IDAS E VINDAS

Supremo suspende julgamento sobre foro especial depois da saída do cargo

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29 de março de 2024, 15h48

Um pedido de vista do ministro Luís Roberto Barroso interrompeu nesta sexta-feira (29/3) o julgamento do Plenário do Supremo Tribunal Federal sobre o alcance do foro especial por prerrogativa de função, conhecido como foro privilegiado. A sessão virtual se estenderia até o próximo dia 8.

Luís Roberto Barroso

Barroso, presidente da corte, pediu vista dos autos nesta sexta-feira

Antes do pedido de vista, os ministros Gilmar Mendes (relator da matéria), Cristiano Zanin, Flávio Dino, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli já haviam se manifestado — Toffoli em apenas um dos dois casos julgados. Todos consideraram que o foro especial para julgamento de crimes funcionais se mantém mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois do fim do mandato.

Histórico

Em maio de 2018, o STF decidiu que deputados e senadores só devem responder a processos criminais na corte se os fatos imputados ocorreram durante o mandato e têm relação com o exercício do cargo.

Na ocasião, também ficou estabelecido que as investigações continuam no Supremo somente enquanto durar o mandato. Ou seja, se o parlamentar deixa o cargo por renúncia, cassação ou por não ter sido reeleito, por exemplo, a apuração vai para a primeira instância. Antes, qualquer inquérito ou ação penal contra congressistas, mesmo anterior ao mandato, ia para o STF.

O julgamento pelo Plenário diz respeito a dois casos. Um deles tem como protagonista a ex-senadora Rose de Freitas (MDB-ES), acusada de corrupção passiva, fraude em licitação, lavagem de dinheiro e organização criminosa.

O outro envolve o senador Zequinha Marinho (Podemos-PA), que pediu que fosse enviada ao Supremo a acusação de que ele teria cometido a prática de “rachadinha” em 2013, quando era deputado federal.

O senador afirma que ocupou cargos eletivos ininterruptamente, pois foi deputado federal de 2007 a 2015, vice-governador do Pará de 2015 a 2018 e senador a partir de 2019. No momento, o processo contra o político está na Justiça Federal de Brasília.

O inquérito foi aberto em 2013, inicialmente sob supervisão do STF. Em 2015, com a renúncia do parlamentar, o caso foi remetido à Justiça Federal da 1ª Região.

Em 2023, o Superior Tribunal de Justiça analisou o caso e manteve o processo na primeira instância. Na ocasião, a corte entendeu que o STF deixou de ser competente quando o político passou a exercer o cargo de vice-governador.

Segundo o tribunal, a manutenção do foro por prerrogativa de função para parlamentares brasileiros restringe-se às hipóteses em que os diferentes mandatos foram exercidos em ordem sequencial e ininterrupta, ainda que em casas legislativas diferentes.

Entendimento do relator

Gilmar, relator do caso, considerou que a competência dos tribunais para julgamento de crimes funcionais prevalece mesmo após a interrupção das funções públicas, por qualquer causa — renúncia, cassação, não eleição etc.

Por isso, o relator reconheceu a competência do STF para processar e julgar a ação penal contra Marinho. Ele foi acompanhado por Zanin.

Ambos também propuseram a aplicação imediata da nova interpretação aos processos em curso, com a ressalva de manter todos os atos praticados pelo STF e outros tribunais com base na jurisprudência anterior.

Na decisão de 2018, o Supremo manteve a ideia de que o fim do exercício das funções exige o envio dos autos para a primeira instância. Foi aberta uma exceção para ações em que a instrução processual já foi concluída. Nesse caso, a competência se mantém até o desfecho do processo.

Para Gilmar, isso subverteu a finalidade do foro por prerrogativa de função. Hoje, basta que o parlamentar não seja reeleito ou que o agente público se aposente para que seus atos praticados no exercício do cargo sejam julgados em uma instância diferente.

