Contas à Vista

60 anos da Lei 4.320/1964 e o desafio da qualidade do gasto público

Autor

  • Élida Graziane Pinto

    é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

19 de março de 2024, 8h00

A Lei 4.320, de 17 de março de 1964, completou 60 anos de vigência no último domingo. Promulgada durante o governo João Goulart, a Lei 4.320 ainda hoje opera como o basilar Estatuto das Finanças Públicas brasileiras, na medida em que se ocupa de fixar “normas gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal”.

Por ocasião do seu quinquagésimo aniversário, José Maurício Conti e eu escrevemos a respeito do paradoxo da sua longevidade em meio a tantos redesenhos orçamentários e regimes fiscais que o país tem experimentado. Inúmeras mudanças se acumularam de 2014 até os presentes dias e o diagnóstico de que a Lei 4.320/1964 operaria sob uma lógica discreta e inercial, por si só, merece revisão, sobretudo à luz de tantas alterações constitucionais em regras fiscais. Para ficar apenas nos exemplos mais relevantes de redesenhos normativos nas finanças públicas ao longo da última década, vale a pena lembrarmos:

1) as Emendas Constitucionais 86/2015, bem como as ECs 100, 102 e 105, todas elas de 2019, que trouxeram e ampliaram o regime de impositividade das emendas parlamentares;

2) a Emenda Constitucional 95/2016, que fixou o “Novo Regime Fiscal”, a partir de um teto de despesas primárias, atrelado à correção monetária pelo IPCA supostamente por 20 anos. Todavia a EC 95/2016 vigeu, na prática, apenas por seis anos, durante os quais o teto sofreu inúmeras alterações acomodatícias para abrir-lhe exceções (EC 102/2019; EC 106/2020; EC 109, 113 e 114, essas de 2021; EC 123/2022);

3) a Emenda Constitucional 126/2022, que previu a revogação do “Novo Regime Fiscal”, quando fosse editada lei complementar destinada à instituição do “Regime Fiscal Sustentável”;

4) a Lei Complementar 200/2023, que regulamentou a EC 126, revogando o teto de despesas primárias e estabelecendo o vulgarmente conhecido “Novo Arcabouço Fiscal”, a pretexto do “Regime Fiscal Sustentável” demandado constitucionalmente.

Enquanto os regimes fiscais acima se ressentem de uma espécie de obsolescência programada, cada vez mais curta e fugaz, as sexagenárias normas gerais da Lei 4.320/1964 convivem com a Lei Complementar 101/2000, que se ocupou de estabelecer parâmetros de responsabilidade fiscal para a gestão dos recursos públicos, pouco tempo depois do alvorecer do trintenário Plano Real.

Todavia esse cipoal de regras orçamentário-financeiras impõe uma complexidade tão grande quanto disfuncional às finanças públicas do país. Em face desse contexto, José Roberto Afonso e Leonardo Ribeiro, com acurácia, têm defendido a necessidade de reconstruir a governança fiscal no país por meio de um Novo Código de Finanças Públicas, visando superar os impasses do processo orçamentário atual.

Spacca

Não é, pois, sem razão que, às vésperas do aniversário de 60 anos da Lei 4.320, o Secretário de Orçamento Federal (SOF), Paulo Bijus, tenha vindo a público marcar a efeméride, pautando a agenda de uma reforma orçamentária, sem, contudo, haver enunciado seus detalhes operacionais ou preceitos nucleares.

Aprimoramento das regras sobre controle qualitativo das despesas

Em meio à bruma de anteprojetos e reformas de lege ferenda, hoje aqui gostaríamos de pontuar, de forma minimalista, apenas um foco, a partir do qual buscamos sugerir – com as restrições cabíveis ao olhar restrito ora proposto – algumas possíveis linhas de aprimoramento estritamente hermenêutico de regras já existentes.

O foco que presentemente nos interessa reside no desafio da qualidade do gasto público, a partir do controle da execução orçamentária previsto no artigo 75, inciso III e no artigo 79 da Lei 4.320/1964. Tais dispositivos preveem controle qualitativo das despesas a partir do acompanhamento dos seus resultados “em termos de realização de obras e prestação de serviços”.

