Opinião

O momento difícil da Constituição de 1988: estão salvando a criança?

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20 de fevereiro de 2024, 17h18

Imagine, caro leitor, o seguinte caso hipotético:

Criança brincando no jardim de casa é sequestrada. O elemento deixa-a amarrada no porta-malas de seu veículo e o estaciona em área afastada, local de pouco tráfego. Pretende voltar no final do dia. No retorno para a cidade, a pé pela estrada, é abordado. A família da criança já havia comunicado a polícia. E, nesse momento, localizam uma luva infantil em seu bolso. Após uma hora de depoimento, presente defensor, tendo confessado o crime, recusa-se em dizer o local onde deixou a vítima. Pela experiência dos policiais, em até 24 horas todas as câmeras em área pública, examinadas, seguramente indicariam a estrada percorrida, e, assim, seria localizado o carro. Mas a criança não tinha esse tempo! Usava medicação contínua e, se em duas horas não lhe fosse ministrado o fármaco, morreria. Um dos policiais toma um martelo e, sob protestos do defensor e demais colegas, começa a esmagar os dedos do depoente, que sucumbiu no quinto dedo: falou o local e a criança foi regatada e medicada, absolutamente ilesa. Elementos obtidos até os atos de violência sustentaram a condenação. Os atos de violência renderam responsabilidade cível, administrativa e criminal ao policial que utilizou o martelo e aos demais que não impediram o ato. O criminoso foi indenizado.

Dificilmente alguém não justificaria o ato, para além da responsabilidade criminal, administrativa etc. O maior defensor dos direitos humanos, maior jurista e com mais publicações, certamente cogitaria abrir mão (dos dedos da mão) de um sequestrador confesso, a fim de (tentar) salvar uma criança indefesa.

O policial no caso hipotético aparentemente ponderou que a vida da criança seria mais importante do que os dedos do alegado criminoso. E assumiu os riscos da sua escolha.

Os fins, contudo, não justificam os meios em direito, pois do contrário poucas pessoas teriam todos os dedos em suas mãos — e faltariam martelos nas ferragens. Mas se acalme, caro leitor: casos como o acima declinado são absolutamente ficcionais, não passando da literatura e cinema.

Interessante notar, contudo, como os dilemas morais são absolutamente perturbadores. E costumam colocar de joelhos até os titulares dos standards mais firmes.

Sobre a pena de morte, por exemplo, descabido indagar-se sobre se é a favor ou contra, no caso de um familiar ou amigo ser o condenado — ou qualquer outra pessoa. A pergunta correta é: “és a favor da sua pena de morte?”

Ou mesmo: “és a favor de pena de morte, caso ela fosse aplicada para ti?”

Provavelmente a resposta virá negativa para ambas as perguntas.

Pois bem. No Brasil contemporâneo, com certa frequência, vemos consternados uma sistemática heterodoxia em determinados procedimentos criminais, em determinadas unidades de poder, dependendo do(s) sujeito(s) envolvido(s).

Pós-1988
Existe um grupo bem delimitado e facilmente identificado que sofre com uma forte atuação estatal, que não encontra paralelo no Brasil republicano pós-1988.

O processo penal, conformado numa perspectiva clássica por inquérito conduzido por autoridade policial, denúncia formulada pelo Ministério Público e decisões de juízes e desembargadores parecem, para esse grupo bem específico, ter dado lugar a expedientes tão sigilosos quanto sumários (atinente ao julgamento-condenação), mas também eternos (atinente a inquéritos), conduzidos por pessoas que demonstram não possuir a necessária imparcialidade, contrariando histórica jurisprudência, além da literalidade de diplomas legais e constitucional. E gerando importantes obstáculos, notadamente de ordem recursal.

Onde estaria o juiz natural?

Outrora privilegiado, o foro por prerrogativa de função agora dirige-se a esse grupo, ainda que ali não haja quem tenha função. E se antes acreditava-se em impunidade, agora a punição é certa. Estão todos, desde sempre, já condenados.

Lamenta-se profundamente que brasileiros estejam sendo tratados dessa forma. Afinal, os direitos humanos, fundamentais, dirigem-se à totalidade das pessoas, sem qualquer exceção.

A Constituição de 1988, aparentemente, “não deu conta”, sendo possível ver exceções e contornos, inclusive quanto à já referida literalidade de textos normativos. Nem mesmo teóricos e teorias conseguiram manter-se.

Agora tudo é possível, desde que seja contra esse grupo. Bibliotecas inteiras derreteram, desde que a heterodoxia punitiva seja dirigida ao grupo inimigo.

