No regime do devido processo eleitoral existe o plus da anualidade da lei em seu conceito maximalista, assim como no Direito Tributário podemos constatar normas de semelhante teor e finalidade.

A Constituição veda ao Judiciário a possibilidade de apreciação da validade da nova lei eleitoral para fins de relativização de sua eficácia (artigo 16, Constituição Federal) no ano que precede as eleições, como o Supremo Tribunal Federal faz. O controle material que afeta a dimensão de validade da lei eleitoral não está ligada à teleologia da anualidade da lei eleitoral, que estabelece condição de eficácia da norma para as eleições que ocorrerem no período inferior a um ano da data da sua publicação.

Noutras palavras, o mérito da impugnação judicial em face do artigo 16 da Constituição cinge-se à constatação do lapso matemático-temporal de um ano contado retrospectivamente do dia da votação do primeiro turno das eleições para efeitos de constatar a eficácia da lei ou sua aptidão para produzir efeitos imediatamente.

Já a apreciação material da lei recai sobre a dimensão de validade da norma, face a critérios constitucionais formais e materiais, quando então se pode, inclusive, apreciá-lo para evitar propósitos casuísticos e comprometedores da isonomia e igualdade de condições do pleito, ainda que a norma tenha observado a anualidade do artigo 16 da Constituição. Não é porque se publica um ano antes a lei eleitoral que a norma deixará automaticamente de ser casuística ou compatível com o princípio da isonomia, assim como também não é em razão da isonomia e correção da lei que se pode relativizar sua condição constitucional de eficácia.

A apreciação da condição de eficácia da lei eleitoral não se comunica com o controle material de constitucionalidade do devido processo eleitoral, mas tão-somente um controle constitucional formal temporal quanto à eficácia da norma.

O devido processo político-eleitoral

A observância do devido processo político eleitoral requer difícil interpretação sistemática e principiológica da Constituição. A ideia normativa de legitimidade e normalidade das eleições, que remonta à legitimidade do próprio regime democrático, traz em si uma complexidade respeitável, a começar pelas diversas compreensões normativas do processo político, no mais das vezes cingidas à discussão entre o liberalismo político e o comunitarismo[47].

Há de se observar inicialmente que o Estado constitucional democrático impõe preceitos republicanos ao processo político-eleitoral, por meio de normas caracterizadoras do processo democrático, o que desaconselha análises normativas radicais de que as eleições regulariam basicamente a competição entre sujeitos privados que concorrem entre si para lograr posições de poder mais vantajosas a serem utilizadas no contexto social de disputa, onde os indivíduos são alçados ao nascer.

A participação nos procedimentos afetos à coisa pública representa um ideal de vida em si, segundo a tradição política republicana. Não é o enriquecimento ou a posição social privilegiada obtida pelo indivíduo que orientam a ação na seara da regulação da vida em sociedade. A possibilidade de participação permite que o cidadão se veja como partícipe de um processo de entendimento que alimenta um sistema de solidariedade entre os membros de determinada sociedade, visando implementar uma estilo de vida comum.

Compartilha-se, entretanto, da mesma advertência que Habermas dirige à tradição republicana, anotando que o republicanismo peca pelo:

fato de ele ser bastante idealista e tornar o processo democrático dependente das virtudes de cidadãos voltados ao bem comum. Pois a política não se constitui apenas — e nem sequer em primeira linha — de questões relativas ao acordo mútuo de caráter ético. O erro consiste em uma condução estritamente ética dos discursos políticos.[48]

A Constituição e a Teoria do Direito trazem concepções do liberalismo político e do republicanismo. Por um lado, ao tempo em que se exige e limita os poderes do Estado estabelecendo direitos fundamentais de liberdades negativas que asseguram a autonomia privada, o direito às diferenças religiosas e culturais, o livre mercado, a Constituição mostra a face do liberalismo político. Por outro, quando a Constituição institui os direitos fundamentais sociais, impõe a todos o dever de contribuir com a educação, estabelece o interesse público como objetivo do Estado e os direitos políticos, nesse contexto, só podem constituir o processo público de comunicação que resultará em entendimentos, acordos e negociações sobre as questões públicas, bem como sobre o tipo de vida concreta a ser implementada. A dimensão republicana da Constituição aparece aqui no tratamento igual e isonômico dispensado aos cidadãos, que podem participar ou não desse processo.

Os direitos políticos sintetizam os lados da mesma moeda, ao mostrarem-se direitos liberais à representação política de um segmento social organizado e direitos republicanos de ter uma representação política voltada à consecução legítima do interesse público, ainda que esta ideia seja em si indeterminada e problemática.


Há de se observar assim o caráter intersubjetivo dos direitos políticos que molda as condições para o exercício da cidadania segundo a teoria procedimental da democracia, a qual aposta nas estruturas de comunicação para entremear os discursos morais, éticos e os acordos e negociações de interesses, assim como a racionalidade instrumental de programas e políticas públicas, que são submetidos ao crivo da opinião pública, a qual tem, por sua vez, apenas a força dos argumentos para coagir e influenciar a formação da vontade no âmbito do Congresso Nacional[49].