Não obstante a sexagenária previsão legal, gastamos mal os escassos recursos públicos da sociedade que são administrados pelo Estado. Eis uma constatação dolorosamente óbvia, diante da qual perguntamo-nos: por quê? Essa é uma indagação de difícil resolução em face de problema antigo e complexo, para cujo enfrentamento o presente artigo busca sugerir rota de revisão interpretativa, dentre várias possíveis, no campo dos instrumentos jurídicos de controle que, ao nosso sentir, não têm sido aplicados suficiente ou adequadamente.

Aferições estáticas e formais sobre a economicidade e a integridade das despesas públicas (incluídos aqui os gastos tributários) tanto simplificam quanto fragilizam o processo de avaliação sobre a conformidade das ações governamentais realizadas em face dos seus custos verificados e resultados alcançados (ou não).

O ponto de partida a que nos propomos é o questionamento de se a avaliação sobre a consonância dos preços com a média praticada no mercado e sobre a integridade dos termos contratados se resumiria apenas ao momento do julgamento das propostas e da adjudicação do objeto ao licitante vencedor na licitação. Dito de forma mais ampla, a pergunta que nos fazemos hoje é: uma vez fixados os preços do ajuste administrativo celebrado — a partir do certame licitatório ou do chamamento público —, nenhum compromisso posterior com a comprovação atualizada de economicidade seria exigível dos contratados ou dos beneficiários de repasses no âmbito do terceiro setor (seja a que título jurídico se der a relação de parceria)?

A origem da controvérsia reside no artigo 124, II da Lei Geral de Licitações e Contratos, no qual foi fixado o caráter bilateral de quaisquer alterações sobre as cláusulas econômico-financeiras e monetárias dos contratos administrativos. Ora, o fato de que é vedada a alteração unilateral de tais cláusulas pela administração pública não implica o direito adquirido do particular à sua imutabilidade, sobretudo porque o dever de provar a economicidade do ajuste se renova a cada ato de recebimento provisório ou definitivo do objeto para fins de liquidação da despesa e alcança necessariamente o particular contratado/conveniado/beneficiário do repasse a qualquer título.

Contratos, convênios, termos de parceria e quaisquer outras nomenclaturas de ajustes celebrados pelo Estado devem ser submetidos a avaliações periódicas de economicidade e integridade a cada etapa de aferição do seu cumprimento. Aqui o ônus da prova — no sentido propugnado pelo artigo 93 do Decreto-Lei 200/1967 — é, em primeiro e destacado plano, do particular contratado perante o servidor responsável pelo acompanhamento e fiscalização do ajuste.

Segundo os ditames gerais do artigo 140 da Lei 14.133/2021, a cada ato de recebimento provisório ou definitivo do contrato devem ser analisadas e atestadas a adequação do objeto aos termos contratuais nos casos de obras e serviços, bem como a qualidade e a quantidade dos materiais fornecidos nos casos de compras e locação de equipamentos.

Ou o particular comprova que executou adequada e economicamente o objeto contratado, ou não é possível aferir a sua conformidade para fins do correspondente termo circunstanciado de recebimento provisório ou definitivo, o qual deve ser assinado conjuntamente pelo Estado contratante e pelo ente contratado. Tampouco se pode passar ao ato da liquidação da despesa, considerando que é nesse momento em que se verifica “a origem e o objeto do que se deve pagar” e “a importância exata a pagar”, nos exatos termos dos incisos I e II do parágrafo 1º do artigo 63 da Lei 4.320/1964, cabendo, portanto, ao gestor público avaliar o serviço prestado e o quantum financeiro por ele devido e confrontar tais dados com os valores médios de mercado e com a prestação direta do serviço, extraindo daí a conclusão sobre a vantajosidade da aplicação.

Um exemplo interessante de que é necessário monitorar a atualidade da comprovação de economicidade das despesas contratuais — sobretudo para contrastá-las com os preços referenciais do mercado — pode ser extraído do próprio artigo 134 da nova Lei Geral de Licitações e Contratos:

“Art. 134. Os preços contratados serão alterados, para mais ou para menos, conforme o caso, se houver, após a data da apresentação da proposta, criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais ou a superveniência de disposições legais, com comprovada repercussão sobre os preços contratados.”

Ora, reequilíbrio econômico-financeiro é via de mão dupla que deve ser tempestiva e necessariamente manejada em favor do erário, quando as condições fáticas e normativas assim o propiciarem.