Na visão do relator, o entendimento atual “reduz indevidamente o alcance da prerrogativa de foro, distorcendo seus fundamentos”. A jurisprudência atual também é contraproducente, pois causa “flutuações de competência no decorrer das causas criminais” e traz instabilidade para o sistema de Justiça.

A exceção estabelecida para casos com instrução processual concluída foi criada para conter os riscos dos frequentes deslocamentos de ações entre diferentes instâncias. Mas, segundo o relator, ela não resolve o problema.

Isso porque ainda há brecha para alteração da competência por vontade do acusado. Um parlamentar pode, por exemplo, renunciar antes da fase de alegações finais para forçar o envio dos autos a um juiz que ele considere mais simpático aos interesses da defesa.

Natureza do crime

Por isso, o ministro sugeriu a interpretação de que o foro especial deve ser aplicado “em vista da natureza do crime praticado pelo agente, e não de critérios temporais relacionados ao exercício atual do mandato”.

Na lógica de Gilmar, se a diplomação do parlamentar, sozinha, não justifica o envio dos autos para os tribunais, o fim do mandato também não é razão para o retorno deles à primeira instância.

O decano do STF entende que o foro especial deve se manter mesmo após o fim do exercício das funções porque a saída do cargo “não ofusca as razões que fomentaram a outorga de competência originária aos tribunais”.

Na verdade, é justamente com o fim do mandato que os adversários do político têm “mais condições de exercer influências em seu desfavor, e a prerrogativa de foro se torna mais necessária para evitar perseguições e maledicências”.

Ainda de acordo com o relator, se o objetivo da prerrogativa de foro é garantir ao agente a tranquilidade necessária para “agir com brio e destemor, e tomar decisões, por vezes, impopulares”, não é certo que, após o desligamento do cargo, as ações penais contra ele saiam do colegiado que “reúne mais condições de resistir a pressões indevidas” e passem a tramitar na primeira instância da Justiça local.

O ministro ainda citou exemplos hipotéticos, como o juiz que recebe pedido de medidas cautelares contra políticos influentes no final de sua carreira e o governador que, no último ano do mandato, contraria interesses corporativos da magistratura ou do Ministério Público.

“Todos eles correm risco de retaliações devido a atos praticados no exercício de suas funções — risco que se agrava com o desligamento do cargo”, pontuou Gilmar. “Garantir a esses agentes a prerrogativa de serem julgados por juízes experientes, no tribunal escolhido pelo legislador, mesmo após a aposentadoria ou fim do mandato, parece ser a melhor maneira de preservar a liberdade de ação no desempenho das suas funções”.

Desde que foi enviado à Justiça Federal, o caso concreto de Marinho passou por deslocamentos frequentes. A denúncia foi oferecida e a ação penal tramitou por quase quatro anos no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, por três anos na primeira instância do Pará e por mais dois anos na primeira instância do Distrito Federal.

Gilmar ressaltou que, após mais de uma década, a instrução processual ainda não foi concluída e nem mesmo houve interrogatório do réu. “Esse andar trôpego é um retrato sem filtro dos prejuízos que podem ser gerados pelo entendimento atual, que, com a devida vênia, traz instabilidade para o andamento das investigações e ações penais.”

Recalibragem

Gilmar havia enviado o pedido do senador diretamente ao Plenário por entender que a análise tem o potencial de “alterar, em parte, a orientação em vigor” desde 2018, e que o julgamento pode “recalibrar os contornos” do foro especial.

As discussões em torno do alcance do foro por prerrogativa de função voltaram a ganhar força por causa das investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco.

O caso foi parar no Supremo depois que a Polícia Federal apontou a participação do deputado federal Chiquinho Brazão no assassinato. Ele seria um dos mandantes. Na época do crime, no entanto, era vereador na cidade do Rio de Janeiro.

Clique aqui para ler o voto de Gilmar
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Inq 4.787

HC 232.627

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