A racionalidade e a legitimidade das leis eleitorais e das causas de inelegibilidade devem observar o exercício regular dos direitos fundamentais, por um lado, inclusive a previsibilidade das leis, e dos preceitos concretizadores da representação democrática material (Canotilho). O processo eleitoral deve ser capaz de assegurar os direitos de participação do cidadão-membro da sociedade política, sob a condição de que ele não apresente um histórico de vida que permita inferir tratar-se de indivíduo incompatível com as exigências constitucionais de normalidade e legitimidade do processo eleitoral, assegurando-se assim um processo político probo e moralmente capaz de reafirmar a crença da cidadania na Constituição Federal de 1988[50].

Conclusão

A causa de inelegibilidade por renúncia ao mandato do artigo 1º, I, “K”, da Lei das Inelegibilidades é assim compatível e adequada à Constituição e à Teoria da Constituição atuais, na medida em que veda ato de renúncia instrumental, contrário ao direito, conforme consignado implicitamente pela ECR 4/1994, que alterou o artigo 14, parágrafo 9º, da Constituição, e de forma explícita pela ECR 6/1994, que acrescentou o parágrafo 4º ao artigo 55 da Constituição, que deveria suspender os efeitos da renúncia em todos os casos similares de fraude. Ambos os dispositivos constitucionais são respostas à renúncia ao mandato dos deputados federais envolvidos no “Escândalo dos Anões do Orçamento”, assim como a causa de inelegibilidade por renúncia ao mandato complementa o artigo 55, parágrafo 4º, e é reação à interpretação restritiva dada pela Câmara dos Deputados em 1997, que continuou permitindo o uso estratégico do direito de renúncia, desde que realizada antes da abertura do processo disciplinar. Nesse sentido, o dispositivo impede o uso da renúncia como subterfúgio à norma sancionadora, as quais agregam efetividade à Constituição e à representação política democrática.

Uma interpretação sistemática permite afirmar que, independentemente de haver petição requerendo abertura de processo ou procedimento, o que o novo dispositivo do artigo 1º, I, “k”, da Lei das Inelegibilidades veda é a saída estratégica, a uso instrumentalizado do direito[51]. Assim, mais relevante do que haver petição protocolada para abertura de processo, como assinala o novo dispositivo, há de se verificar a existência de fato recente e comprometedor contra o candidato que, com o ato de renúncia, reste circunstancialmente aferido ato de fraude às normas sancionadoras. Basta, noutras palavras, que se verifique um caso de renúncia instrumental ou estratégica, conforme inúmeros exemplos históricos apresentados acima – e que desde 1990 poderiam ter sido considerados atos ineficazes para efeitos de investigação e punição política, permitindo assim que as casas parlamentares continuem a investigar os fatos e efetiva as sanções, seja nos procedimentos de quebra de decoro parlamentar, seja para efeito de processamento e julgamento de impeachment dos chefes dos poderes executivos.

Atendo-se aos casos estudados, o parlamentar que antes da Lei da Ficha Limpa sairia intocado de qualquer consequência jurídica com a renúncia ao mandato após a revelação de fato comprometedor, agora está compelido a esclarecê-los.

É tratar com o mesmo peso o parlamentar cassado por quebra de decoro parlamentar (art. 1º, I, “b”, da Lei das Inelegibilidades) e aquele que renuncia ao mandato para evitar o processo ético-disciplinar e a inelegibilidade (artigo 1º, I, “k”, da mesma lei), uma vez que opção por preservar a obscuridade de sua atuação parlamentar, ainda que tenha jurado observar a Constituição e as leis do país ao tomar posse, é em si ato que demonstra culpa. É reprovar os resultados de sua renúncia, que termina manchando a imagem de seus pares e da casa a que pertence, assim como o processo democrático e a crença da cidadania na própria Constituição.

O Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal relativizaram de forma inadequada o princípio da anualidade da lei. Os ministros vencidos na Ação Direta de Inconstitucionalidade 354, em 1990, ressaltaram a teleologia da norma, que era impedir o casuísmo legislativo e assegurar a isonomia na disputa eleitoral, procedendo a uma análise substantiva e consequencialista do diploma impugnado, concluindo que a legislação alterava o resultado das eleições, ofendendo, portanto, a finalidade da norma.

Como visto, a jurisprudência foi se incrementando, restando pacificado o entendimento de que o diploma que não fere a isonomia da competição, não alterando de forma tendenciosa o resultado das eleições, teria aplicação imediata, conforme ficou assentado em 2005 na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3345 e, sobretudo, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3741, em 06 de setembro de 2006.

À Ação Direta de Inconstitucionalidade 354 seguiram-se decisões que permitiram desaguar, nos julgamentos da Lei da Ficha Limpa, o entendimento que proporcionou o impasse do Supremo Tribunal Federal em 2010, com um ministro a menos. Seria a lei casuística ou não, sancionadora ou não, retroagiriam constitucionalmente seus efeitos ou não?

Tal é a razão pela qual se conclui tranquilamente que a participação do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral passou a ser indispensável em toda eleição que se verificar alteração da legislação eleitoral no período de um ano antes do pleito, uma vez que a eficácia está condicionada à análise material e consequencialista do Judiciário. E isso dependerá, no mais das vezes, o que é ainda mais grave, do entendimento de um único juiz, conforme se constata agora com as divergências sobre a Lei Complementar 135/2010. Dispensável discorrer mais sobre a insegurança jurídica decorrente desse entendimento.

