Interesse Público

Sistema de Regime de Preços e carona pelos municípios: impacto da Lei 14.770

Autores

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

  • Laura Mello

    é advogada graduada em Direito e mestranda em Direito e Administração Pública na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

28 de março de 2024, 8h00

Em movimento oposto ao que o §3º do artigo 15 da Lei nº 8.666/93 preconiza, a nova Lei de Licitações e Contratos não prevê que o Sistema de Registro de Preços (SRP) será regulamentado (salvo em aspectos pontuais) e nem faz alusão a peculiaridades regionais. O legislador desceu a detalhes até então oferecidos por decretos dos diversos níveis de governo, pretendendo reduzir espaços antes reservados aos entes federados.

A União transportou parte das regras federais constantes do seu hoje revogado Decreto nº 7.892/13 para a lei, com o cristalino objetivo de padronizar, uniformizar e vê-las consideradas como normas gerais. Não fosse essa a intenção, por que teria inserido “suas regras” na lei? Importante observar que o artigo 82 da Lei nº 14.133/21, o primeiro a cuidar do tema, claramente menciona a natureza de normas gerais. O legislador quis evitar, a qualquer custo, possível interpretação em desfavor de seu propósito.

O carona foi um dos produtos dos atos normativos. Não encontrava previsão na Lei 8.666/93 e também por isso nasceu suscitando discussões. Os regulamentos, no amplo espaço que a Lei nº 8.666/93 tinha conferido a estados e municípios, dele cuidavam ou não, podendo prever vedações absolutas ao carona ou circunscrever a seu gosto a adesão.

Claro que a linha adotada na esfera federal servia de referencial, sobretudo por espelhar o entendimento do Tribunal de Contas da União [1], mas nada obstava que limites mais extensos fossem previstos, ainda que assumindo-se um risco de questionamento.

Agora a Lei 14.133/21 trata de forma explicita do tema. Mais que isso, observando o perfil que marca a nova lei, as normas e práticas federais foram a baliza a se espraiar por estados e municípios.

A Lei nº 14.133/21 não autoriza limites maiores. Fixa-se o alcance máximo das caronas, exatamente usando-se a métrica que o revogado Decreto Federal nº 7.892/13, em sua redação última, prescreveu [2]. Essa orientação consta do artigo 32 do atual Decreto Federal nº 11.462/23.

O carona que aproveita a ata de registro de preços deverá demonstrar a vantagem da adesão tardia. Há requisitos para que a adesão se faça de forma regular.

O §2º do artigo 86 estabelece que se deve demonstrar que os valores registrados estão compatíveis com os praticados no mercado à luz do que fixa o artigo 23 desta lei [3] [4]. A isso se adiciona a justificativa da vantagem [5] da adesão, inclusive em situações de provável desabastecimento ou descontinuidade de serviço público.

Muito embora a lei não tenha feito referência à demonstração do ganho de eficiência, da viabilidade da contratação pelo registro e economicidade da utilização da ata [6], esses elementos são pressupostos de sua utilização e constam, inclusive, do termo de referência que analisará a adesão ao registro como uma das opções disponíveis para atender a demanda apresentada [7].

Mudanças promovidas pela Lei n° 14.770/23

Pouco tempo antes de a Lei 14.133/21 se tornar exigível, ela foi alterada. A Lei n° 14.770/23 modificou o artigo 86 da nova Lei de Licitações e Contratos, que em sua redação original não permitia, ou pelo menos não previa expressamente, a possibilidade de adesão a atas de registro de preços realizadas por municípios, mas apenas às atas da União, dos estados e do Distrito Federal.

Com as alterações promovidas pela Lei n° 14.770/2023, os municípios também poderão “pegar carona” em atas de registro de preço realizadas por outros municípios, se assim decidirem.

Ou seja, os gestores municipais poderão aderir à ata de registro de preço na condição de não participante, desde que o sistema de registro de preços tenha sido formalizado mediante licitação — a este respeito, importa destacar que foi imposta limitação à possibilidade de adesão por parte de municípios a ata gerenciada por municípios, esta deve ser originária de licitação, não cabendo, portanto, a adesão na hipótese de sistema de registro de preços por meio da contratação direta — prevista no § 6º do artigo 82 da Lei nº 14.133/21.

Spacca

Essa alteração traz o olhar do legislador, inicialmente tão distante, para a realidade municipal. Como a ata de registro de preços é um procedimento auxiliar que surgiu da dificuldade em se licitarem bens e serviços de contratação frequente e padronizada por meio de modalidades licitatórias e seus tipos, a vedação a adesões em atas de registro de preço conduzidas por municípios foi duramente criticada por parte da doutrina.

