Processo Tributário

Tutela provisória em ação declaratória negativa e a decadência do direito de lançar

Autores

  • Anna Flávia Loureiro Cavalcanti Batista

    é advogada especialista em Direito Tributário pelo Ibet e em Processo Tributário pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e mestranda em Direito Tributário pelo Ibet.

  • Rodrigo Octavio Franco Morgero

    é advogado especialista e mestrando em Direito Tributário pelo Ibet.

  • Camila Campos Vergueiro

    é advogada doutoranda pela Unimar mestre em Direito Tributário pela PUC-SP professora do Curso de Especialização do Ibet do programa de pós-graduação lato sensu da Fundação Getúlio Vargas (FGV Law) e do Complexo Educacional Damásio de Jesus professora e coordenadora do curso de extensão Processo Tributário Analítico do Ibet e coordenadora do grupo de estudos de Processo tributário analítico do Ibet.

12 de fevereiro de 2023, 8h00

As medidas judiciais preventivas destinam-se a evitar que atos tributários que estão na iminência de acontecer materializem-se. Tomam como pressuposto, destarte, "a incerteza jurídica […] ante a concreta possibilidade de desencadeamento da atividade fiscal potencial para dar ensejo à constituição ilegítima de determinado crédito tributário" e, tendo em vista o que se objetiva pragmaticamente ao se utilizar essas ações, quando acolhido o pedido, isto é, declarada inexistente a relação jurídica tributária, bloqueia-se o direito potestativo do Fisco constituir o crédito pelo lançamento [1].

Seria correto afirmar, então, que a sentença de procedência gera, por via oblíqua, um efeito proibitivo, por meio de técnica jurisdicional voltada à solução da incerteza sobre a incidência de determinado tributo, associada a princípios limitadores do poder de tributar, denominada, por Paulo Cesar Conrado, de "eficácia proibitiva ex nunc das tutelas declaratórias negativas tributárias" [2]. Dessa forma, "muito embora não constituam norma jurídica em sentido estrito, os enunciados veiculados nas partes dispositiva da sentença […] possuem a capacidade de produzir 'efeitos normativos secundários' obstativos do direito da Fazenda Pública de constituir o crédito tributário" [3].

Ante a necessidade de garantir segurança jurídica, as tutelas jurisdicionais de mérito, isto é, que analisam objetivamente a questão tributária de fundo, estão aptas a formar coisa julgada, à luz do artigo 502 do CPC/2015, portanto, a produzir efeitos que se prolongam no tempo.

Contudo, ante a iminência da aplicação da legislação tributária e o adverso fator temporal da marcha do processo, a segurança jurídica é assegurada por outra modalidade de decisão judicial denominada normativamente de "tutela provisória" (artigo 294 e seguintes do CPC/2015), cuja ausência de vocação à perenidade é, de acordo com Dalla Pria [4], sua principal característica. Distinguem-se, ainda, das tutelas definitivas por seus fundamentos de concessão, o da urgência ou da evidência (ou da não urgência) [5].

Esse tipo decisório no processo tributário, por expressa disposição do código tributário nacional (artigo 151, incisos IV e V), suspende a exigibilidade do crédito tributário, de modo a inibir temporariamente o ciclo de concretização da obrigação tributária, produzindo, assim, nesse específico âmbito processual (o tributário) eficácia acautelatória.

Contudo, tratando-se de ação preventiva, uma vez que, no momento do ajuizamento da ação declaratória de inexistência de relação jurídica, não há crédito tributário devidamente constituído, é possível falar em suspensão da exigibilidade do crédito tributário? Qual o efeito prático de se suspender a exigibilidade do crédito tributário se, de fato, não há ainda a constituição do crédito? A concessão de tutela provisória, nesse específico cenário — o da declaratória em processo tributário —, teria o condão de obstar o lançamento? Em caso positivo, como ficaria a questão do prazo decadencial ao direito de lançar?

Na literalidade textual do artigo 151 do CTN, suspender a exigibilidade do crédito tributário pressupõe a existência deste, ou seja, "seria necessária a existência de linguagem competente para a sua constituição" [6], o lançamento, documento habilitado pelo sistema normativo que faz emergir a relação jurídico-tributária. Desse modo, a norma que determina a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, instituída no artigo 151 do CTN reportar-se-ia apenas àqueles créditos já devidamente constituídos, pois não haveria como se suspender o que não existe. Lembremos: este é o que o texto do CTN indica.

Reputamos, contudo, que essa interpretação limita o alcance conteudístico da disposição normativa, isto é, a norma jurídica que se constrói a partir do texto, considerando o fato de que a jurisdição, por meio do poder geral de cautela, deve ser exercida ainda em estágio de ameaça da lesão de modo a impedi-la [7].