À incerteza da eficácia das normas eleitorais somam-se as divergências dos juízes então geridas sempre no calor das eleições, colocando naturalmente à prova não só a imparcialidade desses seres humanos. Por mais naturais e legítimos que sejam as divergências e os esforços de fundamentação dos julgadores, suas posições se entremeiam à disputa política de forma inevitável, com forte potencial de afetar a credibilidade do Poder que mais depende de sua força argumentativa. Ocorre uma partidarização ou politização involuntária e inevitável por parte da própria sociedade dos discursos de fundamentação da Corte. Essa “partidarização de fora” dos discursos jurídicos contamina as posições de juízes e tribunais independentemente da força argumentativa de seus discursos jurídicos. O Judiciário se expõe assim em demasia à tendência “colonizadora” do sistema político. Na vala comum são colocados os argumentos jurídicos e político-partidários, entremeando as fronteiras dos dois sistemas. Tais são as razões de se atribuir também à teleologia do artigo 16 da Constituição, mais previdente do que imaginado até agora, a proteção da credibilidade do Poder Judiciário e a preservação do sistema do Direito em face do sistema político, mais precisamente do processo eleitoral[52].

O presente estudo, ante os casos estudados de relativização do artigo 16 da Constituição, sugere um pouco mais de parcimônia à jurisprudência, um pouco menos de arrojo em temas delicados, sem jamais insinuar, entretanto, o regresso à ingenuidade do legalismo jurídico brasileiro, cinicamente irreflexivo, cúmplice da falsidade e da mentira dos discursos autoritários, para os quais prestou muitos serviços.


Tal é a razão do resgate do conceito maximalista do ministro Sepúlveda Pertence, firmado na própria Ação Direta de Inconstitucionalidade 354, em 1990, para quem qualquer tipo de consideração, no sentido de vislumbrar efeitos benevolentes ou não do diploma impugnado para efeitos da anualidade da lei eleitoral, estaria vedado ao Judiciário. Para ele, toda e qualquer norma de direito eleitoral, de natureza procedimental ou substancial, deve ter os efeitos diferidos para depois das eleições. Indicava que às legislações casuísticas poderiam suceder as interpretações casuísticas.

É a própria Ação Direta de Inconstitucionalidade 354 um exemplo do que afirmara[53]. Dela se colhem inúmeros argumentos e ponderações que levam a conclusões opostas ou a uma mesma conclusão a partir de motivos diferentes. O artigo 16 da Constituição e o diploma impugnado são interpretados de perspectivas tão distintas, que não se pode achar um fundamento sequer que seja claro suficiente para extrair um motivo determinante que levou à formação da maioria.

Em síntese, o princípio da anualidade da lei eleitoral (artigo 16, Constituição Federal) termina por ser lapso maior do que um ano. Observando o texto da lei e considerando a necessidade de filiação do parlamentar um ano antes do dia de votação, fato que assinala ato relevante para a configuração das eleições, termina também tornando imutável para além do dia de votação qualquer alteração até a diplomação dos eleitos, não podendo influenciar a posse dos eleitos, em regra. Vale dizer que a proteção é ampla, e abarca assim o ano que precede o dia da votação, passando pelas convenções partidárias, pela propaganda eleitoral, pelo dia e apuração dos votos, a declaração dos resultados e a diplomação, terminando com a posse dos eleitos. Nesse período, não há lei que possa produzir efeitos seja de ordem procedimental ou substancial. Trata-se, pois, de norma estrutural do devido processo constitucional eleitoral.

O respeito às regras do jogo, instrumento de limitação dos poderes do Estado e das maiorias contingentes, adequadamente interpretado à luz de uma teoria material da representação e da democracia, implica no reconhecimento de que normas procedimentais e materiais são igualmente importantes para o processo democrático, como que constitutivas da compreensão de Estado de Direito Democrático. Seriam os dois lados da mesma moeda, indicando a necessidade de equacionar as proteções dos direitos políticos individuais e o caráter procedimental requerido pela necessária intersubjetividade da formação legítima da opinião pública e da vontade institucional do parlamento, atinente à ideia de processo político e de representação política material.

Se por um lado o artigo 16 da Constituição impõe o conhecimento prévio de todas as normas um ano antes do dia da votação, rememorando o princípio do constitucionalismo clássico, é essa mesma ideia, compreendida contemporaneamente, que impõe a efetividade das normas constitucionais materiais, com a observância do princípio da representação política democrática, traduzido em uma representação política sintonizada e sensível à opinião pública, transparente, comprometida e responsável, capaz de trabalhar, em meio às divergências ideológicas inerentes às sociedades plurais, com honestidade e respeito ao cidadão e aos seus pares. Essa é a maior virtude do artigo 1º, I, “k”, da Lei das Inelegibilidades, acrescentado pela Lei da Ficha Limpa à Lei das Inelegibilidades.

Nesse sentido, lançou-se mão do princípio do devido processo constitucional, a orientar a compreensão do processo eleitoral, caracterizando-o não só pela ideia de respeito às normas procedimentais, mas igualmente pelo conteúdo material do princípio da representação política democrática decorrente do necessário processo de comunicação dos membros da sociedade política. O devido processo político depende da legitimidade das representações na formação da vontade no Congresso Nacional, na Câmara Legislativa do Distrito Federal, nas assembleias legislativas e nas milhares de câmaras de vereadores país afora, bem como na representação dos executivos nas três esferas da federação, que não raramente subordinam ou são reféns das casas legislativas de todo o país, como constatado em inúmeros exemplos mencionados de compra de voto.

