Opinião

O direito animal na reforma da parte geral do Código Civil

Autor

  • Vicente de Paula Ataide Junior

    é juiz federal em Curitiba professor da Faculdade de Direito da UFPR nos cursos de graduação mestrado e doutorado professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB doutor e mestre em Direito pela UFPR pós-doutorado em Direito pela UFBA e coordenador do Zoopolis - Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR.

21 de fevereiro de 2024, 6h34

É de todos sabido que “o projeto que gerou a atual codificação privada é da década de 1970, estando desatualizada em vários aspectos, sobretudo em questões relativas ao direito de família e das sucessões, sobretudo diante das novas tecnologias”. “Voltou-se a afirmar, com muita força, que o atual Código Civil ‘já nasceu velho'”. [1]

Essa desatualização também é sentida no campo da tutela jurídica dos animais, especialmente após a consolidação do direito animal, entendido como o conjunto de “regras e princípios que estabelece os direitos dos animais não-humanos, considerados em si mesmos, independentemente da sua função ecológica, econômica ou científica”. [2]

Inequivocamente, o Código Civil ainda é a principal fonte normativa usada para se negar aos animais a qualidade de sujeitos de direitos, mantendo-os na vetusta condição de coisas ou de bens semoventes.

Segundo o seu artigo 82, “são móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social”. No mesmo sentido era o artigo 47 do Código Civil de 1916.

Note-se que esse artigo não faz nenhuma alusão aos animais. Aliás, nenhum artigo do Código classifica expressamente os animais como coisas ou como bens, nem mesmo se importa com a definição jurídica dos animais, ao contrário do que faz a maioria dos códigos civis europeus, ainda que de maneiras diversas. [3]

Há muito os animais vêm sendo qualificados como bens semoventes. [4]

Essa interpretação acomodou-se culturalmente, de modo que não passou por qualquer atualização crítica, especialmente a partir da Constituição de 1988.

Reprodução

O Código Civil de 2002 perdeu a chance de sintonizar o direito civil brasileiro com as tendências mundiais de descoisificação dos animais, ao menos para demonstrar reconhecimento e preocupação com as singularidades destes, que impedem o seu enquadramento, puro e simples, no regime jurídico dos bens. [5]

Os animais na reforma da Parte Geral do Código Civil
O aniversário de 20 anos de vigência do Código Civil brasileiro foi marcado por uma notícia alvissareira: em 24 de agosto de 2023, o presidente do Senado instituiu a comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão e vice-presidida pelo ministro Marco Aurélio Bellizze, ambos do Superior Tribunal de Justiça, contando com a relatoria geral a cargo dos professores Flávio Tartuce e Rosa Maria Andrade Nery.

Os juristas que compõem a comissão foram distribuídos em nove subcomissões temáticas, com os primeiros relatórios parciais apresentados em dezembro de 2023. [6]

A ilustre subcomissão da parte geral propôs a inclusão de um novo artigo no Código Civil, especialmente dedicado à qualificação jurídica dos animais.

Eis a proposta:

Dos Bens Móveis e Animais
(…)
Art. 82-A Os animais, que são objeto de direito, são considerados seres vivos dotados de sensibilidade e passíveis de proteção jurídica, em virtude da sua natureza especial.
§ 1º A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento ético adequado aos animais;
§ 2º Até que sobrevenha lei especial, são aplicáveis subsidiariamente aos animais as disposições relativas aos bens, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza e sejam aplicadas considerando a sua sensibilidade;
§ 3º Da relação afetiva entre humanos e animais pode derivar legitimidade para a tutela correspondente de interesses, bem como pretensão indenizatória por perdas e danos sofridos.

Os argumentos apresentados para justificar o novo artigo são os seguintes:

O atual texto do artigo 82 do CC dispensa aos animais o tratamento de bens móveis semoventes, o que, no entanto, não é o mais escorreito. Afinal, os animais são seres vivos e, por isso, devem contar com proteção jurídica e tratamento diferenciados. Ocorre que a proteção dos animais, até mesmo diante da complexidade da matéria e impossibilidade de esgotamento no presente livro, deve ser trabalhada em legislação específica, não cabendo ser objeto exaustivo do Código Civil. Assim, com inspiração no Código Civil português, a presente proposta busca incluir o artigo 82-A. e seus parágrafos no Código Civil brasileiro, dispondo sobre a diferenciação do tratamento jurídico dos animais e estimulando a elaboração de lei específica sobre o tema.

Percebe-se, pela justificativa, que a comissão de juristas está, de fato, aberta e atenta para a necessária atualização do Código Civil em relação à classificação jurídica dos animais, afastando-se das concepções exclusivamente patrimonialistas do passado.

Não obstante o claro prenúncio de avanços no anteprojeto a ser encaminhado ao Senado, parece-nos que essa proposta ainda poderá ser ligeiramente aperfeiçoada, de modo a evitar quaisquer equívocos interpretativos no futuro.

Objeto de direito
O primeiro ponto que, a nosso ver, merece reflexão, é o trecho inicial, contido no caput do proposto artigo 82-A, ressalvando que animais são objeto de direito.

