Processo Tributário

Ementa pode dizer algo sobre o precedente?

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22 de setembro de 2024, 8h00

Em recente iniciativa, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) [1], por meio de seu presidente, ministro Luís Roberto Barroso, decidiu criar um modelo padrão de ementa de acórdãos a ser seguido pelos tribunais do país, com uma estrutura objetiva para facilitar a identificação, de maneira clara, dos principais pontos e fundamentos do caso julgado [2].

A medida não está relacionada especificamente aos julgados que têm o condão de formar precedentes, mas também os inclui na padronização e acende um alerta, especialmente no tocante às decisões proferidas pela sistemática de recursos repetitivos pelo Superior Tribunal de Justiça ou com repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal [3].

Na estrutura eleita pelo CNJ, os seguintes elementos deverão estar presentes nas ementas de todo e qualquer acórdão: (1) um cabeçalho enxuto; (2) a descrição resumida do caso examinado; (3) a identificação concisa das questões em discussão; (4) a solução proposta; e (5) o dispositivo ou tese, contendo a conclusão do julgamento e o enunciado que sintetiza o decidido.

De acordo com a informação publicada pelo CNJ, há recomendação, também, para que ao final da ementa seja relacionada a legislação e a jurisprudência relevantes.

Essa proposta vem a contento, mas parece-nos ser uma solução para casos cuja matéria envolvida não seja complexa. Por outro lado, num caso afetado para julgamento pela sistemática repetitiva ou com repercussão geral, essa tarefa pode não ser de fácil construção.

Peculiaridade dos julgamentos

Nossas ponderações, embora relacionadas ao modelo padrão de ementa, não se projetam para a ementa em si, mas a respeito da construção do acórdão que é base de sustentação para a formação desse “resumo”.

Isso porque não podemos perder de vista que, embora a ementa, consoante a moldura proposta pelo CNJ, possa se tornar mais completa, ela não deixa de ser um resumo do julgado e não necessariamente permitirá a compreensão de todo o conteúdo do acórdão, que permanece sendo de leitura obrigatória para quem quer efetivamente compreender a decisão.

Num sistema de precedentes, como o que temos implementado, é imperioso que o acórdão dos Tribunais Superiores que forme uma decisão vinculante tenha a questão em julgamento bem delimitada, fundamentação ampla de forma a permitir que todos os pontos relevantes acerca da questão sejam analisados e debatidos, bem como efetivo debate entre os julgadores.

Afinal, os julgamentos de temas repetitivos pelo STJ e pela sistemática de repercussão geral pelo STF, da forma como implementados no nosso sistema, têm uma peculiaridade: a partir de um caso concreto, decide-se uma questão de forma geral, produzindo-se, por consequência, duas normas distintas – uma geral e abstrata a ser observada nos casos presentes e futuros, e outra individual e concreta que define o resultado do caso posto no recurso julgado sob o rito dos precedentes vinculantes.

Há que se ter em mente o seguinte: por se tratar de recurso, o julgamento parte de um caso concreto e aos seus limites deve se ater. Daí por que a escolha do caso a ser julgado para formação de decisão vinculante é crucial para a tese a ser formada.

Não por outra razão que o CPC/2015 determina que os recursos eleitos tenham abrangente argumentação e discussão a respeito da questão a ser decidida [4]. Somente a partir disso é que os Tribunais Superiores terão condições de promover um debate amplo e completo sobre o assunto.

A problemática sob a ótica tributária

O passo seguinte à escolha do caso a ser julgado pensamos ser o mais importante de todos na formação de decisão vinculante: a definição da pergunta a ser respondida pelo tribunal e que balizará todo o debate em torno da questão a ser julgada.

A pergunta está intimamente ligada com o problema posto em discussão e representa a efetiva controvérsia que precisa ser solucionada pela corte.

