Opinião

Licitação de serviços técnicos de natureza predominantemente intelectual

Autores

  • Hamilton Bonatto

    é procurador do estado do Paraná mestre em Planejamento e Governança pela UTFPR graduado em Engenharia Civil e Matemática Plena especialista em Direito Constitucional em advocacia pública e em construção de obras públicas e autor dos livros Licitações e Contratos de Obras e Serviços de Engenharia e Governança e Gestão de Obras Públicas: do Planejamento à Pós-ocupação” ambos pela Ed. Fórum entre outros.

  • Rafael Costa

    é procurador-chefe da Procuradoria Consultiva de Obras e Serviços de Engenharia da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná especialista em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais ex-presidente dos grupos especiais de trabalho que elaboraram o regulamento paranaense da Lei Federal 14.133/2021 concernente a obras e serviços de engenharia convênios e termos de cooperação autor do livro Convênios Administrativos: A Boa-Fé entre os Entes Públicos e coautor de Contrato Público Built to Suit ambos pela Editora Fórum.

28 de março de 2024, 17h18

“A aparência não é um guia confiável para a realidade.”
Platão, em A República

 

A Lei nº 14.133/2021 elenca, no inciso XVIII do artigo 6º, os serviços técnicos de natureza predominantemente intelectual:

a) estudos técnicos, planejamentos, projetos básicos e projetos executivos;
b) pareceres, perícias e avaliações em geral;
c) assessorias e consultorias técnicas e auditorias financeiras e tributárias;
d) fiscalização, supervisão e gerenciamento de obras e serviços;
e) patrocínio ou defesa de causas judiciais e administrativas;
f) treinamento e aperfeiçoamento de pessoal;
g) restauração de obras de arte e de bens de valor histórico;
h) controles de qualidade e tecnológico, análises, testes e ensaios de campo e laboratoriais, instrumentação e monitoramento de parâmetros específicos de obras e do meio ambiente e demais serviços de engenharia que se enquadrem na definição deste inciso.

De acordo com o inciso I, do §1º do artigo 16 da Lei nº 14.133/2021, os serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual, deverão ser preferencialmente licitados com a adoção de critério de julgamento de técnica e preço.

Ademais, observe-se que o artigo 37 do mesmo diploma legal estabelece que o julgamento de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual previstos nas alíneas “a”, “d” e “h” do inciso XVIII do caput do artigo 6º daquela lei, cujo valor estimado da contratação seja superior a R$ 359,436,08 (valor atualizado pelo Decreto nº 11.871, de 2023), o julgamento deverá ser pelos critérios de melhor técnica, ou técnica e preço, na proporção de 70% de valoração da proposta técnica.

Portanto, quando da contratação de serviços técnicos de natureza predominantemente intelectual o valor for inferior ao limite indicado, será preferencialmente adotado o critério de técnica e preço; e quando for superior ao limite indicado, deverá ser, obrigatoriamente, licitado com a adoção de um dos dois critérios: melhor técnica ou técnica e preço.

Entretanto, a interpretação desses dispositivos demanda uma análise meticulosa do sentido orientado pelo dispositivo legal em questão. Uma análise superficial ou descuidada pode levar à inferência de que qualquer projeto de engenharia, arquitetura, testes e ensaios de campo deve ser licitado com base em critérios de técnica e preço, ou melhor técnica. No entanto, essa interpretação não abarca a essência fundamental do dispositivo.

Predominância do aspecto intelectual no serviço técnico

Este artigo pretende discutir qual o real significado de serviços técnicos de natureza predominantemente intelectual, especialmente em razão da exigência de que aqueles previstos nas alíneas “a”, “d” e “h” devem ser licitados com a adoção dos critérios de julgamento melhor técnica ou técnica e preço.

É crucial reconhecer que a lei emprega o termo “preponderantemente“, o que indica a predominância, e não a exclusividade, do aspecto intelectual nos serviços técnicos. Note-se que é possível que haja serviços técnicos que, mesmo que possuam elementos intelectuais, esses elementos não sejam preponderantes.

A alínea “a” do artigo 6º traz como serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual os estudos técnicos, planejamentos, projetos básicos e projetos executivos.

A primeira impressão que pode advir é a de que esses serviços sempre serão características de intelectualidade e se subsumiriam ao disposto nos artigos 36 e 37, de modo que, a depender do valor estimado, haveria a preferência ou obrigação de ser licitado por técnica e preço ou por melhor técnica, dentro das condições anteriormente citadas.