Convém deixar advertido que as jurisdições constitucional e eleitoral – como toda jurisdição livre e democrática – precisam estar atentas aos absurdos, aos casos teratológicos[54]. As leis que compõem o sistema eleitoral, paulatinamente criadas ou modificadas – assim também como as leis em geral – são frutos de contextos históricos e políticos diversos[55].

O Judiciário não deve produzir ou sustentar situações concretas escatológicas ou desproporcionais ao aplicar a Lei da Ficha Limpa, assim como fatos menores devem ser deixados à consideração do cidadão[56]. Para bem escolher, o eleitor deve gozar de ampla liberdade na ponderação das opções, dos fatos, dos motivos e dos fundamentos que circundam o pleito. É direito do indivíduo-cidadão, e imposição de legitimidade do processo democrático (artigo 14, parágrafo 9º, Constituição Federal), assegurar-lhe as condições ou situações adequadas para a consideração de todos os fatores que compõem o contexto histórico que lhe é dado a seu tempo. A contrariar a sistematicidade, a lógica ou a razão, inevitável será o desgaste da própria legislação e do papel do Judiciário na tutela da legitimidade e da normalidade das eleições[57].


* Advogado, mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP (comentários: [email protected], assunto “Ficha Limpa”).

[2] O ex-ministro do STJ, Luiz Fux, tomou posse em 03 de março de 2011, ocupando a “11ª cadeira” do Supremo Tribunal Federal.

[3] Sobre os critérios de verdade, correção e veracidade, conferir o trabalho didático de GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença. Belo Horizonte, Mandamentos, 2002, p. 117 e seg.

[4] “Um paradigma jurídico não consegue explicar o modo como os princípios do direito e os direitos fundamentais preenchem contextualmente as funções que lhes são atribuídas normativamente, a não ser que lance mão de um modelo de sociedade contemporâneo. Um ‘modelo social do direito’ (Wiecker) contém implicitamente uma teoria social do sistema jurídico; portanto, uma imagem que esse sistema constrói acerca de seu ambiente social. A partir daí, o paradigma do direito esclarece o modo como os direitos fundamentais e os princípios do estado de direito devem ser entendidos e realizados no quadro de tal modelo.” (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia. Vol. I. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997, p. 241-242.

[5] A ECR 4/1994 veio acompanhada de outras alterações constitucionais e legais. Foi majorada a causa de inelegibilidade por cassação ao mandato por quebra de decoro parlamentar, bem como foi incluído o parágrafo 4º ao artigo 55 da Constituição, determinando que a renúncia ao mandato tivesse seus efeitos suspensos caso houvesse processo disciplinar que pudesse levar o parlamentar à cassação do mandato.

[6] “Art. 1º São inelegíveis: I – para qualquer cargo: b) os membros do Congresso Nacional, das assembléias Legislativas, da Câmara Legislativa e das Câmaras Municipais que hajam perdido os respectivos mandatos por infringência do disposto no art. 55, I e II, da Constituição Federal, dos dispositivos equivalentes sobre perda de mandato das Constituições Estaduais e Leis Orgânicas dos Municípios e do Distrito Federal, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos 3 (três) anos subseqüentes ao término da legislatura;”. Em 1994 o período de inelegibilidade foi aumentado de três para oito anos, sempre contado do término da legislatura para a qual fora eleito o congressista cassado.


[7] “§ 4º – A renúncia de parlamentar submetido a processo que vise ou possa levar à perda do mandato, nos termos deste artigo, terá seus efeitos suspensos até as deliberações finais de que tratam os §§ 2º e 3º. (Incluído pela Emenda Constitucional de Revisão nº 6, de 1994)

[8] Cf. Questão de Ordem 10.322/1997, da Câmara dos Deputados.

[9] Em sentido semelhante o ministro Gilmar Mendes: “Não tenho dúvidas de que a consideração de fatos da vida pregressa do candidato, como o indiciamento, a denúncia ou a acusação penal, para a configuração de causas de inelegibilidade, sem expressa previsão legislativa para tanto, viola a garantia fundamental da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da Constituição).

[10] Assentou o ministro Celso de Mello: “Nem se diga que a garantia fundamental de presunção da inocência teria pertinência e aplicabilidade unicamente restritas ao campo do direito penal e processual penal. Torna-se importante assinalar, neste ponto, Senhor Presidente, que a presunção de inocência, embora historicamente vinculada ao processo penal, também irradia os seus efeitos, sempre em favor das pessoas, contra o abuso do poder e da prepotência do Estado, projetando-os para esferas processuais não-criminais, em ordem a impedir, dentre outras graves conseqüências no plano jurídico – ressalvada a excepcionalidade de hipóteses previstas na própria Constituição -, que se formulem, precipitadamente, contra qualquer cidadão, juízos morais fundados em situações juridicamente ainda não definidas (e, por isso mesmo, essencialmente instáveis) ou, então, que se imponham, ao réu, restrições a seu direitos, não obstante inexistente condenação judicial transitada em julgado. (…) Penso ser importante, pois, dar-se conseqüência efetiva ao postulado constitucional da presunção da inocência, que representa uma prerrogativa de caráter bifronte, cujos destinatários são, de um lado, o Poder Público, que sofre limitações no desempenho das suas atividades institucionais, e, de outro, o próprio cidadão, que encontra, nesse princípio, o fundamento de uma garantia essencial que lhe é reconhecida pela Constituição da República e que se mostra inteiramente oponível ao poder do Estado, neutralizando-lhe, por isso mesmo, qualquer iniciativa que objetive impor, ao cidadão, restrições à sua esfera jurídica, sem que exista, para tanto, qualquer título judicial definitivo. (p. 104).”

