Diário de Classe

A verdade real e a produção de provas no processo civil brasileiro

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30 de março de 2024, 8h00

Estado da arte acerca da interpretação do artigo 435 do CPC

O artigo 435 do Código de Processo Civil (CPC) trata das hipóteses de juntada de documentos após a petição inicial ou a contestação. A literatura jurídica e julgados dos tribunais aplicam o artigo 435 do CPC da seguinte maneira:

A primeira exceção é óbvia: se o documento for superveniente à petição inicial ou contestação, por certo que é possível sua juntada posterior. 2.1. Contudo, a parte deverá juntá-lo tão logo tiver ciência desse documento, sob pena de preclusão, nos moldes do artigo anterior. 2.2. Como exemplo, uma troca de e-mails ou mensagens por celular entre cônjuges, durante a tramitação de um divórcio litigioso. Não era possível a juntada desse documento no momento inicial do processo. Assim, aplica-se o brocardo ad impossibilia nemo tenetur (ninguém está obrigado a fazer o impossível) e é permitida a juntada do documento após sua criação. 2.3. Contudo, vale destacar que o documento que já existia e estava esquecido, ou que a parte não sabia que existia, não é considerado documento novo (a respeito dessa situação, vide parágrafo único). [1]

“documento novo a que faz referência o art. 435 do CPC é aquele que surge de fatos supervenientes ao ajuizamento da ação ou que somente tenha sido conhecido pela parte em momento posterior” (AgInt no AREsp n. 2.309.266/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 26/2/2024, DJe de 1/3/2024.).” [2]

Caso concreto

No último dia 5 de março, a 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJ-MT) [3] decidiu que é possível a juntada de documento pela parte autora em réplica à contestação, pois ele não estava acessível à parte autora no momento da propositura da demanda, mesmo não tendo havido o contraditório antes da sentença que julgou, com base em tal documento, procedente o pedido de cobrança e condenou a parte ré ao pagamento do valor cobrado da parte ré.

Não obstante isso, o TJ-MT entendeu que o contraditório acerca do documento foi possível à parte ré no momento das razões de recurso de apelação.

Verdade real como objetivo da produção probatória

Além disso, o TJ-MT, utilizando-se de julgado do Tribunal de Justiça de Sergipe, assentou que a “apreciação do documento anexado tardiamente é plenamente possível quando capaz de influir diretamente na resolução do mérito em virtude da busca da verdade real” (trecho do acórdão). Isso porque “sabendo que as normas do Código Processual Civil devem balizar o magistrado à busca da verdade real, a juntada tardia de documento indispensável à resolução da lide não pode ser rejeitada.” (trecho do acórdão)

Nova hipótese de juntada de documentos no processo civil

Como dito, o TJ-MT aplicou o artigo 435 do CPC considerando que o documento não estava acessível a parte autora no momento da propositura da demanda, mas asseverou que todo documento que influa diretamente na resolução da demanda pode ser juntado após a petição inicial ou à contestação, “de modo que se deve prezar pela busca da verdade real”.

Verdade real no STJ

O STJ, desde que respeitado o contraditório, entende: “A regra segundo a qual somente se admite a juntada de documentos novos em momentos posteriores à petição inicial ou à contestação deve ser flexibilizada em atenção ao princípio da verdade real, devendo ser observado, contudo, o princípio do contraditório, efetivamente exercido pela parte na hipótese” (REsp n. 1.678.437/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 21.8.2018, DJe de 24.8.2018)”. [4]

O que é verdade real para o acórdão do TJ-MT?

No referido julgado do TJ-MT, a verdade real aparece do modo citado acima, ou seja, sem que haja qualquer densificação do conteúdo da expressão utilizada pelo Tribunal, a ofender o dever de fundamentação posto no artigo 489, § 1º, II, do CPC: “empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso”.

Indagação

Por isso cabe indagar: a verdade real é objetivo da produção probatória no processo civil brasileiro? A resposta perpassa em saber o sentido de verdade no processo civil brasileiro, a fim de saber de que verdade real é, efetivamente, uma verdade. Determinada doutrina aponta:

No campo do processo civil, o juiz pode satisfazer-se com a verdade formal, limitando-se a acolher o que as partes levam ao processo e eventualmente rejeitando o pedido autoral ou a defesa do réu por falta de provas; já no campo do processo penal, só excepcionalmente o juiz pode satisfazer-se com a verdade formal, pois deve aqui buscar a verdade real, em virtude da natureza pública do interesse repressivo. [5]

Existe mais de uma verdade?