No entanto, é facilmente verificável que, por exemplo, nem todo projeto básico possui essa característica.

Imagine-se um projeto básico para a construção de uma calçada, uma guarita ou, ainda um muro simples. É evidente que, em que pese ser um serviço técnico, nesses exemplos está evidente que não predomina a natureza intelectual, portanto, não se subsumiria aos artigos 36 e 37 da Lei nº 14.133/2021. Essa conclusão está em consonância com o conceito de projeto básico apresentado no artigo 6, inciso XXV da Lei 14.133/21.

O projeto básico não é um documento específico, mas sim uma coleção de documentos necessários e suficientes para definir e dimensionar a obra ou serviço, permitindo a avaliação do custo da obra e a definição dos métodos e prazos de execução.

Assim, esses elementos variam de acordo com o porte e a complexidade do empreendimento. Projetos mais simples exigem elementos com menor carga intelectual, enquanto empreendimentos maiores incorporam elementos mais complexos e intelectuais.

É possível que, mesmo em empreendimentos mais complexos, haja uma variedade de elementos que compõem o projeto básico, como levantamentos topográficos e cadastrais, sondagens e ensaios geotécnicos, análises laboratoriais, estudos socioambientais e orçamentos detalhados do custo global da obra.

Dentro desse conjunto, pode-se encontrar elementos que, individualmente, não sejam considerados de natureza predominantemente intelectual, enquanto outros sejam.

Portanto, somente quando os elementos que podem integrar o conteúdo do projeto básico forem analisados isoladamente e demonstrarem uma significativa carga intelectual em suas atividades é que se torna relevante a utilização do critério de julgamento técnica e preço, ou melhor técnica, caso esses serviços tiverem um valor acima do limite previamente estabelecido.

Da mesma forma poderia se analisar os demais serviços da alínea “a” e os da alínea “d”, isto é, perceberemos que existem serviços elencados nas alíneas citadas que não possuem naturezas preponderantemente intelectuais.

Qualificação da sondagem

Os serviços da alínea “h”, possuem um elenco mais genérico que as demais alíneas: controles de qualidade e tecnológico, análises, testes e ensaios de campo e laboratoriais, instrumentação e monitoramento de parâmetros específicos de obras e do meio ambiente e demais serviços de engenharia que se enquadrem na definição de serviços técnico especializado de natureza predominantemente intelectual.

Para melhor discorrer sobre o tema, exemplificamos com os serviços de sondagem que envolvem um conjunto de técnicas usadas para investigar características do solo, subsolo ou terreno em várias áreas, como engenharia, geologia e arqueologia.

Envolve o uso de equipamentos especializados para coletar dados sobre composição, resistência, níveis de água subterrânea, entre outras informações importantes para projetos de construção e infraestrutura.

Embora a lei não mencione explicitamente a sondagem, é possível inferir que este tipo de serviço, quando realizado dentro do contexto de análises de campo, poderia se enquadrar na categoria de serviços técnicos especializados enumerados na alínea “h”.

Spacca

No entanto, a classificação de sondagens como serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual ou não depende da complexidade e do propósito específico da sondagem realizada.

Não há dúvidas que a sondagem de solos deve ser considerada como um serviço técnico especializado, tendo em vista que há a necessidade de conhecimento especializado para sua execução e interpretação dos resultados. No entanto, a natureza predominantemente intelectual desses serviços pode variar conforme a complexidade e o contexto em que são aplicados.

São consideradas sondagens de natureza predominantemente intelectual aquelas que geralmente requerem análises complexas, interpretação detalhada dos dados, e que são utilizadas para informar decisões críticas de projeto, como a fundação de grandes estruturas, avaliação de riscos geotécnicos. Essas atividades requerem alto nível de conhecimento técnico, experiência e habilidade de análise para entender as implicações dos resultados no contexto do projeto.

Podemos qualificar como sondagens de natureza predominantemente Intelectual, por exemplo, uma sondagem geotécnica avançada para grandes obras, aquelas realizadas para a fundação de grandes estruturas, como pontes, barragens ou arranha-céus, envolvem análises complexas das propriedades do solo, avaliação de riscos geotécnicos e recomendações de engenharia.

A interpretação dos dados requer conhecimento especializado e é crucial para a segurança e eficácia do projeto; outro exemplo seria a sondagem para estudos ambientais, que inclui a coleta e análise de amostras de solo para avaliar a contaminação ou para o planejamento de remediação ambiental.