[11] Art. 3 e seg. da Lei das Inelegibilidades.

[12] Não é incorreto pressupor que os eleitores estão desinformados sobre os candidatos e que não há transparência no processo político. Cf. MONTEIRO, Jorge Vianna. Como funciona o governo? Escolhas públicas na democracia representativa. Rio de janeiro, Editora FGV, 2007, p. 43-58; ALVES, André Azevedo e MOREIRA, José Manuel. O que é a escolha pública: para uma análise econômica da política. Principia Editora. 2004; GICO Jr., Ivo T. Metodologia e Epistemologia da Análise Econômica do Direito, Economic Analysis of Law Review, Vol. 1, No 1 (2010), disponível em http://portalrevistas.ucb.br/index.php/EALR/article/view/1460.

[13] Muitas vozes atribuem o fato à eventual impopularidade de impugnar a lei e os prejuízos que isso causaria em ano eleitoral. Outra razão para explicar inexistência de qualquer impugnação em controle objetivo é a de que uma vez julgada, as discussões poderiam ser encerradas peremptoriamente, seja a favor da tese impugnada ou não, o que, sob a perspectiva instrumental, tornava-se muito arriscada para os interessados. Afinal, muitas vozes jurídicas da capital previam um julgamento apertado.

[14] “Art. 1º São inelegíveis: I – para qualquer cargo: b) os membros do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas, da Câmara Legislativa e das Câmaras Municipais, que hajam perdido os respectivos mandatos por infringência do disposto nos incisos I e II [cassação por quebra decoro parlamentar] do art. 55 da Constituição Federal, dos dispositivos equivalentes sobre perda de mandato das Constituições Estaduais e Leis Orgânicas dos Municípios e do Distrito Federal, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos oito anos subseqüentes ao término da legislatura; (Redação dada pela LCP 81, de 13/04/94)”.

[15] Jader é acusado de mentir ao Senado sobre o suposto envolvimento dele em desvios de verbas do Banpará (Banco do Estado do Pará) e impedir a tramitação de um requerimento solicitado o envio de relatórios elaborados pelo Banco Central sobre o assunto.” (Folha Online, 04/10/2001: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u25412.shtml).

[16] Os acórdãos ainda não foram publicados, razões pelas quais não se pode precisar as posições dos ministros de forma categórica, o que, aliás, é desaconselhável, tendo em vista a complexidade da matéria e o breve espaço deste estudo. Trata-se de um arrazoado para levantamento dos discursos e argumentos visando permitir, em seguida, uma analise pessoal do tema.

[17] Registra a ementa da ADI 3345: “A Resolução TSE nº. 21.702/2004, que meramente explicitou interpretação constitucional anteriormente dada pelo Supremo Tribunal Federal, não ofendeu a cláusula constitucional da anterioridade eleitoral, seja porque não rompeu a essencial igualdade de participação, no processo eleitoral [com início nas convenções], das agremiações partidárias e respectivos candidatos, seja porque não transgrediu a igual competitividade que deve prevalecer entre esses protagonistas da disputa eleitoral, seja porque não produziu qualquer deformação descaracterizadora da normalidade das eleições municipais, seja porque não introduziu qualquer fator de perturbação nesse pleito eleitoral, seja, ainda, porque não foi editada nem motivada por qualquer propósito casuístico ou discriminatório.”

[18] Cf. no mesmo sentido CAVALCANTE JÚNIOR, Ophir e COELHO, Marcus Vinicius Furtado. Ficha Limpa: a vitória da sociedade. Comentários à Lei Complementar 135/2010. Brasília, OAB, Conselho Federal, 2010, p. 27-32.

[19] Estavam ausentes justificadamente os ministros Gilmar Mendes e Cezar Peluso.

[20] A teoria da conglobação de Eugenio Raúl Zaffaroni, ou tipicidade conglobante, pode ser resumido no seguinte enunciado: “o que está permitido ou fomentado ou determinado por uma norma não pode estar proibido por outra” (GOMES, Luiz Flávio. Tipicidade material e a tipicidade conglobante de Zaffaroni. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1048, 15 maio 2006. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/8450>. Acesso em: 15 mar. 2011.).

[21] Vale relembrar que houve empate no mérito. No RE 631.102 (recurso de Jader Barbalho), único com proclamação do mérito, os ministros Celso de Mello e Cezar Peluso votaram, quanto ao critério de desempate, pela manutenção do recurso impugnado que indeferia o registro.

[22] Ressalte-se que os acórdão dos recursos ainda não foram publicados, e que parece não haver consenso entre os ministros vencidos em todos os fundamentos apresentados, assim como os argumentos jurídicos não foram aqui esgotados.