Segundo entendemos, esse dispositivo do CTN está a merecer uma releitura, pois a concessão de tutela provisória em ação declaratória deveria produzir uma ordem judicial que impedisse a constituição do crédito e, consequentemente, sua exigibilidade e exequibilidade, a fim de se consagrar um ponto de intersecção entre o direito material e o processual, justamente porque "a medida liminar tem o condão de impedir o processo de positivação do direito", sua função processual tributária única [8].

Nos moldes do artigo 151, inciso V do CTN, a suspensão da exigibilidade do crédito tributário por meio das tutelas provisórias concedidas em demandas preventivas, de acordo com Dalla Pria terão como consequência (1) vedar a constituição do crédito tributário enquanto a lide permanecer pendente de julgamento, ou (2) permitir a constituição do crédito tributário com exigibilidade suspensa, obstando-se a realização dos atos subsequentes de cobrança [9].

Embora sejam raras as decisões que, expressamente, vedem o direito potestativo do Fisco de realizar o lançamento, como se deu no caso do Recurso Especial 453.762/RS [10], admitir a interpretação sugerida implica, inevitavelmente, em assumir uma postura a respeito da fluência do prazo decadencial, fixado no artigo 173 do CTN, em cotejo com o enunciado contido no artigo 207 do Código Civil (Lei 10.406/2002).

O prazo de decadência visa sancionar a inércia do credor no exercício de seus direitos, mas, diante do cenário de suspensão da exigibilidade do crédito a constituir, "não se figuraria juridicamente aceitável a pretensão de penalizar alguém por se abster da prática de um ato cuja realização estava vedada por ordem judicial expressa" [11]. Ora, se a cobrança está vedada enquanto perdurar a causa de suspensão da exigibilidade, parece inadequado falar-se em lançamento, apenas para "evitar a decadência do direito de efetuar o lançamento" [12].

Se a título de tutela final o objetivo da ação declaratória em matéria tributária é justamente impedir a formação da relação jurídica entre Fisco e contribuinte proponente da demanda, por meio da tutela provisória sua intenção é imediatamente impedir a constituição do crédito tributário. Desta forma, seria coerente que a tutela provisória impedisse tal ato, bem como, na sua vigência, obstasse a fluência do prazo decadencial, evitando, conforme leciona Dalla Pria, "sensível mitigação da eficácia da tutela", pois os efeitos declaratórios negativos não teriam o condão de anular débitos constituídos no curso do processo (para tanto seria necessária uma ação de natureza repressiva) [13] [14].

Porém, fundados na previsão legal do Código Civil — em lei ordinária, portanto — de que o prazo decadencial não se interrompe nem se suspende, jurisprudência e doutrina majoritária caminham no sentido oposto admitindo que, embora as tutelas provisórias tenham o condão de suspender a exigibilidade do crédito tributário, não impedem a sua constituição, a fim de não superar o referido prazo.

Não é esse o nosso entendimento, reputa-se que o comando suspensivo da exigibilidade advindo de tutela provisória em ação preventiva impede o Fisco de seguir o processo de concretização da obrigação tributária, de modo que a interrupção da fluência do prazo decadencial é um efeito necessário porque impede, ainda que temporariamente, o ato de constituição do crédito tributário pelo Fisco ou, por outras palavras, que o Fisco exerça o seu direito de lançar [15].

Ao admitir a possibilidade de constituição do crédito tributário durante o curso de ação declaratória, com tutela provisória concedida e em vigor, como o faz a doutrina tradicional, tem-se que reconhecer que "a tutela declaratória negativa, para além dos efeitos obstativos que lhe são peculiares, também produzirá, com relação aos atos de constituição do crédito exarados após a sua propositura, eficácia desconstitutiva anômala" [16], como decorrência da precariedade desses atos realizados após o ajuizamento da ação, face ao "estado de litispendência" gerado com a citação da Fazenda Pública, nos exatos termos do artigo 240 do CPC/2015.

Essa postura da doutrina tradicional parece-nos paradoxal diante da natureza da tutela provisória pleiteada e a efetivamente concretizada, pois, o comum é a concessão de tutelas provisórias suspensivas da exigibilidade do crédito tributário nas ações preventivas, que implica a possibilidade de constituição do crédito tributário, ainda que sob condição resolutória, obstando tão somente os atos subsequentes a ela, como inscrição em dívida ativa, ajuizamento da execução fiscal e constrição patrimonial.