Esta pergunta feita por Lenio Streck é crucial ao tratar do tema no âmbito do processo penal, pois a ideia de “verdade real” se relaciona à “verdade processual”, à “verdade formal” e à “verdade material” para parte da dogmática jurídica, [6] como expõe o jurista:

Efetivamente, não é fácil entender o que a dogmática processual pretende dizer com a defesa ou a crítica à “verdade” (real, material, formal, processual…). Por vezes, parece que a verdade real é uma busca ontológica clássica, uma adeaquatio intellectum et rei (ou seja, a adequação do intelecto à coisa); em outras passagens, fica-se convencido de que a verdade real é o corolário da filosofia da consciência (adeaquatio rei et intellectum – que quer dizer adequação da coisa ao intelecto) ou, na verdade, de sua vulgata. Guilherme Nucci, por exemplo, inicia o seu comentário ao art. 155 do CPP (LGL\1941\8) com o tópico “significados de verdade e certeza”, afirmando que “a existência da verdade é sempre relativa, pois o que é verdadeiro para uns, pode ser falso para outros”. Deparamo-nos com um antiquíssimo paradoxo: afinal, é verdade que não existe verdade? (…)

Na doutrina jurídica mais consumida, a verdade ora é confundida com um dado bruto (o fato em si?) ao qual o sujeito cognoscente deve se amoldar, ora é resumida a uma construção, erguida — a partir de uma pseudo “consciência metodológica” — pelo sujeito cognoscente, algo que aparece claramente no conceito de “livre convencimento” ou “livre apreciação da prova”.5

Em outros momentos a dogmática jurídica produz um mix. De todo modo, o que fica claro é que não há preocupação com as condições epistemológicas de tais assertivas. Ao que tudo indica, o imaginário dos juristas é determinado por uma estranha correlação entre a teoria da correspondência e o subjetivismo. A depender do caso, do objetivo pragmático, ou do público a que se dirige, adota-se uma ou outra. [7]

Verdade real?

Quem defende verdade real, pelo menos, entende que alguma verdade existe. A verdade, então, seria um dado real verdadeiro em si ou “haveria uma proposição a qual, mesmo que não expressasse a realidade, ainda assim poderia ser chamada de verdadeira?” [8] Não se obtém uma resposta para tais perguntas nos acórdãos acima, podendo-se dividir a ideia de verdade real em duas perspectivas:

  • De um lado, há uma verdade real “nos fatos”, por meio da qual o intérprete “busca” a verdade nas essências das coisas/dos fatos e que são verdades irrefutáveis, indiscutíveis e, portanto, não há convencimento, uma vez que sequer há sujeito – chamemos a isso de metafísica clássica (ou de objetivismo). Seria objetivismo no sentido filosófico e não no sentido da dicotomia vontade da lei-vontade do legislador ou, talvez, de uma vulgata construída assistematicamente).
  • De outro, haveria um livre convencimento, segundo o qual, aquém de uma metodologia objetiva direcionada à interpretação, os juízos proferidos pela autoridade encarregada não estariam sujeitos a constrangimentos externos (chamemos a isso, de forma bem generosa, de filosofia da consciência). (…)

Por isso, não é temerário afirmar que determinados setores da dogmática jurídica não conseguem “colocar” a propalada “verdade” (“real” ou não) no respectivo (ou em algum) solo filosófico, eis que, não raras vezes, confundem o paradigma ontológico-clássico (ou ontoteológico) com o da filosofia da consciência (ou de suas diversas variações e/ ou vulgatas) e vice-versa, resultando disso um conceito absolutamente sincrético, autocontraditório.

Esse problema se estende aos livros sobre “metodologia”, em que aparecem os métodos indutivos e dedutivos descolados dos paradigmas filosóficos, ignorando temas como a relação do indutivismo com empirismo e a complexidade da ideia de se fazer simples deduções nas ciências sociais. Aliás, há livros que tratam da verdade com pretensão crítica e utilizam, paradoxalmente, o “método dedutivo”.

