Opinião

Lei que trata do CSJT e do CJF: flagrantes inconstitucionalidades

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28 de março de 2024, 6h36

Já está em vigor a Lei 14.824, de 20 de março de 2024, que trata do CSJT (Conselho Superior da Justiça do Trabalho). Para sua aprovação no Congresso e posterior sanção presidencial, representantes da Justiça do Trabalho executaram uma verdadeira operação de guerra, com emprego de estratégias e enfrentamento corpo a corpo.

Isto seria muito meritório se o que os movesse fossem objetivos republicanos. Nada disso! O empenho máximo na busca pela aprovação da lei foi motivado por interesses nada republicanos, como passaremos a examinar, ao mesmo tempo em que apontaremos flagrantes inconstitucionalidades.

Exclusão da OAB e do Ministério Público

Tanto empenho de representantes da Justiça do Trabalho na aprovação da Lei 14.824 pode ser explicado por uma finalidade nada republicana, diametralmente contrária ao espírito da Emenda Constitucional 45/2004 (reforma do Judiciário).

De fato, a Emenda 45 abriu as portas do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) à participação da sociedade, com inclusão de representantes da Ordem dos Advogados do Brasil e do Ministério Público em decisões cruciais para o Judiciário, notadamente poderes disciplinares da magistratura e poder normativo primário (edição de normas que podem inovar o ordenamento jurídico).

Na arquitetura concebida pela emenda 45, OAB e MP não apenas assistem, mas interferem diretamente nas decisões que dizem respeito ao Poder Judiciário: seus regramentos e sua disciplina.

A Lei 14.824 exclui isso! Exclui tanto a OAB quanto o MP de decisões centrais da Justiça trabalhista. No artigo 3º percebe-se que o Conselho Superior da Justiça do Trabalho é composto apenas de magistrados trabalhistas.

O Ministério Público poderá atuar nas sessões, mas sem poder decisório (artigo 5º). E, ao contrário da Lei do Conselho da Justiça Federal, que concede assento naquele órgão à OAB (“assento mudo”, sem direito a voto: Lei 11.798, de 29 de outubro de 2008, artigo 2º, § 1º), a Lei 14.824 não faz qualquer referência a tal concessão, que aliás significa muito pouco: desacompanhada de direito a voto, seria apenas uma deferência honorífica.

Constata-se, assim, que a verdadeira causa do grande empenho da magistratura trabalhista na aprovação da lei reside no afastamento da OAB e do MP do poder decisório de questões relativas à gestão da Justiça do Trabalho.

Spacca

Querem que apenas magistrados decidam o que diz respeito a magistratura. Que ninguém se iluda quanto à possibilidade de atuação do CNJ. A composição daquele órgão de controle favorece a pretensão da Justiça trabalhista e federal quanto a esse isolamento.

Unidos, magistrados trabalhistas e federais representam quase 43% do CNJ. De fato, excluindo a Presidência (que não recebe relatoria de processos), são seis magistrados da União contra outros oito. Os números favorecem, em princípio, a convalidação de atos do CSJT e do CJF, praticados à revelia da atuação da OAB e do MP, num movimento oposto ao princípio republicano que inspirou a emenda 45.

Poder normativo primário: inconstitucionalidade

A Lei 14.824 concede ao CSJT o poder de editar normas jurídicas primárias (artigo 7º, inciso VII). O termo amplo, irrestrito “ato normativo, com eficácia vinculante…” não deixa margem a dúvidas: é ato normativo primário, podendo inovar o ordenamento jurídico. Ato normativo secundário (que não inova o ordenamento jurídico) está previsto no mesmo artigo 7º, inciso I (se entendermos “normas gerais de procedimento” como simples regulamentos de serviço).

No julgamento da Medida Cautelar na ADC 12, o relator, ministro Carlos Ayres Britto, de modo muito didático, após explicar que ato normativo primário é o que pode inovar o ordenamento jurídico, e ato normativo secundário é o que apenas regulamenta norma primária já existente (portanto, sem poder inovar o ordenamento jurídico), demonstrou que  a emenda 45 deferiu o poder normativo primário apenas ao CNJ, não fazendo o mesmo em relação ao Conselho Superior da Justiça do Trabalho e ao Conselho da Justiça Federal.

De fato, por estar vinculado ao princípio da legalidade e à segurança jurídica, basilares em um Estado de direito, o poder de editar normas jurídicas primárias deve estar previsto na  própria Constituição. Ela mesma estabelece diretamente quem pode editar normas primárias, não admitindo terceirização quanto a essa incumbência.

Não concede ao legislador infraconstitucional a possibilidade de atribuir tal poder a quem quer que seja. Ou o poder normativo primário decorre  diretamente no próprio texto constitucional, ou esse poder não existe. Sempre que o texto constitucional diz “nos termos da lei”, significa que os poderes serão definidos pelo legislador infraconstitucional, o que exclui automaticamente a possibilidade de lei ordinária vir a possibilitar a edição de normas primárias.