[23] “CONSIDERANDO que a Revolução Brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando, deste modo, "os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direito e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa pátria" (Preâmbulo do Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964);”

[24] Tradução para fins acadêmicos realizada a partir do original (“Verfassung als evolutionäre Errungenschaft”. In: Rechthistorisches Journal. Vol. IX, 1990, pp. 176 a 220), cotejada com a tradução italiana de F. Fiore (“La costituzione come acquisizione evolutiva”. In: ZAGREBELSKY, Gustavo. PORTINARO, Pier Paolo. LUTHER, Jörg. Il Futuro della Costituzione. Torino: Einaudi, 1996), por Menelick de Carvalho Netto, Giancarlo Corsi e Raffaele De Giorgi. Notas de rodapé traduzidas da versão em italiano por Paulo Sávio Peixoto Maia.

[25] O ministro Sepúlveda Pertence defendia o que denominou de conceito maximalista do “processo eleitoral”, quando, em 2006, ao apreciar a ADI 3741, acompanhou a maioria e votou pela eficácia imediata da “Minirreforma Eleitoral”.

[26] A Lei da Ficha Limpa, a despeito dessas considerações, não sugere casuísmo, porque fruto de mobilização de amplos segmentos da sociedade.

[27] O Direito Administrativo Sancionador tem se inspirado em princípios do direito penal a fim de trazer maior garantia contra abusos em atos que envolvam sanções. Foi aventado na ADPF 144 que o princípio da presunção de inocência ou da não-culpabilidade (art. 5º, XXXVI, CF) seria insuperável, produzindo efeitos também na seara dos direitos fundamentais políticos e civis (ministro Celso de Mello)

[28] Nesse caso, confronta-se a interpretação adequada com os direitos fundamentais políticos de ser eleito e de voto, especialmente.

[29] Francesco Ferrara, professor Italiano (Pisa), em obra de 1921 já advertia: “Com efeito, o mecanismo da fraude consiste na observância formal do ditame da lei, e na violação substancial do seu espírito: tanturn sententiallz offendit et verba resevvat. O fraudante, pela combinação de meios indirectos, procura atingir o mesmo resultado ou pelo menos um resultado equivalente ao proibido; todavia, como a lei deve entender-se não segundo o seu teor literal, mas no seu conteúdo espiritual, porque a disposição quer realizar um fim e não a forma em que ele pode manifestar-se, já se vê que, racionalmente interpretada, a proibição deve negar eficácia também àqueles outros meios que em outra forma tendem a conseguir aquele efeito.” (Interpretação e aplicação das leis. Traduzido por Manuel A. D. de Andrade. Coimbra, Editora Armênio, Amado, Editor Sucessor, 1963, p. 151. – Obra constituída pelos capítulos III, IV e V do Tratatto de Diritto Civile Italiano, Vol. I, 1921, Roma-, de Francesco Ferrara).

[30] Trata-se mesmo de inspiração oriunda do princípio da taxatividade da norma penal incriminadora. Princípio que, entretanto, não deve ser aplicado aqui irrefletidamente com o mesmo rigor para o qual foi concebido por estarmos a tratar de sanções de natureza política e não de privação de liberdade do indivíduo. As sanções de natureza política implicam no reconhecimento do caráter subjetivo e intersubjetivo desses direitos, como se verá abaixo.

[31] Vale lembrar que a corrupção endêmica é algo que remonta ao Brasil Colônia, permeia o Império e adentra a República Velha na forma do coronelismo de Victor Nunes Leal. Com longas interrupções institucionais da vida republicana em ambiente de liberdade, José Murilo de Carvalho inicia de forma sugestiva a obra Cidadania no Brasil: “O esforço de reconstrução, melhor dito, de construção da democracia no Brasil ganhou ímpeto após o fim da ditadura militar, em 1985.” (Rio de janeiro, Civilização Brasileira, 2006, p. 7)

[32] Retirado do cargo, Fernando Collor restou inabilitado para o exercício de qualquer função pública por oito anos, com fundamento no artigo 52, parágrafo único, da Constituição. A inabilitação é mais ampla do que a inelegibilidade. Esta consiste apenas na impossibilidade de se candidatar a cargo eletivo. Aquela implica também em impedimento para o exercício de qualquer função pública.

[33] Art. 1º, I, “b” previa, nos termos da redação original, apenas três anos de inelegibilidade. A Lei da Ficha Limpa não o modificou, preservando assim a seguinte redação: “b) os membros do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas, da Câmara Legislativa e das Câmaras Municipais, que hajam perdido os respectivos mandatos por infringência do disposto nos incisos I e II do art. 55 da Constituição Federal, dos dispositivos equivalentes sobre perda de mandato das Constituições Estaduais e Leis Orgânicas dos Municípios e do Distrito Federal, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos oito anos subseqüentes ao término da legislatura; (Redação dada pela LCP 81, de 13/04/94)”.

[34] “§4º – A renúncia de parlamentar submetido a processo que vise ou possa levar à perda do mandato, nos termos deste artigo, terá seus efeitos suspensos até as deliberações finais de que tratam os §§ 2º e 3º. (Incluído pela Emenda Constitucional de Revisão nº 6, de 1994)”.

[35] “Jader é acusado de mentir ao Senado sobre o suposto envolvimento dele em desvios de verbas do Banpará (Banco do Estado do Pará) e impedir a tramitação de um requerimento solicitado o envio de relatórios elaborados pelo Banco Central sobre o assunto.” (Folha Online, 04/10/2001: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u25412.shtml).

[36] Antônio Carlos Magalhães e José Roberto Arruda renunciaram aos mandatos de senador após notícia de que teriam violado o sigilo do painel do Senado em ocasião da sessão de votação de cassação do mandato do senador Luiz Estevão, em 2001.