Esse tipo de sondagem requer conhecimentos específicos em química ambiental e normas de segurança e meio ambiente, além de interpretação detalhada dos resultados para elaboração de planos de ação.

Outra sondagem que pode ser qualificada como de natureza predominantemente intelectual é a feita para projetos de infraestrutura complexa, como túneis ou instalações subterrâneas, onde os aspectos geológicos influenciam diretamente o método de construção, a segurança e a manutenção.

A interpretação dos dados coletados envolve alta especialização e compreensão dos processos geológicos e de engenharia civil.

Porém, existem tipos de sondagem que, apesar de serem técnicos e requererem equipamentos e habilidades especializadas para sua realização, podem não ser consideradas de natureza predominantemente intelectual.

Isso pode ocorrer em casos em que as sondagens são mais rotineiras, com procedimentos padronizados e sem a necessidade de uma análise complexa ou interpretação aprofundada. Por exemplo, sondagens realizadas para fins de verificação ou controle de qualidade em estágios específicos de uma construção podem se encaixar nessa categoria.

Entre elas, podemos citar a sondagem de verificação de profundidade do solo, que é realizada para determinar a profundidade do solo arável ou do nível do lençol freático em locais de construção menos complexos.

Embora requeira equipamentos e técnicas específicas, a análise dos resultados é relativamente direta e não envolve interpretação complexa; outro exemplo é a sondagem rotineira para controle de qualidade, que tem como escopo a verificação da compactação do solo em obras rodoviárias ou fundações de edifícios de menor porte.

Estas são mais padronizadas e focadas na conformidade com critérios técnicos pré-definidos, sem necessidade de análise profunda ou recomendações técnicas complexas.

Portanto, a qualificação de uma sondagem como de natureza predominantemente intelectual depende do contexto específico da sua aplicação, incluindo os objetivos da sondagem, a complexidade do projeto, e o nível de análise e interpretação requerido.

A distinção é importante para a aplicação correta das normas e leis que regem contratações públicas e privadas, especialmente no contexto da Lei 14.133/2021, que define categorias específicas para serviços técnicos especializados. Sondagens que informam decisões críticas de engenharia e envolvem análises complexas de dados são tipicamente consideradas de natureza predominantemente intelectual, enquanto atividades de sondagem mais rotineiras e padronizadas podem não ser.

Para sondagens mais rotineiras e menos complexas, nas quais os procedimentos são bem estabelecidos e os riscos técnicos são relativamente baixos, os critérios de “menor preço” ou “maior desconto” podem ser adequados. Esses critérios enfatizam a eficiência de custos e são utilizados quando a qualidade e a conformidade técnica podem ser facilmente verificadas por padrões e especificações pré-definidos.

Considerações finais

A Lei nº 14.133/2021 flexibiliza o uso de diferentes critérios de julgamento conforme a especificidade e complexidade dos serviços a serem contratados. Isso permite às administrações públicas encontrem o método de seleção que melhor atenda às necessidades do projeto, garantindo tanto a qualidade técnica quanto a eficiência econômica. Assim, a escolha do critério de julgamento deve ser cuidadosamente considerada e justificada com base na natureza do serviço técnico especializado a ser licitado.

Assim, é importante que enxerguemos além das aparências relativas à subsunção do caso concreto ao conceito de serviços técnicos especializados preponderantemente intelectuais da Lei nº14.133/2021. Como Fedro, interlecutor dos diálogos de Sócrates, é preciso que percebamos, ao interpretar a Lei que “as coisas nem sempre são o que parecem; os primeiros indícios enganam muitos”.

 

Autores

  • é procurador do estado do Paraná, mestre em Planejamento e Governança pela UTFPR, graduado em Engenharia Civil e Matemática Plena, especialista em Direito Constitucional, em advocacia pública e em construção de obras públicas e autor dos livros Licitações e Contratos de Obras e Serviços de Engenharia e Governança e Gestão de Obras Públicas: do Planejamento à Pós-ocupação”, ambos pela Ed. Fórum, entre outros.

  • é procurador-chefe da Procuradoria Consultiva de Obras e Serviços de Engenharia da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná, doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná, especialista em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, ex-presidente dos grupos especiais de trabalho que elaboraram o regulamento paranaense da Lei Federal 14.133/2021 concernente a obras e serviços de engenharia, convênios e termos de cooperação, autor do livro Convênios Administrativos: A Boa-Fé entre os Entes Públicos e coautor de Contrato Público Built to Suit, ambos pela Editora Fórum.

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