Ambiente Jurídico

Panorama da litigância climática nas cortes estaduais brasileiras

Autor

  • Gabriel Wedy

    é juiz federal professor nos programas de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) pós-doutor doutor e mestre em Direito Ambiental membro do Grupo de Trabalho "Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas" do Conselho Nacional de Justiça visiting scholar pela Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e pela Universität Heidelberg (Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht) autor de diversos artigos na área do Direito Ambiental no Brasil e no exterior e dos livros O desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental e Litígios Climáticos: de acordo com o Direito Brasileiro Norte-Americano e Alemão e ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

23 de março de 2024, 8h00

A Justiça estadual, integrante da justiça comum (junto com a Justiça Federal), é responsável por julgar matérias que não sejam da competência dos demais segmentos do Judiciário — Federal, do Trabalho, Eleitoral e Militar. Ou seja, sua competência é residual.

O saudoso ministro Athos Gusmão Carneiro referia, em sua clássica obra, Jurisdição e Competência, que “todas as causas não previstas expressamente na Constituição Federal como de competência das justiças especializadas cabem à justiça comum, exercida pelo tribunais e juízes estaduais, e ainda pela justiça local do distrito federal e territórios” [1].

Cada unidade da federação (estados e Distrito Federal) tem a atribuição de organizar a sua Justiça. Hoje, ela está presente em todas as unidades da federação, reunindo a maior parte dos casos que chega ao Judiciário, já que se encarrega das questões mais comuns e variadas, tanto na área cível, quanto na criminal e, logicamente, na área ambiental e, nos dias atuais, indo mais além, climática.

O artigo 125 da Constituição dispõe que cada estado da Federação deve possuir um Tribunal de Justiça, formado por, no mínimo, sete desembargadores de idade mínima de 30 anos. E, como refere o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux:

“A competência dos tribunais estaduais é definida a partir das Constituições de seu respectivo Estado-Membro, observadas as normas gerais e a Constituição. Lembrando que a principal norma genérica da organização do Judiciário é a Lei Complementar 35, de 14 de março de 1979 (Loman)” [2].

TJ-RO e a proteção do regime climático

Neste cenário, o Tribunal de Justiça de Rondônia (TJ-RO), cumprindo sua missão constitucional, nos autos da ação direta de inconstitucionalidade 0800922-58.2019.8.22.0000, em processo de relatoria do eminente desembargador Miguel Mônico, de modo vanguardista, fez referência à proteção de um regime climático, ao tutelar unidades de conservação no bioma amazônico. De acordo com o desembargador:

“Há um dever constitucional atribuído ao Estado no sentido de criar áreas ambientais especialmente protegidas de forma progressiva (§1º do artigo 225, CF/88), o que se impõe como medida necessária para conter a extinção massiva da biodiversidade em pleno curso na atualidade.

As áreas ambientais especialmente protegidas identificam-se como um mecanismo essencial para assegurar, por exemplo, a proteção da biodiversidade e do regime climático, ou seja, dois dos temas centrais e mais preocupantes da crise ecológica sem precedentes que vivenciamos hoje e que
decorre direta e exclusivamente da magnitude da intervenção do ser humano na Natureza, notadamente em razão da destruição da cobertura florestal (e consequente liberação de gases do efeito estufa) e alteração dos habitats naturais das espécies da fauna e da flora em todos os cantos do Planeta” [3].

Justiça de SP e o IncentivAuto

No litígio Famílias pelo Clima contra o Estado de São Paulo, em outro caso, os autores aduziram na exordial que o IncentivAuto (Programa do Governo do Estado de São Paulo) prevê a concessão de financiamento de no mínimo R$ 1 bilhão a fabricantes de veículos automotores, para a realização de projetos de expansão de suas plantas industriais, implantação de novas fábricas ou desenvolvimento de novos produtos.

Este fato, para os autores, constitui-se em potencial ilegalidade, pois  financia projetos que não minimizam a redução de emissões de gases de efeito estufa, como dispõe a Lei Estadual nº 13.798/2009, e causa lesividade ao erário e ao meio ambiente diante da utilização de expressivos recursos do Fundo de Apoio aos Contribuintes do Estado de São Paulo para financiar, com condições subsidiadas pelo poder público, projetos que podem estimular ação poluidora e não observar a compatibilização do desenvolvimento socioeconômico com a proteção do sistema climático.

Spacca

Com base no princípio de publicidade dos atos e documentos públicos, o magistrado da 6ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo determinou, em janeiro de 2021, que o governo do estado de São Paulo divulgasse os dados de financiamento do referido programa que concede incentivos fiscais as montadoras de automóveis [4].