A inclusão dessa expressão — animais como objeto de direito — com o conceito que se possa lhe outorgar parece contrariar o espírito de vanguarda que marca as discussões da comissão de juristas e as justificativas apresentadas pela subcomissão da parte geral no sentido de que “o tratamento de bens móveis semoventes (…) não é o mais escorreito (…) afinal, os animais são seres vivos e, por isso, devem contar com proteção jurídica e tratamento diferenciados”.

Essa expressão, inclusive, pode bloquear as diversas iniciativas legislativas e jurisprudenciais brasileiras, especialmente verificadas na última década, que já têm reconhecido os animais como sujeitos de direitos, têm atribuído direitos a animais [7] ou, ao menos, têm-lhes declarado alguma forma específica de capacidade jurídica. [8]

Parece-nos, com todas as vênias, suprimível o trecho destacado, o que não diminuirá o alcance e o brilho do artigo proposto.

A linha de raciocínio dessa reflexão igualmente pode ser endereçada ao regime subsidiário, instituído pelo parágrafo segundo do proposto artigo 82-A, segundo o qual, na ausência de lei especial, os animais continuarão submetidos ao regime jurídico dos bens, o que significa manter os animais subordinados à mesma situação jurídica da atualidade, sem os avanços esperados na sua qualificação jurídica.

Comentando sobre as semelhantes alterações promovidas no Código Civil português, Raul Farias salienta que “não são os nomes dados às realidades que as transformam juridicamente, mas o regime que lhes é dispensado. E o regime jurídico continuou (e continua) sendo o das coisas”. [9]

No mesmo sentido, José Luís Bonifácio Ramos, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, tem sido enfático em afirmar que “mesmo que a aplicação do regime subsidiário dependa da não incompatibilidade com a natureza dos animais, parece-nos insensato, temerário e deveras contraditório promover uma equiparação entre o animal e a coisa, ainda que a título subsidiário”. [10]

Promoção dos animais a nova categoria jurídica
Parece-nos claro o desejo da subcomissão da parte geral em promover os animais a uma nova categoria jurídica. Mas o parágrafo proposto, mantendo os animais sob o regime jurídico dos bens, ainda que no aguardo de nova lei, acaba destoando desse elevado propósito, além de apresentar o mesmo potencial para inibir as exitosas experiências legislativas e jurisprudenciais já referidas.

Também aqui a supressão do texto não parece prejudicar a proposta geral, além do que estimulará o Congresso Nacional a editar um autêntico Estatuto dos Animais, na forma preconizada pelo parágrafo primeiro do artigo proposto.

Aliás, com a finalidade de prevenir distorções interpretativas, em virtude da topografia do novo artigo (no livro sobre bens), pode-se cogitar em inseri-lo em outra seção da parte geral, como o fez a reforma da Código Civil português de 2017.

O caput do proposto artigo 82-A também pode ser aperfeiçoado, no que se refere ao trecho “considerados seres vivos dotados de sensibilidade”, nitidamente inspirado pelas codificações civis da França, Portugal e Espanha.

É que a “sensibilidade” não é um atributo que caracteriza apenas os animais, mas os seres vivos como um todo, incluindo vegetais. [11]

O que a ciência já revelou ser uma nota distintiva dos animais é a consciência e, dentro dela, a senciência (capacidade de sentir e de sofrer). Nesse sentido é a  Declaração de Cambridge, de 2012, firmada por diversos neurocientistas, neurofarmacologistas, neurofisiologistas, neuroanatomistas e neurocientistas computacionais cognitivos. [12]

Dessa forma, para que o artigo proposto não se afaste dos achados das ciências empíricas, faz-se adequado substituir o termo “sensibilidade” por “senciência” na redação do caput, ou, para uma melhor compreensão, inserir a expressão “seres vivos sencientes”, em vez de “seres vivos dotados de sensibilidade”, como fazem as leis estaduais animalistas, antes indicadas.

Registramos, por fim, nessa pequena contribuição inicial ao debate, que é digna dos mais significativos encômios a proposta de parágrafo terceiro do artigo 82-A, sugerida pela professora Rosa Maria Andrade Nery, segundo a qual, “da relação afetiva entre humanos e animais pode derivar legitimidade para a tutela correspondente de interesses, bem como pretensão indenizatória por perdas e danos sofridos”, o que, certamente, pela sua localização na parte geral, em capítulo dedicado aos animais, reforçará a juridicidade das iniciativas contemporâneas em conceder indenização a animais vítimas de violência e maus-tratos, como forma de garantir a sua recuperação física e psíquica após os danos suportados. [13]

Existem outras propostas para o aprimoramento da tutela civil dos animais, formuladas por outras Subcomissões, as quais serão anotadas em próximos artigos.


[1]TARTUCE, Flávio. 2023 em Família e Sucessões – uma breve retrospectiva. Migalhas, 28 dez. 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes/399637/2023-em-familia-e-sucessoes—uma-breve-retrospectiva. Acesso em: 14 fev. 2024.

[2]ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Capacidade processual dos animais: a judicialização do Direito Animal no Brasil. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 56.