Vamos a dois exemplos: regimentos internos de tribunais são atos normativos primários, pois se baseiam diretamente no texto constitucional. São leis em sentido material. O artigo 96, inciso I, alínea “a” da Constituição não remete “aos termos da lei”, expressão que transformaria os regimentos internos em simples regulamentos de leis; apenas condiciona tais regimentos às normas processuais e à observância das garantias das partes; com esses dois condicionamentos, os regimentos internos podem inovar o ordenamento jurídico: são normas jurídicas primárias.

O mesmo raciocínio vale para o poder normativo do Conselho Nacional de Justiça: a Constituição, no artigo 103-B, § 4º, inciso II, não remete “aos termos da lei”, significando que o CNJ tem poder normativo primário. Idem quanto ao Conselho Nacional do Ministério Público (artigo 130-A, § 2º, inciso II).

Já em relação ao Conselho Superior da Justiça do Trabalho, a redação do artigo 111-A, § 2º, inciso II não deixa margem a dúvidas: a competência do referido conselho será exercida “na forma da lei”, cabendo a ele apenas o poder normativo secundário: não pode inovar o ordenamento jurídico.

O mesmo vale para o Conselho da Justiça Federal (artigo 105, § 1º, inciso II: “na forma da lei”). Como lei ordinária não pode conceder o poder normativo primário, a conclusão não pode ser outra: o CSJT e o CJF só poderão expedir regulamentos.

Peça que não se encaixa

Admitir que lei ordinária possa conceder o poder normativo primário ao Conselho Superior da Justiça do Trabalho vai criar  uma situação conflituosa de impossível solução.

O artigo 102, inciso I, alínea “r”, da Constituição atribui competência ao Supremo Tribunal Federal para “as ações contra o Conselho Nacional de Justiça e contra o Conselho Nacional do Ministério Público” (redação da Emenda 45).

Não menciona nem ações contra o CSJT, nem contra o CJF. Por que não? Simplesmente porque jamais fez parte da arquitetura jurídica da emenda 45 que aqueles dois órgãos fossem dotados de poder normativo primário.

Mas agora que a lei ordinária — inconstitucionalmente — deferiu ao CSJT o poder normativo primário, vejamos o que vai acontecer: se alguém quiser questionar na Justiça algum ato normativo primário editado por aquele órgão, terá que propor a ação nas primeiras instâncias ou em Tribunal Regional, dependendo do caso concreto.

Estaremos assistindo àquilo que a Constituição quis evitar no citado artigo 102: que magistrados  sujeitos ao ato normativo primário pudessem invalidar esse mesmo ato normativo, subvertendo assim a relação de poder constitucionalmente estabelecida.

O que é impossível de acontecer com atos normativos do CNJ (competência exclusiva do STF para quaisquer ações), vai ocorrer com atos normativos do CSJT: o rabo vai morder o cachorro. (Agravo Regimental na Petição 4770, relator Ministro Roberto Barroso.) Todos os inconvenientes que a emenda 45 quis evitar em relação aos atos normativos do CNJ e do CNMP (artigo 102, I, “r” da Constituição) vão acontecer em relação ao CSJT.

Uma tal situação esdrúxula revela que a atribuição de competência normativa primária ao CSJT, por lei ordinária, não só desconsidera o julgamento do Supremo na ADC 12, mas também contraria o próprio sistema da Constituição, instituído pela emenda 45. A peça não se encaixa no todo da arquitetura jurídica da Reforma da Judiciário! Não há como fugir ao reconhecimento da flagrante inconstitucionalidade.

Poderes disciplinares: inconstitucionalidade

O artigo 1º da Lei 14.824 atribui “poderes disciplinares” ao CSJT. Processos disciplinares poderão ser instaurados ou avocados: artigo 7º, inciso XII. Tais dispositivos também estão presentes da Lei 11.798/2008 (CJF): artigo 5º, incisos VIII e IX. São inconstitucionais!

A interpretação sistemática da Constituição permite afirmar que é a própria Constituição que estabelece quais órgãos podem punir juízes. Trata-se de uma garantia pouco explorada na doutrina. Em se tratando de Magistrados, não pode o legislador infraconstitucional atribuir poder disciplinar que já não esteja expressamente previsto no próprio texto constitucional.

Nem mesmo a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (artigo 93) poderá conceder poderes disciplinares, se tais poderes não forem previamente atribuídos pela Constituição. A Loman não poderá, por exemplo, conceder às Corregedorias dos Tribunais o poder de aplicar punições a juízes.

Não faria sentido algum a Constituição prever quorum elevado para decisões disciplinares dos Tribunais (artigo 93, inciso X) e a Loman, por seu turno, permitir que o Corregedor, sozinho, possa punir juízes.