[37] “A Polícia Federal prendeu nesta quarta-feira [01.09.2010], em Dourados (MS), 28 pessoas suspeitas de práticas de fraude à licitação, corrupção ativa e formação de quadrilha, entre elas o prefeito da cidade, nove vereadores e cinco secretários municipais. As assessorias de imprensa da prefeitura e da Câmara informaram que irão divulgar uma nota após tomarem conhecimento dos motivos das prisões. A assessoria da Câmara dos Vereadores afirmou que irá aguardar os rumos da investigação para tomar as providências cabíveis. Dos 12 vereadores da cidade, nove estão entre os presos. Além disso, outros dois foram convocados para prestar depoimento da PF” (http://g1.globo.com/politica/noticia/2010/09/nove-dos-12-vereadores-de-dourados-ms-foram-presos-na-operacao-da-pf.html). “As acusações de fraudes apontam que houve direcionamento de licitações por meio de corrupção de servidores públicos e agentes políticos. Os acordos fechados com as empresas escolhidas ilicitamente rendiam 10% do valor do contrato. Os valores arrecadados serviam para o pagamento de diversos vereadores de Dourados (da situação e da oposição), para caixa de campanha e compra de bens pessoais do prefeito. As investigações começaram em maio de 2010, e, além do prefeito, apontaram a participação de secretários municipais, empreiteiros, prestadores de serviços, vereadores e servidores públicos.” (http://noticias.uol.com.br/politica/2010/09/03/justica-determina-a-prisao-preventiva-do-prefeito-de-dourados-ms.jhtm)


[38] Cf. o verbete decoro no dicionário: “2. Respeito de si mesmo e dos outros” (http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=decoro).

[39] Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra, Almedina, 4ª Edição, p. 290-292.

[40] Remarks on Erhard Denninger’s Triad of Diversity, Security, and Solidarity. Constellations Volume 7, nº. 4, 2000. Blackwell Publishers, p. 523. Tradução para fins acadêmicas de Menelick de Carvalho Netto.

[41] Conferir Norberto Bobbio (O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo, Paz e Terra, 2000, p. 61-61): “o que caracteriza uma democracia representativa é, com respeito ao ‘quem’, que o representante seja um fiduciário e não um delegado; e é, com respeito ao ‘que coisa’, que o fiduciário represente os interesses gerais e não os interesses particulares. (…) a) na medida em que goza da confiança do corpo eleitoral, uma vez eleito não é mais responsável perante os próprios eleitores e seu mandato, portanto, não é revogável; b) não é responsável diretamente perante os seus eleitores exatamente porque convocado a tutelar os interesses gerais da sociedade civil e não os interesses particulares desta ou daquela categoria.”. No mesmo sentido, José Afonso da Silva caracteriza o mandato representativo como geral, livre e irrevogável (Curso de direito constitucional positivo. São Paulo, Malheiros, 2007, p. 139). Ele é geral porque juridicamente não representa apenas parcela do eleitorado, mas todos os nacionais. É livre porque o representante não se encontra submetido nem aos interesses nem aos desígnios de seu eleitorado, valendo-se de sua consciência e juízo do que considera ser o melhor para o país. E, finalmente, o mandato representativo é irrevogável exatamente para assegurar uma atuação livre e geral, que permite atuar em prol do interesse público, independentemente dos interesses de seus distrito e de seus eleitores.

[42] Como informa Fredie Didier Jr. “A primeira previsão do princípio ocorreu com a Magna Carta de João Sem Terra, de 1215. Termo consagrado foi utilizado em lei inglesa de 1254.” (Curso de Direito Processual Civil, V. I. Salvador, Editora Juspodium, 2008, p. 30). A Declaração de Delaware, de 02/09/1976 registrou a expressão inglesa the law of the land, segundo Didier Jr. Em pesquisa virtual, achou-se o seguinte texto atribuído à declaração de Delaware: “SECT. 12. That every freeman for every injury done him in his goods, lands or person, by any other person, ought to have remedy by the course of the law of the land, and ought to have justice and right for the injury done to him freely without sale, fully without any denial, and speedily without delay, according to the law of the land.

[43] Sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e a aplicação do devido processo legal no âmbito do Direito Civil, conferir o célebre RE 201.819/RJ, rel. para o acórdão, ministro Gilmar Mendes: EMENTA – SOCIEDADE CIIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO [DA UBC] DESPROVIDO.

[44] Desaconselhando a classificação do devido processo legal em procedimental e substancial, conferir as objeções de Humberto Ávila em O que é devido processo legal? (DIDIER, Fredie Org. Leituras complementares de processo civil. Salvador, JusPodium, 2011, p.407-416).

[45] O que é devido processo legal?. Leituras complementares… p. 407-412.

[46] Ensina o prof. Inocêncio Mártires Coelho que “as normas constitucionais devem ser vistas não como normas isoladas, mas como preceitos integrados num sistema unitário de regras e princípios, que é instituído na e pela própria Constituição (…) do que resulta, por outro lado, que em nenhuma hipótese devemos separar uma norma do conjunto em que ela se integra, até porque – relembre-se o círculo hermenêutico – o sentido da parte e o sentido do todo são interdependentes.” (BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar. Curso de direito constitucional. São Paulo, Saraiva-IDP, 2009, p. 135-136.