O Decreto Federal nº 11.462/2023, que dispõe sobre o sistema de registro de preços para a contratação de bens e serviços, traz, de forma exemplificativa, hipóteses em que o SRP poderá ser adotado. Situações como conveniência na aquisição de bens com previsão de entregas parceladas ou contratação de serviços remunerados por unidade de medida (como quantidade de horas de serviço, postos de trabalho etc.) foram cenários destacados pelo legislador, além das compras padronizadas e frequentes.

Como se sabe, o procedimento da adesão em ata de registro de preços permite que órgãos e entidades da administração pública possam adquirir bens e serviços por meio da utilização de atas de registro de preços de outros entes públicos. A “carona” permite, dentre outras vantagens, a eficiência e celeridade nas aquisições de produtos e serviços, com incontestáveis ganhos de economia de escala.

Apesar de se comemorar a alteração trazida pela Lei n° 14.770, deve ser feita a ressalva de que a inteligibilidade conferida pelo legislador ao artigo 86 não se traduz em incentivo cego aos municípios para que ofereçam ou para que peguem carona indiscriminadamente.

A “carona”, como mencionado, é um procedimento sistematizado, que exige uma série de requisitos do órgão ou entidade aderente, como que este tenha a disponibilidade orçamentária para tanto, que comprove a vantagem econômica da adesão e que o faça dentro do prazo de validade definido no edital.

Da mesma forma, a escolha do órgão gerenciador por inserir cláusula em edital prevendo a possibilidade de adesão tardia à ata de registro de preço não se encontra isenta de onerosidades, sendo necessário, por exemplo, a motivação da opção por aumentar o leque de participantes no registro de preço e porque isso seria vantajoso para o certame.

Acerca das ressalvas e cuidados para a escolha pelo gestor se optar pela adoção da carona, o Tribunal de Contas da União já orientou:

“Por se encontrar no âmbito de discricionariedade do gestor, exige justificativa específica, lastreada em estudo técnico referente especificamente ao objeto licitado e devidamente registrada no documento de planejamento da contratação, a decisão de inserir cláusula em edital prevendo a possibilidade de adesão tardia (carona) à Ata de Registro de Preços por órgãos ou entidades não participantes do planejamento da contratação, à luz do princípio da motivação dos atos administrativos, do art. 37, inciso XXI, da CF/1988, do art. 3° da Lei n° 8.666/1993 e do art. 9°, inciso III, in fine, do Decreto n° 7.892/2013 (Acórdãos n° 757/2015 e n° 1.297/2015, ambos do Plenário).

A mera comparação dos valores constantes em Ata de Registro de Preços com os obtidos junto a empresas consultadas na fase interna de licitação não é suficiente para configurar a vantajosidade da adesão à ata, haja vista que os preços informados nas consultas, por vezes superestimados, não serão, em regra, os efetivamente contratados. Deve o órgão participante (“carona”), com o intuito de aferir a adequação dos preços praticados na ata, se socorrer de outras fontes, a exemplo de licitações e contratos similares realizados no âmbito da Administração Pública.” (Acórdão n° 420/2018 – Plenário, ministro relator Walton Alencar Rodrigues)

Para além das responsabilidades imputadas à administração pública, Cristiana Fortini e Tatiana Camarão bem lembram que há de se observar se ainda há limite para adesão e se essa vai ao encontro do que deseja o fornecedor. Isto porque o fornecedor se obriga a entregar/ executar o que restar consignado em ata para os órgãos gerenciador e participante, de forma que a pretensão do aderente pode ser frustrada se resistida pelo contratado.

Ou seja, tudo isso pois pretende-se lembrar que, em qualquer esfera, a decisão do gestor de aderir ou permitir não é desvinculada de esforços e responsabilidades. Não que se pretenda demonizar a carona para bens e serviços (obras são outra questão), em especial diante das dificuldades reais, hoje agravadas pelas exigências da Lei 14.133/21 (que diga-se de passagem pretende mesmo um reposicionar de foco e recursos para a contratação pública).

Muitos são os requisitos e critérios a serem observados para que a “carona” seja não somente possível, mas também bem-sucedida, de forma que de ambos os lados é necessária a segurança de uma licitação bem-preparada e bem conduzida, divulgada adequadamente para assegurar a ampla concorrência dos interessados.