[3]A Áustria foi pioneira em incluir, no seu Código Civil, em 1988, um artigo afirmando que os animais não são coisas, protegidos por leis especiais (§ 285a ABGB). No mesmo sentido, em 1990, foi inserido o § 90a no BGB alemão. Em 2003, a mesma regra constou no art. 641a do Código Civil suíço. De forma diferenciada, certamente influenciado pelo Tratado de Lisboa (2007), que inseriu um novo art. 13 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (animais como “seres sensíveis”), o Código Civil francês, em 2015, dispôs, em seu art. 515-14, que os animais são seres vivos dotados de sensibilidade, porém, sujeitos ao regime de propriedade. Nessa mesma linha mudou o Código Civil português, em 2017, estabelecendo que os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza (art. 201º-B), que a sua proteção jurídica se opera por via das disposições do Código Civil e da legislação especial (art. 201º-C), mas que, “na ausência de lei especial, são aplicáveis subsidiariamente aos animais as disposições relativas às coisas, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza” (art. 201º-D). Também o Código Civil espanhol foi modificado (2021), para requalificar os animais como “seres vivos dotados de sensibilidade”, ressalvando que o “regime jurídico dos bens e coisas só lhes será aplicável na medida em que seja compatível com a sua natureza ou com as disposições destinadas a sua proteção.” (art. 333 bis, 1.).

[4]Cf., por exemplo: LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil brasileiro. 3. ed. Recife: Typographia Universal, 1861.

[5]Nesse sentido, com diversos enfoques, consultar: LÔBO, Paulo. Direito civil. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. v. 4. p. 17-18; COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil: parte geral. 9. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, v. 1, p. 165; TARTUCE, Flávio. Direito Civil: lei de introdução e parte geral. 14. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 304-305; SIMÃO, José Fernando. Direito dos Animais: natureza jurídica: a visão do Direito Civil. Revista Jurídica Luso-Brasileira, a. 3, n. 4, p. 897-911, 2017.

[6]Relatórios parciais disponíveis em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/arquivos?ap=7935&codcol=2630. Acesso em: 14 fev. 2024.

[7]Em 2018, Santa Catarina tornou-se o primeiro Estado a reconhecer que animais são sujeitos de direitos, ainda que elegendo apenas cães, gatos e cavalos para tal. No mesmo ano, foi editada a lei estadual mais avançada no Brasil sobre direitos animais: o Código de Direito e Bem-estar Animal da Paraíba, especificando direitos animais universais. Na sequência, em 2019, o Espírito Santo editou a Lei Complementar 936, reconhecendo os animais não-humanos como sujeitos de direitos; em 2020, foi a vez do Rio Grande do Sul reconhecer os animais domésticos de estimação como sujeitos de direitos e de Minas Gerais fazer o mesmo em relação a todos os animais; em 2022, Roraima também passou a reconhecer, expressamente, animais como sujeitos de direitos, com artigo especificando direitos animais; Pernambuco passou a acolher, em 2022, todos os princípios exclusivos e compartilhados do Direito Animal; Goiás editou lei, em 2023, para reconhecer cães e gatos como sujeitos de direitos; e o Amazonas, no final de 2023, também positivou direitos animais universais, como fizeram Paraíba e Roraima.

[8]O Tribunal de Justiça do Estado do Paraná proveu agravo de instrumento para declarar que dois cães, Spike & Rambo, vítimas de abandono e maus-tratos, detinham capacidade de ser parte, como autores de uma demanda indenizatória, a partir dos arts. 5º, XXXV e 225, § 1º, VII, da CF e art. 2º, § 3º do Decreto 24.645/1934  (TJPR, 7ª CCível, AI 0059204-56.2020.8.16.0000, Relator Juiz ROTOLI DE MACEDO, unânime, julgado em 14/9/2021).

[9]FARIAS, Raul. Animais: objectos de deveres ou sujeitos de direitos? In: NEVES, Maria do Céu Patrão; ARAÚJO, Fernando (coord.). Ética aplicada: animais. Lisboa: Edições 70, 2018, p. 71-92.

[10]RAMOS, José Luís Bonifácio. Estudos sobre direitos dos animais. Lisboa: AAFDL Editora, 2023, p. 76.

[11]Fazendo a mesma reflexão, no direito português: FARIAS, Raul. Animais: objectos de deveres ou sujeitos de direitos?, cit., p. 82.

[12]Texto disponível, em inglês, em: https://fcmconference.org/img/CambridgeDeclarationOnConsciousness.pdf. Acesso em: 14 fev. 2024.

[13]Ver: ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula; CARVALHO, Gean Lucas. Primeira sentença a conceder indenização a animais vítimas de maus-tratos. Consultor jurídico, 27 out. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-out-27/ataide-carvalho-indenizacao-animais-vitimas-maus-tratos/. Acesso em: 14 fev. 2024.

Autores

  • é juiz federal em Curitiba, professor da Faculdade de Direito da UFPR, nos cursos de graduação, mestrado e doutorado, professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB, doutor e mestre em Direito pela UFPR, pós-doutorado em Direito pela UFBA e coordenador do Zoopolis - Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR.

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