Por outro lado, a necessidade de se buscar formatos jurídicos mais dinâmicos para a comprovação de economicidade e vantajosidade de forma concomitante à execução do objeto contratual fez com que a Lei 14.133/2021 encampasse a previsão da Lei do Regime Diferenciado de Contratações (artigos 10 e 23 da Lei 12.462/2011), mantendo a figura do “contrato de eficiência”. À luz do artigo 6º, inciso LIII da nova Lei Geral de Licitações, tal contrato tem por objeto a prestação de serviços, que pode incluir a realização de obras e o fornecimento de bens, com o objetivo de proporcionar economia ao contratante, na forma de redução de despesas correntes, remunerado o contratado com base em percentual da economia gerada”. O regime de julgamento por maior retorno econômico do contrato de eficiência foi previsto no artigo 39 da nova Lei de Licitações e Contratos, onde foi estabelecida a possibilidade de remuneração variável atrelada ao desempenho do particular, remunerando o particular conforme o percentual da economia gerada.

Nos dois exemplos acima, percebemos que o Estado precisa manejar os instrumentos que a legislação já lhe oferece para questionar a formação dos custos e a margem de lucratividade nos preços praticados pelos particulares que com ele contratam.

Qualquer polarização maniqueísta entre o Estado que realiza a despesa e o particular que dela se beneficia tende a limitar o alcance do dever universal de prestação de contas inscrito no artigo 70, parágrafo único da Constituição de 1988. Todos, rigorosamente todos os que utilizem, arrecadem, guardem, gerenciem ou administrem dinheiros, bens e valores públicos devem prestar contas, sejam pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas.

Daí porque é ingênuo e juridicamente frágil sustentar que os problemas da má qualidade do gasto público e da própria corrupção estejam centrados exclusiva ou primordialmente no Estado e nas suas mazelas organizacionais.

Não há corrupção sem corruptores: eis uma constatação óbvia que, paradoxalmente, traz desafios colossais para o seu controle no ordenamento jurídico brasileiro. Urge assumirmos, com honestidade, que há maiores vigilância e demanda por transparência sobre as condutas dos corrompidos. Muito pouco avançamos, infelizmente, na aferição dos mecanismos de prestação de contas e de prevenção da corrupção a cargo dos particulares que se relacionam com o Estado e que, por inúmeras vezes, o corrompem.

Há 11 anos, a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013) inaugurou uma linha interpretativa que bem situa o debate sobre a amplitude do dever de prevenir quaisquer desvios ou atos lesivos à administração pública, aos princípios que a regem, ao erário ou aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

A partir de tal marco normativo, emergiu o horizonte preventivo dos sistemas de integridade e compliance a serem criados no âmbito das pessoas jurídicas privadas — com ou sem finalidade lucrativa —, no intuito de se tentar comprovar objetivamente a alegação de boa-fé em investigações de casos de corrupção em que as empresas e as entidades do terceiro setor se vissem, porventura, envolvidas em suas relações com o Estado.

Nesse sentido, os incisos VII e VIII do artigo 7º da Lei 12.846/2013 pontuam como aspectos que militam a favor da defesa das pessoas jurídicas privadas envolvidas em casos de corrupção tanto “a cooperação da pessoa jurídica para a apuração das infrações”, quanto “a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica”.

Mas o que seria de se esperar dos órgãos de controle interno das empresas e das entidades do terceiro setor? Apenas exames protocolares de conformidade com o ordenamento a pretexto de incentivo à denúncia de irregularidades? Ideal seria que os sistemas de integridade e compliance da iniciativa privada se ocupassem de prestar contas — a cada liquidação de despesa — sobre os reais custos e efetivos resultados da parceria celebrada com o Estado, em cruzamento sistêmico de riscos e em esforço de máxima transparência ativa dos dados atinentes às contratações públicas. Somente assim seriam alcançados os parâmetros dos incisos V a VIII do artigo 42 do Decreto 8.420/2015, que regulamentou a Lei 12.846/2013.