Para tanto, aparentemente basta chamar o inimigo de fascista ou negacionista. E nesse momento, para o indigitado fascista-negacionista, não há mais direito. De outro lado, para justificar-se todo e qualquer ato, por mais heterodoxo que seja, basta dizer que se está sob o signo da defesa da democracia.

Indivíduos que venham a atentar contra a democracia deixam de ser humanos? Deixam de ter direitos?

Tais perguntas, que alguns tomarão como inconvenientes, precisam ser respondidas.

Direitos humanos
Atente o leitor ao disposto no artigo 10 da Declaração Universal dos Direitos Humanos:

“toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida”.

Mas não falarei sobre indigitado diploma, pois certamente há pessoas mais abalizadas que eu para tratar desse assunto. Contudo, se o nobre leitor entender que, para algumas pessoas, pode haver excepcionalidade tendente a reduzir-lhes direitos e garantias, conforme preconizado no dispositivo acima colacionado, sugere-se, respeitosamente, que reflita bastante e recalibre seus padrões éticos. Podem estar murchos.

Sendo o leitor uma pessoa com poder, respeitosa e humildemente, sugere-se que voluntariamente se afaste de suas funções. Pelo menos até que volte a enxergar os direitos humanos como direitos para todos os seres humanos, por piores que possam ser alguns indivíduos.

O silogismo é primário e pode ser entendido por qualquer pessoa: Há mais pessoas inocentes do que criminosas.

O direito é feito para todas as pessoas, justamente para contemplar as pessoas inocentes. Mas também atinge os criminosos.

Trata-se de uma externalidade negativa que precisa ser absorvida como condição para que o direito não deixe de ser aplicado também para os inocentes. Entendimento contrário conduziria a uma intolerável seletividade na proteção jurídica tendente a prejudicar até mesmo inocentes.

Momento difícil
O momento é difícil para os autênticos defensores dos direitos humanos, direito e Constituição e mesmo Estado democrático de direito. Falar em império do direito pode ser visto como anacrônico.

No Brasil contemporâneo, paradoxalmente, defender a literalidade da Constituição e do Código de Processo Penal pode ser considerado antidemocrático.

Claro, desde que essa defesa venha a beneficiar alguém do grupo inimigo.

Há quem diga que estão querendo salvar a criança, que, no caso, pode ser mimetizada pela Constituição, Estado de direito e democracia. E, para tanto, ou seja, para salvar a democracia, o Estado de direito e a Constituição, aceita-se, tal como o policial do caso hipotético, que práticas absolutamente heterodoxas sejam realizadas, que se ignore o devido processo legal e se negue um julgamento justo.

Insisto: a Constituição e as Leis, na ótica de alguns, “não deram conta” desse grupo — o grupo dos inimigos. E a cada dia avança-se ainda mais contra essas pessoas e os seus direitos constitucionais, com o aval de juristas que, fosse outro o grupo destinatário da punição, certamente estariam a repudiar e criticar.

Mas como o grupo é dos seus inimigos, verifica-se, daqueles mais conscientes, um silêncio preocupante. E, dos consequencialistas, escancarada defesa acrítica: ambos os grupos, naturalmente, em desavergonhada contradição com todo o empreendimento teórico de outrora.

Tais pessoas, se estivessem na sala de depoimentos do caso hipotético que abriu essas linhas, aplaudiriam o policial. Até mesmo o ajudariam nas suas marteladas. Afinal, os dedos martelados são dos inimigos.

Esquecem-se, contudo, que no Brasil contemporâneo a criança, se algum dia foi sequestrada ou quase sequestrada, já há muito parece estar em casa, segura, sem qualquer arranhão. E nada há a justificar as marteladas no alegado — ou sedizente — sequestrador.

Insisto mais uma vez: a situação do Brasil contemporâneo não desafia marteladas a quem quer que seja. Não se está correndo contra o tempo para localizar e salvar a criança, para dar-lhe medicação sem a qual morrerá.

Não se divisa, data maxima venia, a partir daquilo que vem sendo publicizado, situação excepcional a vindicar qualquer excepcionalidade.

Pelo contrário: por mais graves que possam ser os atos praticados por integrantes desse grupo específico, destinar-lhes um julgamento justo, com ampla defesa e direito ao contraditório, e, por óbvio, processamento perante juiz natural com todos os recursos inerentes, é condição que possibilita o restabelecimento da autonomia da Constituição, portanto, o irrestrito respeito ao direito.

E se sobrevier condenação, não se cogitará de qualquer injustiça, mormente porque as decisões terão passado por revisão pelas instancias recursais competentes.

A perdurar a heterodoxia instaurada, ainda utilizando o caso hipotético como alegoria, veremos no horizonte do nosso cotidiano o alegado sequestrador já preso e condenado — e as marteladas sendo dadas nos dedos da criança. Estariam, assim, salvando-a?

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