Ao aceitar tal entendimento, não haveria que se falar na incidência de juros e multa de mora, conforme disposto no caput do artigo 63 da Lei 9.430/96, pois "a mora do sujeito passivo, assim entendida como o estado de inadimplência perante o Fisco, é o elemento preponderante para a aplicação da norma sancionadora", o que não há quando está vigente a norma de suspensão da exigibilidade [17].

Como o objeto da ação declaratória de inexistência de relação jurídico tributária é, justamente, impedir que a lesão decorrente da aplicação de determinada regra instituidora de tributo, produzida fora dos parâmetros normativos materialize-se, a concessão da tutela provisória suspendendo a exigibilidade deveria ter o condão de, enquanto se mantiver em vigor, impedir a constituição do crédito tributário e, com isso, impedir a fluência do prazo decadencial, justamente porque não se trata de inércia do sujeito ativo, mas sim de cumprimento de ordem judicial cuja norma é proibitiva do exercício do direito de efetuar o lançamento.

 

*Texto oriundo dos debates deflagrados nas aulas do crédito de "Direito Processual Tributário" do curso de mestrado do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), ministrado pelo professor Rodrigo Dalla Pria

 


[1] PRIA, Rodrigo Dalla. Direito Processual Tributário. São Paulo: Noeses, 2021, p. 248.

[2] CONRADO, Paulo Cesar. Processo Tributário. 2ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 115/116.

[3] PRIA, Rodrigo Dalla. Direito Processual Tributário. São Paulo: Noeses, 2021, p. 216/217.

[4] PRIA, Rodrigo Dalla. Direito Processual Tributário. São Paulo: Noeses, 2021, p. 202.

[6] GONÇALVES, Carla de Lourdes. A suspensão da exigibilidade nas ações preventivas. In: Processo Tributário Analítico. Coord. CONRADO, Paulo Cesar. vol. II. São Paulo: Noeses, 2016, p. 52.

[7] A referência é ao seguinte dispositivo do texto Constitucional:

Art. 5º. (…) XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

[8] GONÇALVES, Carla de Lourdes. A suspensão da exigibilidade nas ações preventivas. In: Processo Tributário Analítico. Coord. CONRADO, Paulo Cesar. vol. II. São Paulo: Noeses, 2016, p. 56

[9] PRIA, Rodrigo Dalla. Direito Processual Tributário. São Paulo: Noeses, 2021, p. 261.

[10] "PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO. SUSPENSÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. CAUSA SUSPENSIVA CONSISTENTE EM LIMINAR ANTECIPATÓRIA CONCEDIDA EM MANDADO DE SEGURANÇA. APLICAÇÃO DO ART. 151, IV, DO CTN. […] 4. Exsurgindo a suspensão prevista no art. 151, IV, do CTN no curso de procedimento de constituição da obrigação tributária, o que se opera é o impedimento à constituição do crédito tributário. […]". (REsp nº 453.762/RS; 1ª Turma; rel. min. Luiz Fux; DJ 17/11/2003).

[11] PRIA, Rodrigo Dalla. Direito Processual Tributário. São Paulo: Noeses, 2021, p. 263.

[12] COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário – Constituição e Código Tributário Nacional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 233/234.

[13] PRIA, Rodrigo Dalla. Direito Processual Tributário. São Paulo: Noeses, 2021, p.264.

[15] Em outra oportunidade essa posição já havia sido sustentada por uma das autoras desse texto, no artigo com título "A suspensão da exigibilidade como agente inibidor do 'ciclo de vida' da obrigação tributária", publicado na Revista de Direito Tributário Contemporâneo (RDTC), editada pela Revista dos Tribunais (set/out, 2016. p. 35-50).

[16] PRIA, Rodrigo Dalla. Direito Processual Tributário. São Paulo: Noeses, 2021, p. 265.

[17] MOURA, Nelson Henrique Rodrigues de França. A suspensão da exigibilidade do crédito tributário por medida judicial e a não incidência de multa e juros moratórios no período acobertado pela decisão. In: Revista Dialética de Direito Tributário (RDDT), nº 174. São Paulo: Dialética, 2010, p. 93.

Autores

  • é advogada, especialista em Direito Tributário pelo Ibet e em Processo Tributário pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e mestranda em Direito Tributário pelo Ibet.

  • é advogado, especialista e mestrando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

  • é advogada, doutoranda pela Unimar, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professora do curso de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do programa de pós-graduação lato sensu da Fundação Getúlio Vargas (FGV LAW) e do Complexo Educacional Damásio de Jesus, professora e coordenadora do curso de extensão e do grupo de estudos Processo Tributário Analítico, do Ibet.

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