TJ-GO e a qualidade do ar

Outra ação que merece referência é a Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público estadual contra o estado de Goiás. A ação pretende obrigar o estado a adotar medidas necessárias para melhorar a qualidade do ar e, consequentemente, salvaguardar a saúde da população por meio da implementação de uma política pública ambiental de monitoramento e controle da poluição atmosférica, com reflexos no enfrentamento às mudanças climáticas.

O autor alegou que o governo do estado omitiu-se no cumprimento das políticas públicas de controle ambiental, visando à proteção da qualidade do ar e do clima. Destacou a reiterada inércia estatal no combate às mudanças climáticas, no controle da poluição atmosférica e no monitoramento da poluição veicular, evidenciada pela não execução de ações técnicas, a exemplo da implantação de uma rede de estações de monitoramento da qualidade do ar, realização de inventário de emissões de gases de efeito estufa (GEE) e de origem móvel, bem como a implementação de Programas de Inspeção e Manutenção de Veículos em uso.

Na inicial aduziu que haveria omissão quanto à necessidade de analisar os impactos climáticos nos processos de licenciamento ambiental realizados no estado. Afirmou a parte autora que, em consonância com a Política Nacional de Mudança do Clima (PNMC) — Lei Federal 12.187/2009 —, foi instituída a Política Estadual de Mudança do Clima (PEMC) — Lei Estadual 16.497/2009 —, mas poucas políticas públicas foram implementadas e efetivadas.

Sobreveio liminar em que o órgão julgador determinou, em 8 de março de 2022, que o estado elaborasse e apresentasse em juízo, no prazo de 180 dias, o Plano de Controle de Emissões Atmosféricas (PCEA). Esse documento deveria  contemplar a implantação da rede de monitoramento da qualidade do ar e cumprir as seguintes leis e resoluções:

“Resoluções Conama 1 e 2/1993, que dispõem sobre os limites máximos de ruídos, com o veículo em aceleração e na condição parado, para veículos automotores nacionais e importados, excetuando-se motocicletas, motonetas, triciclos, ciclomotores e bicicletas com motor auxiliar e veículos assemelhados, bem como estabelecem normas de fiscalização; Resolução Conama n° 418/2009, que exige a elaboração do Plano de Controle de Poluição Veicular (PCPV); Resolução Conama 491/18, que atualizou os padrões de qualidade do ar toleráveis em território nacional; Lei Federal 8.723/1993, que dispõe sobre a redução de emissão de poluentes por veículos automotores; Lei Federal 9.503/1997, que institui o Código de Trânsito Brasileiro; Lei Federal 12.187/2009, que institui a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC); Acordo de Paris – tratado sobre a Mudança do Clima; Lei Estadual 16.497/2009, que institui a Política Estadual sobre Mudanças Climáticas” [5].

O cumprimento dessas normas significa, na prática, que o estado, conforme requerido pelo MP, deverá implementar os instrumentos mínimos da política pública ambiental de monitoramento e controle da poluição atmosférica e de mudanças climáticas, tais como: Plano de Controle de Emissões Atmosféricas (PCEA); Rede de Monitoramento da Qualidade do Ar; Plano de Controle de Poluição Veicular (PCPV); Programa de Inspeção e Manutenção de Veículos em Uso; Inventário de Emissões Atmosférica e de Gases do Efeito Estufa (GEE); e, Avaliação dos Impactos Ambientais sobre o Microclima e Macroclima [6].

A decisão do órgão a quo foi mantida, em 2/5/2022, após recurso com pedido de efeito suspensivo, formulado pelo estado de Goiás, em decisão do egrégio Tribunal de Justiça daquele estado [7].

Contato direto

Existem estes e outros litígios climáticos, diretos e indiretos, instaurados no âmbito da Justiça estadual, que podem ser acessados nos sites do Sabin Center for Climate Change Law; do LSE- Grantham Research Institute on Climate Change and Environment; do Juma-Pucrj e da Justiça Federal do Rio Grande do Sul.

Várias das decisões das cortes estaduais brasileiras, como pode-se observar, estão de acordo com o estabelecido no Acordo de Paris, com a Constituição, com a Política Nacional da Mudança do Clima, e com vanguardistas decisões do Supremo Tribunal Federal, no aspecto constitucional, e do Superior Tribunal de Justiça, na seara infraconstitucional.

Os juízes de Direito e os desembargadores estaduais, portanto, sempre em contato direto com a sociedade devido a qualidade e o tipo de jurisdição prestada, agem nestes casos, exemplarmente, como magistrados do presente, mas também, do amanhã, preocupados com o futuro do planeta e com a saudável qualidade de vida dos seres humanos.