Há um conjunto de obras jurídicas que buscam tratar do tema “verdade”. Esses manuais (compêndios etc.) são os livros mais utilizados nas salas de aula e fomentam os cursos de preparação para concursos e, por justiça, cabe referir que são citados por ministros do STJ e STF, o que também comprova que a crise do Direito avançou para o interior dos tribunais superiores. [9]

Crítica ao que seja verdade real

Desde Kant, em Crítica da Razão Pura, sabemos acerca da impossibilidade de compreender a realidade como se ela tivesse uma essência a ser descoberta, a afastar a ideia de uma verdade como correspondência com a realidade. Se não temos acesso à realidade em si, assim como é problemático utilizarmos a verdade real como a “busca de “verdades ontológicas” (traduzidas pelo enunciado “fatos realmente ocorridos”, utilizada por Grinover, grifos do autor). Ou seja, também Grinover não consegue superar essa mixagem teórica, assim como a incerteza acerca do sentido do que seja “verdade real”. [10]

Conclusão

É muito complicado saber o sentido atribuído à verdade real por quem a defende, em razão da mixagem de paradigmas filosóficos, quando há esta explicitação. No caso concreto analisado neste texto, nem isso foi possível aferir, porque nenhum sentido foi atribuído aos termos “princípio da verdade real”.

O que se conclui é que, na atual quadra do Direito, mormente se verificado sob as lentes da Crítica hermenêutica do Direito, a verdade se perfaz na ambiência de uma linguagem pública e intersubjetiva advinda de um a priori compartilhado, a fim de constranger a consciência de quem a utiliza. [11]

No âmbito do processo civil, por exemplo, a verdade se expressa pela intersubjetividade das alegações, em linguagens públicas, e das comprovações realizadas pelas partes a tempo e modo como determina o CPC, independentemente do fato de a prova influir diretamente na resolução da demanda, como decidiu o TJ-MT, visto que não se “deve prezar pela busca da verdade real”.

_______________________________

[1] DELLORE, Luiz. Art. 435. In: Gajardoni, Fernando da Fonseca … [et al.]. Comentários ao código de processo civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 927.

[2] STJ – ARESP 2.501.064. Rel. Min. Marco Buzzi. Publ. 21.03.2024.

[3] A ementa do julgado é a seguinte: “ RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE COBRANÇA – CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE PRODUTOS – EXORDIAL ACOMPANHADA POR NOTAS FISCAIS E BOLETOS – INSURGÊNCIA QUANTO À ENTREGA DOS PRODUTOS – COMPROVANTE DE ENTREGA JUNTADO NA IMPUGNAÇÃO – ALEGAÇÃO DE JUNTADA EXTEMPORÂNEA – BUSCA DA VERDADE REAL – DOCUMENTOS QUE PODEM INFLUIR DIRETAMENTE NA RESOLUÇÃO DO MÉRITO – CONTRADITÓRIO OPORTUNIZADO – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO DESPROVIDO. A apreciação do documento anexado tardiamente é plenamente possível quando capaz de influir diretamente na resolução do mérito em virtude da busca da verdade real. (…) Dessa maneira, sabendo que as normas do Código Processual Civil devem balizar o magistrado à busca da verdade real, a juntada tardia de documento indispensável à resolução da lide não pode ser rejeitada.” (TJ-SE – AI: 00023927120228250000, Relator: Ana Bernadete Leite de Carvalho Andrade, Data de Julgamento: 21/06/2022, 2ª CÂMARA CÍVEL)”.TJMT – APC 1000500-54.2019.8.11.0017. 1ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Sebastião Barbosa Farias. Publ. 05.03.2024.

[4] STJ – ARESP 2.224.534. Rel.ª Min.ª Isabel Gallotti. DJe de 09.03.2023.

[5] GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 9. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2006.

[6] Streck, Lenio (2023). Um manifesto antirrelativista: só há interpretações por que existem fatos, regras e princípios a serem interpretados. Revista Brasileira De Ciências Criminais, 199, p. 53–71. https://doi.org/10.5281/zenodo.8381431.

[7] Streck, Lenio (2023).

[8] Streck, Lenio (2023).

[9] Streck, Lenio (2023).

[10] Streck, Lenio (2023).

[11] STRECK, Lenio. Verdade contra o consenso. In: Dicionário senso incomum: mapeando as perplexidades do Direito. São Paulo: Dialética, 2023.

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