[47] “O liberalismo e o republicanismo discutem, entre si, para saber qual das seguintes liberdades deve ter prioridade: a ‘liberdade dos modernos’ ou a ‘liberdade dos antigos’? O que deve vir antes: os direitos subjetivos de liberdade dos cidadãos da sociedade econômica moderna ou os direitos de participação política dos cidadãos democráticos?” (Habermas, Jürgen. Era das transições. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2003, p.154). “Segundo a acepção liberal, a política é essencialmente uma luta por posições de que permitam dispor do poder administrativo. O processo de formação da vontade e da opinião política (…) é determinado pela concorrência entre agentes coletivos agindo estrategicamente pela manutenção e conquista de posições de poder. (…) Segundo a acepção republicana, a formação de opinião e vontade política em meio à opinião pública e no parlamento não obedece às estruturas de processos de mercado, mas às renitentes estruturas de uma comunicação pública orientada ao entendimento mútuo. (…) Também os partidos que lutam pelo acesso às posições de poder no Estado têm de se adequar ao estilo e à renitência dos discursos políticos” (Habermas. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo, Loyola, 2007, p. 283).

[48] Habermas, Jürgen. A inclusão do outro. São Paulo, Loyola, 2007, p. 284.

[49] Habermas. A inclusão do outro, p. 285 e seg.

[50] “A noção de patriotismo constitucional assenta a adesão autônoma aos fundamentos de um regime constitucional-democrático não em substratos culturais pré-políticos de uma pretensa comunidade étnico-nacional, como em uma visão nacionalista ou excessivamente comunitarista, mas sim nas condições jurídico-constitucionais de um processo deliberativo democrático capaz de estreitar a coesão entre os diversos grupos culturais e de consolidar uma cultura política de tolerância entre eles. Isso somente é possível em razão da diferenciação que se deve reconhecer entre dois níveis de integração social, o da integração ético-cultural e o da integração político-constitucional, em que a construção de uma cultura política pluralista, por meio da práxis e do exercício dos direitos políticos de cidadania, deve ser reflexivamente levada adiante (…) Há, portanto, que se defender a Constituição como centro de mobilização ou de integração política de uma sociedade democrática, no sentido do desenvolvimento de um patriotismo constitucional.” (CATTONI, Marcelo. Poder constituinte e patriotismo constitucional. Belo Horizonte, Mandamento, 2006, p. 70)

[51] Essa a conclusão que pode ser generalizada também a partir da Ação Penal 396, rel. ministra Cármen Lúcia, quando o Supremo Tribunal negou eficácia à renuncia do deputado Natan Donadon às vésperas do seu julgamento. Decidiu-se, em face da fraude, pela manutenção da competência da Corte, levando-o à condenação por mais de 13 anos de reclusão. Foi a primeira vez que o entendimento da fraude conquista a maioria dos juízes do STF para aplicá-la à renúncia ao mandato. Cf. Ação Penal 333-2/PB, rel. ministro Joaquim Barbosa.

[52] E são nessas regiões fronteiriças cinzentas que comumente desembarcam os discursos abusivos das forças políticas autoritárias.

[53] O uso do termo casuísmo aqui não autoriza qualquer conotação pejorativa a indicar má-fé ou parcialidade de qualquer daqueles julgadores, mas a dificuldade de vislumbrar coerência ou motivo determinante que levara à formação do entendimento da maioria.

[54] “O problema da racionalidade da jurisprudência consiste, pois, em saber como a aplicação de um direito contingente pode ser feita internamente e fundamentada racionalmente no plano externo, a fim de garantir simultaneamente a segurança jurídica e a correção.” Destaques do próprio Habermas em Direito e democracia, p. 247.

[55] Exemplo de anacronismo é o voto obrigatório, previsto na Constituição, e que se entende deveria ser revisto. O voto que contribui para um do processo político a legitimidade e sábio é o do eleitor consciente que procura um mínimo de informação para fazer sua escolha. A simples imposição ao cidadão de comparecer na sua seção eleitoral (art. 14, §1º, I, CF) não tem o condão de conscientizá-lo. Pelo contrário, a obrigatoriedade leva a pessoa desinformada ou despreocupada com as eleições, seja pelas mais variadas, imagináveis e legítimas razões, a influenciar o escrutínio sem consciência do seu voto, que não raro contribuirá com resultados para ela indiferentes ou contrários ao que ela pretendia fosse realizado.

[56] Caso assaz difícil que salta à mente é o de João Capiberibe e de Janete Capiberibe, que tiveram os mandatos cassados pelo TSE em 2005 por compra de dois votos durante as eleições de 2002, no valor de R$ 26,00. Os fatos que já se mostravam insignificantes para fundamentar as condenações à época tornam-se agora ainda mais incompreensíveis pelo eleitor, quando os eleitos são tidos por inelegíveis pela Lei da Ficha Limpa.

[57] Sandra O`Connor, juíza da Suprema Corte dos EUA entre 1981 e 2006, advertia em 1999: “Nós não possuímos forças armadas para dar cumprimento a nossas decisões, nós dependemos da confiança do público na correção das nossas decisões. Por essa razão, devemos estar atentos à opinião e à atitude públicas em relação ao nosso sistema de justiça, e é por isso que precisamos tentar manter e construir esta confiança.”. (Tradução livre de Public trust as a dimension of equal justice: some suggestions to increase public trust. The Supreme Court Review 36:10, 1999, p. 13).

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