Para empreender uma dimensão efetivamente qualitativa do controle da execução orçamentária, à luz do artigo 75, III e do artigo 79 da sexagenária Lei 4.320/1964, é premente devolvermos às empresas e às entidades do terceiro setor a responsabilidade de atualizarem os mecanismos de comprovação tempestiva de que os preços praticados e os resultados entregues nas relações com o Estado estão consonantes com os valores de referência no mercado e com as finalidades contratadas/ajustadas.

Ao nosso sentir, a comprovação de economicidade não pode ficar adstrita somente ao momento de julgamento das propostas de preço e, por conseguinte, à adjudicação do objeto ao licitante que ofertar menor preço ou o menor preço associado à melhor técnica. Deve ela ser aferida a cada recebimento provisório do objeto e, portanto, a cada ato de liquidação da despesa.

Aliás, é também no momento da liquidação que o contratado presta contas de sua atuação, comprovando que fez o serviço de forma adequada e integral, de acordo com os princípios constitucionais e ditames legais aplicáveis — dentre os quais se destaca a demonstração da integridade e da economicidade —, afastando assim o peso da responsabilização objetiva pela prática de atos lesivos contra a administração pública previstos na Lei Anticorrupção.

Ou se fomenta a noção de compliance durante a liquidação da despesa para fins de comprovação tempestiva de economicidade, ou se presume a irregularidade da despesa, na forma do artigo 93 do Decreto-Lei 200/1967, haja vista a falta de comprovação plena do regular emprego de recursos públicos.

Ressaltamos que o exame da economicidade não preclui, pelo contrário, se renova a cada liquidação da despesa, pois é durante a execução do contrato que se verifica a exata aplicação do dinheiro público. Se assim não fosse, em raciocínio hipotético extremado e, portanto, se tivéssemos de ficar atados à comprovação da economicidade apenas do momento da contratação, o acompanhamento da execução contratual perderia uma de suas principais razões de ser, qual seja, checar o correto e vantajoso destino do dinheiro público.

Para que o acompanhamento da execução dos ajustes celebrados pelo Estado com o mercado ou com o terceiro setor cumpra o seu objetivo, deve a administração, em cada liquidação de despesa, aferir a idoneidade econômico-financeira e jurídica do objeto contratual/convenial prestado porque o está a receber provisoriamente, nos termos do artigo 140 da Lei 14.133/2021.

A postura do ente público nas liquidações ocorridas durante a execução do ajuste deve, pois, estar focada na observação e vistoria do objeto liquidado de forma a comprovar sua adequação aos termos pactuados. Tal observação envolve, por óbvio e especialmente, a checagem por parte do particular contratado acerca da aderência do objeto ajustado aos princípios da economicidade e finalidade, para fins de aferição de custos e resultados.

Ora, preços superfaturados e pagamento por bens não entregues, serviços não prestados ou obras não realizadas na quantidade e qualidade avençadas são dramaticamente exemplos rotineiros do quanto ainda estamos longe dos parâmetros de conformidade e integridade preconizados na legislação brasileira.

Prestar contas é encargo universal de todos os que — a qualquer título — gerenciem ou manejem recursos públicos, cujo ônus somente pode ser liberado mediante a comprovação plena de que os preços praticados e os fins alcançados estão consonantes com o ordenamento. Empresas e entidades do terceiro setor são tão corresponsáveis quanto o próprio Estado pela prova tempestiva de economicidade e integridade das despesas liquidadas em seu favor. Não cabe, pois, tergiversar quanto ao dever diuturno de explicitar custos que perfazem os preços praticados e ao dever de contraste dos resultados verificados em face das metas planejadas.

Para combatermos agendas meramente simbólicas de reforma orçamentária que prometem revisão periódica de gastos públicos, sem o exame diuturno da resolutividade e da economicidade da liquidação das despesas contratadas, precisamos refutar a noção estritamente formal e um tanto evasiva do controle da execução orçamentária.

Neste aniversário de 60 anos da Lei 4.320/1964, nossos votos minimalistas aspiram que sejam, de fato, cumpridos seus preceitos acerca do controle da efetiva entrega de resultados e da economicidade de cada ato de liquidação da despesa. Antes de novas e superpostas regras fiscais, apenas desejamos que sejam plenamente cumpridas as que já existem. Afinal, o desafio mais complexo e quase revolucionário no Brasil é o de resguardar o efetivo cumprimento da lei em vigor.

Autores

  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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