Uma pergunta fora de contexto pode levar a um debate que extrapola os limites da discussão, produzindo uma manifestação extra petita, ou mesmo que esteja desconectado com o que se pôs a julgar, portanto, ultra petita. Relembre-se: muito embora a resposta se projete para além do processo (efeito transubjetivo da decisão), o acesso à questão é gestado num processo individualizado.

Em matéria tributária, essa problemática fica ainda mais intensificada, pois a inadequada formulação da pergunta a ser respondida pode implicar tributação não definida na regra-matriz de incidência tributária ou fora do âmbito de competência do ente tributante, extensão de imunidade até então sequer discutida, inauguração de novas discussões sobre temas relacionados (as famosas teses filhotes) etc.

Tome-se como exemplo o Tema de Repercussão Geral 796, objeto do Recurso Extraordinário 796.376, que tratou da imunidade do ITBI na integralização de capital social, prevista no artigo artigo 156, § 2º da Constituição:

  1. o recurso selecionado para julgamento não teve apresentação de contrarrazões ao recurso extraordinário, o que prejudica o requisito da ampla discussão, pois parte-se apenas dos argumentos lançados por uma das partes envolvidas no processo – o vencido;
  2. o caso concreto era de empresa que não atuava no setor imobiliário, porém o voto vencedor faz referência a hipóteses de empresas atuantes neste ramo, cujo tratamento é distinto, conforme o dispositivo constitucional posto em discussão [5];
  3. a “pergunta” formulada não fez a distinção entre o ramo de atividade da parte envolvida, que no caso específico era relevante, levando a um julgamento que abrangeu questão não colocada em discussão;
  4. houve apenas dois votos — o do relator e o voto vencedor —, sem qualquer debate entre os demais ministros, que apenas aderiram a um ou outro posicionamento.

São casos como este que deixam evidenciado que, antes de nos preocuparmos com a ementa, sua estrutura e seus pontos fundamentais, merecia atenção a formação conteudística do próprio precedente (e não seu resumo), embora reconheçamos a importância desse passo dado pelo CNJ.

A busca por uma melhor formação dos acórdãos, pela manutenção da coerência nos julgamentos [6], deve ser a preocupação máxima das Cortes Superiores, a quem cabe a última palavra sobre a legalidade e constitucionalidade das leis de nosso país.

O futuro que se avizinha, em razão da reforma tributária sobre o consumo — que não se duvide — implicará um contencioso tributário exacerbado, bem como alterações significativas em termos de processo tributário, demandando ainda mais atenção aos precedentes.

Por isso, insistimos: o foco de atenção das Cortes Superiores deve estar, acima de tudo, na melhor formação do acórdão vinculante e na coerência dos posicionamentos adotados, pois só assim conseguiremos dar efetividade ao sistema de precedentes que a codificação processual de 2015 pretende concretizar.

A ementa estruturada da forma como determinado pelo CNJ apenas atingirá o seu objetivo de levar clareza, objetividade e facilidade de entendimento quanto ao que foi julgado nas decisões vinculantes se o acórdão que lhe der base tiver sido bem formado.

 


[1] Ato Normativo 0004748-65.2024.2.00.0000

[2] https://www.cnj.jus.br/cnj-lanca-modelo-padrao-para-ementas-a-ser-usado-em-decisoes-judiciais/

[3] Embora ao STF também caiba julgamento de tema repetitivo, a repetitividade tem sido o fundamento para o julgamento em repercussão geral, o que faz com que a Corte não tenha, ao menos que tenhamos conhecimento, decisão proferida sob o fundamento da sistemática repetitiva.

[4] Art. 1.036. Sempre que houver multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento em idêntica questão de direito, haverá afetação para julgamento de acordo com as disposições desta Subseção, observado o disposto no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e no do Superior Tribunal de Justiça.

§6º Somente podem ser selecionados recursos admissíveis que contenham abrangente argumentação e discussão a respeito da questão a ser decidida.

[5] Art. 156, § 2º, CF/1988

[6] Onde há o mesmo fundamento deve haver a mesma solução.

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