Além disso, no artigo 93, inciso VIII, temos um claro exemplo de silêncio eloquente. Diz o texto: “o ato de remoção ou de disponibilidade do magistrado, por interesse público, fundar-se-á em decisão por voto da maioria absoluta do respectivo tribunal ou do Conselho Nacional de Justiça, assegurada ampla defesa” (redação da emenda 103/2019).

O texto não ressalva nem o CSJT, nem o CJF. E não os ressalva por uma razão óbvia: a Constituição não atribui àqueles dois órgãos poderes disciplinares.

Outro dispositivo onde ocorre silêncio eloquente: o artigo 103, § 7º, atribui às ouvidorias competência “para receber reclamações e denúncias de qualquer interessado contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, ou contra seus serviços auxiliares, representando diretamente ao Conselho Nacional de Justiça”.

Mais uma vez, não incluiu nem o CSJT nem o CJF porque não faz parte da arquitetura jurídica constitucional que aqueles dois órgãos possam ter poderes disciplinares.

Conceder poderes disciplinares ao CSJT e ao CJF infringe o caráter nacional da magistratura, que exige tratamento uniforme (ADI 3.854, relator Ministro Gilmar Mendes; ADI 3.367, relator ministro Cezar Peluso).

Com o deferimento de poderes disciplinares ao CSJT e ao CJF, a uniformidade nacional da magistratura ficará irremediavelmente quebrada: enquanto juízes da União poderão sofrer punições por parte de três órgãos (o Tribunal de origem, o respectivo Conselho e o CNJ), os juízes estaduais só poderão ser punidos por dois órgãos (o Tribunal de origem e o CNJ).

Inexiste justificativa para que juízes da União estejam sujeitos ao poder disciplinar de três órgãos, e juízes dos estados permaneçam sujeitos a apenas dois órgãos. É evidente a quebra de uniformidade.

Além disso, os termos empregados pela Constituição não podem ser desconsiderados. O tratar do Conselho Superior da Justiça do Trabalho (artigo 111-A, § 2º, inciso II) e do Conselho da Justiça Federal (artigo 105, § 1º, inciso II), a Constituição empregou o termo “supervisão”.

Já ao tratar do Conselho Nacional de Justiça (artigo 103-B, § 4º), o termo usado é “controle”; e somente a esse órgão de “controle” foi expressamente associada a competência disciplinar (inciso III).

Para efeito de comparação, a mesma expressão “controle”, associada a poderes disciplinares, aparece do artigo 130-A, § 2º, em relação ao Conselho Nacional do Ministério Público. Coincidência? Não! Coerência! “Controle”, com poderes disciplinares, a Constituição deferiu apenas ao Conselho Nacional de Justiça e ao Conselho Nacional do Ministério Público.

É claramente incompatível com a Constituição o deferimento de poderes disciplinares aos dois órgãos de “supervisão”: CSJT e CJF. O legislador infraconstitucional não pode igualar termos que a Constituição distinguiu claramente.

Retorno ao princípio republicano

Como afirmamos no início deste estudo, o que realmente motivou todo o empenho de representantes da Justiça do Trabalho pela aprovação da Lei 14.824 não foi o aprimoramento das instituições!

A Emenda 45, ao promover a Reforma do Judiciário, seguiu o princípio republicano, abrindo as decisões importantes dos Tribunais para a sociedade, com participação da OAB e do Ministério Público. Não concedeu a esses órgãos apenas “assento mudo”. Concedeu a eles participação no poder decisório em decisões das mais relevantes, como a edição de normas primárias e aplicação de sanções disciplinares a Magistrados.

Já a Lei 14.824 (CSJT), na esteira da Lei 11.798 (CJF) vão no sentido oposto ao do princípio republicado. Ou desconsideram totalmente o Ministério Público, concedendo à OAB apenas o “assento mudo” (Lei 11.798, artigo 2º, § 1º); ou permitem apenas a atuação do Ministério Público, mas sem poder decisório, com flagrante desconsideração da OAB (Lei 14.824, artigo 5º).

A reação é necessária à defesa da ordem constitucional. OAB e Ministério Público não podem ser excluídos, nem terem seus poderes constitucionais esvaziados! Os poderes inconstitucionalmente outorgados ao Conselho Superior da Justiça do Trabalho e ao Conselho da Justiça Federal, por leis ordinárias, acabam diminuindo o peso daqueles dois órgãos em decisões cruciais do Poder Judiciário.

Não há espaço no sistema da Constituição para outorga infraconstitucional de poderes normativos primários e disciplinares a órgãos que não são de “controle”, mas apenas de “supervisão”. São peças que não se encaixam no quadro maior do texto constitucional.

E não se encaixam exatamente por serem inconstitucionais. Esperamos que este artigo contribua para o retorno ao princípio republicado que embasou originalmente a Reforma do Judiciário promovida pela emenda 45. São nossos votos.

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