Em suma, é importante que o Poder Judiciário brasileiro leve a sério em suas decisões as graves ameaças impostas pelas mudanças climáticas como secas, enchentes, aumento das tempestades e do nível dos oceanos e os grandes prejuízos ambientais, sociais e econômicos decorrentes destes fatos.

A Constituição brasileira, a Política Nacional do Clima, inserida na Lei 12.187/2009, e o Acordo de Paris, são instrumentos legais importantes para decisões judiciais favoráveis a concretização do direito fundamental ao clima estável, livre de catástrofes causadas por fatores antrópicos, em benefício das presentes e futuras gerações de seres humanos e não humanos.

 


[1] CARNEIRO, Athos Gusmão. Juridição e competência. 5ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1993.p. 53.

[2] FUX, Luiz. Curso de direito processual civil. São Paulo: Forense, 2022. p.237.

[3] Referido processo de controle concentrado de constitucionalidade foi julgado procedente e restou assim ementado: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Direito Constitucional e Ambiental. Desafetação de Unidades de Conservação no Bioma Amazônico. Lei Complementar Estadual que dispõe sobre a extinção de 11 Unidades de Conservação Ambiental (LC n. 999/2018). Direito ao Meio Ambiente ecologicamente equilibrado. Direito fundamental de terceira geração (ou de novíssima dimensão). Dignidade da pessoa humana em sua dimensão ecológica. Princípio da ubiquidade. Dever bifronte do Poder Público e da coletividade – proteger e recuperar o meio ambiente. Vinculação dos poderes públicos (Estado-Legislador, Estado- Administrador/Executivo e Estado-Juiz) à proteção ecológica e à função de ‘guardião’ do direito fundamental ao meio ambiente. Pacto federativo ecológico. Estado Socioambiental. Princípio da máxima efetividade. Grave afronta aos princípios da prevenção e precaução. Exigência de estudos técnicos e consulta livre, prévia e informada das populações tradicionais direta e indiretamente afetadas. Ausência. Valor das indenizações de supostas posses e propriedades. Único motivo para não implantação da Estação Ecológica Soldado da Borracha. Existência de especulação e pressão no sentido de converter florestas para uso agropecuário. Local com espécies ameaçadas de extinção e necessidade de ações para combate de exploração ilegal. Garantia de não comprometer a integridade dos atributos que justificaram a criação das unidades. Unidades essenciais ao patrimônio nacional que se constitui o bioma amazônico. Princípio da vedação do retrocesso ambiental. Zoneamento ambiental. Direito à propriedade que não é absoluto. Determinações do Tribunal de Contas. Órgão auxiliar do Poder Legislativo. Força vinculante. Inconstitucionalidade formal e material. Ação julgada procedente (Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, Tribunal Pleno, Ação Direta de Inconstitucionalidade  0800922-58.2019.8.22.0000. Relator: Desembargador Miguel Mônico Neto, julgado em 20.09.2021.  Disponível em: https://webapp.tjro.jus.br/juris/consulta/detalhesJuris.jsf?cid=1. Acesso em: 02.11.2022).

[4] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. 6ª Vara da Fazenda Pública. Ação Civil Pública 1047315-47.2020.8.26.0053, 2020. Disponível em: https://jusclima2030.jfrs.jus.br/wp-content/uploads/2021/05/Decisao-interlocutoria.pdf. Acesso em: 02.11.2022.

[5] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS. 4ª. Vara da Fazenda Pública, Ação Civil Pública n ACP  5569834-31.2021.8.09.005, 2021. Disponível em: https://jusclima2030.jfrs.jus.br/wp-content/uploads/2022/05/Decisao-Liminar-ACP-Ministerio-Publico-de-Goias-2.pdf. Acesso em: 02.11.2022.

[6] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS. 4ª. Vara da Fazenda Pública, Ação Civil Pública n ACP  5569834-31.2021.8.09.005, 2021. Disponível em: https://jusclima2030.jfrs.jus.br/wp-content/uploads/2022/05/Decisao-Liminar-ACP-Ministerio-Publico-de-Goias-2.pdf. Acesso em: 02.11.2022.

[7] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS. Agravo de Instrumento n. 5245769-11.2022.8.09.0051, 2022. Disponível em: https://jusclima2030.jfrs.jus.br/wp-content/uploads/2022/05/Decisao-Agravo-de-Instrumento-ACP-Goias-5245769-11.2022.8.09.0051-2.pdf.  Acesso em: 02.11.2022.

Autores

  • é juiz federal, membro do grupo de trabalho Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas, do CNJ, professor do PPG em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, pós-doutor, doutor e mestre em Direito, visiting scholar pela Columbia Law School e pela Universität Heidelberg, integrante da IUCN World Comission on Environmental Law (WCEL), vice-presidente do Instituto O Direito Por um Planeta Verde e ex-presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil).

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