Ao ente municipal já era dado o livre arbítrio de aderir à ata de registro de preço da União, de estados e do Distrito Federal. A Lei n° 14.770 trouxe mais uma possibilidade a ser cuidadosamente avaliada pelo gestor.

 

 


Referências:

FORTINI, Cristiana; OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de. CAMARÃO, Tatiana (Coord.). Comentários à lei de licitações e contratos administrativos: Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. 2. Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2023.

[1] No Acórdão nº 1.487/2007, o TCU recomendou que não fosse permitida a utilização ilimitada do carona: 9.2.2. Adote providências com vistas à reavaliação das regras atualmente estabelecidas para o registro de preços no Decreto nº 3.931/2001, de forma a estabelecer limites para a adesão a registros de preços realizados por outros órgãos e entidades, visando preservar os princípios da competição, da igualdade de condições entre os licitantes e da busca da maior vantagem para a Administração Pública, tendo em vista que as regras atuais permitem a indesejável situação de adesão ilimitada a atas em vigor, desvirtuando as finalidades buscadas por essa sistemática, tal como a hipótese mencionada no Relatório e Voto que fundamentam este Acórdão.

[2] ‘A consagração do ‘carona’ favorece a prática da corrupção. Em primeiro lugar, envolve a realização de licitações destinadas ao fornecimento de quantitativos enormes, o que se constitui em incentivo a práticas reprováveis. Isso não significa afirmar que existem desvios éticos apenas nas licitações de grande porte. O que se afirma é que a grande dimensão econômica de uma licitação eleva o risco de corrupção em vista do vulto dos valores envolvidos. Mais grave, consiste na criação de competências amplamente discricionárias. Ao assegurar ao ente administrativo a faculdade de escolher entre utilizar ou não utilizar um registro de preços, abre-se a oportunidade para a corrupção. Não significa que a existência do registro de preços seja um instrumento intrinsecamente propício à corrupção: a figura do ‘carona’ é intrinsecamente propícia à corrupção. E o é porque uma entidade pode ou não se valer de um registro de preços, segundo uma escolha livre e incondicionada’.

[3] A mera comparação dos valores constantes em Ata de Registro de Preços com os obtidos junto a empresas consultadas na fase interna de licitação não é suficiente para configurar a vantajosidade da adesão à ata, haja vista que os preços informados nas consultas, por vezes superestimados, não serão, em regra, os efetivamente contratados. Deve o órgão não participante (“carona”), com o intuito de aferir a adequação dos preços praticados na ata, se socorrer de outras fontes, a exemplo de licitações e contratos similares realizados no âmbito da Administração Pública. (Acórdão nº 420/2018-Plenário, Min. Relator Walton Alencar Rodrigues).

[4] 9.4. Recomendar à Prefeitura de Santo Antônio do Leverger que, após a aprovação do novo plano de aplicação dos recursos (…), avalie a conveniência e oportunidade de solicitar adesão à Ata de Registro de Preços (…), nos termos do §9º do art. 22 do Decreto nº 7.892/2013, sem prejuízo da prévia averiguação da compatibilidade dos preços registrados com aqueles praticados nas demais licitações públicas constantes do Banco de Preços em Saúde (BPS). (Acórdão nº 2034/2017 – TCU – Plenário).

[5] Sugerimos a leitura do artigo: CAMARÃO, Tatiana. Da necessidade de análise da vantajosidade antes de todas as contratações decorrentes do registro de preços. Jusbrasil, 2016. Disponível em: https://professoratatianacamarao.jusbrasil.com.br/artigos/423824668/da-necessidade-de-analise-da-vantajosidade-antes-de-todas-as-contratacoes-decorrentes-do-registro-de-precos. Acesso em 14 mar. 2021).

[6] Essa exigência se fazia presente no §1º-A no art. 22, do Decreto Federal nº 7.892/13.

[7] O art. 31 do Decreto Federal 11462/23 prevê que devem ser observados os seguintes requisitos:

I – apresentação de justificativa da vantagem da adesão, inclusive em situações de provável desabastecimento ou de descontinuidade de serviço público;

II – demonstração da compatibilidade dos valores registrados com os valores praticados pelo mercado, na forma prevista no art. 23 da Lei nº 14.133, de 2021; e

III – consulta e aceitação prévias do órgão ou da entidade gerenciadora e do fornecedor.

 

Autores

  • é presidente do IBDA, vice-presidente jurídica da Cemig, doutora em Direito Administrativo, professora da UFMG, ex-controladora geral e ex-procuradora geral adjunta do município de Belo Horizonte

  • é advogada, graduada em Direito e mestranda em Direito e Administração Pública na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

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