Justo Processo

Jurados negros: a identificação racial pode mudar o resultado do julgamento?

Autores

  • Mayara Tachy

    é defensora pública do Distrito Federal titular do Tribunal do Júri mestranda em Direito pela UnB pós-graduada em Direito Público e professora de Processo Penal e Direito Penal.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra e defensora pública do estado de Pernambuco.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

16 de março de 2024, 8h00

A seletividade penal no Brasil é central em discussões acadêmicas [1] e em precedentes jurisprudenciais dos principais tribunais. No momento atual de evolução das pesquisas, se torna fácil demonstrar que o nosso sistema de justiça criminal pune desproporcionalmente a população negra. Basta observar a disparidade nas estatísticas.

Segundo o IBGE [2], no ano de 2021, 43% da população brasileira se autodeclarou branca, enquanto 56,1% se autodeclararam preta ou parda. No que diz respeito ao sistema penitenciário, segundo o 16º Anuário de Segurança Pública de 2022, em 2021, a população carcerária era composta por 67,5% de pessoas negras, número que vem aumentando desde 2005, quando o percentual era de 58,4% [3], incremento a demonstrar o direcionamento da persecução penal a grupos racializados.

A condenação de réus negros é, portanto, mais frequente do que a de réus brancos. Já se adianta que discursos sobre a maior propensão criminal de determinados indivíduos foram praticamente superados na ciência, como a concepção lombrosiana de criminosos natos, que veio a ser apropriada por teorias eugênicas como justificação para comportamentos racistas.

A Criminologia Crítica evoluiu para perceber que as dinâmicas de encarceramento são permeadas pelo racismo estrutural que dirige nossas ações em sociedade, razão pela qual o Direito Penal se torna uma esfera de manutenção de privilégios. Zaffaroni [4] aponta que aqueles que são criminalizados não são necessariamente todos os que cometem crimes, mas sim aqueles que estão mais suscetíveis ao sistema penal devido às suas próprias circunstâncias individuais.

De acordo com Flauzina [5], a criminalização primária, com a elaboração de leis penais gerais, não é capaz de manter essa disparidade, a qual deve ser garantida nas ruas pelos agentes policiais nos processos de criminalização secundária, ao direcionar a atuação estatal para determinados crimes e grupos. Este ambiente é o epicentro da discriminação, não sujeito a uma fiscalização rigorosa e exercido de forma arbitrária pelos policiais em suas atividades cotidianas.

O Poder Judiciário é o destinatário dessas investigações permeadas de seletividade penal, chancelando, muitas vezes de forma inatencional, a atividade policial em espécie de cegueira deliberada. O que se buscou compreender é se a disparidade racial entre quem julga e quem é julgado pode influenciar os julgamentos.

O Censo dos Magistrados, realizado pelo CNJ, em 2023 indica que  62% dos juízes e 77% desembargadores são do sexo masculino. No quesito cor/etnia: 82,7% são brancos, 15,0% são pretos ou pardos, 1,3% são de origem asiática e apenas 0,3% se declararam indígenas. Há baixa diversidade racial no grupo de juízes togados, predominando homens brancos em sua composição.

Tribunal do Júri e o fator raça

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Embora o julgamento popular seja composto por pessoas do povo, o que deveria aproximar as figuras do julgador e do julgado, algumas pesquisas empíricas [6] demonstram que não há um vão tão grande como o dos magistrados. Porém, é possível identificar que o corpo de juízes populares não é tão representativo quanto a diversidade presente na sociedade.

O Código de Processo Penal determina que o juiz requisite listas de associações de classe, de bairro, entidades associativas e culturais, instituições de ensino em geral, universidades, sindicatos, repartições públicas e outros núcleos comunitários. Porém, na prática, não se observa  maior preocupação nos processos de seleção de jurados, que podem ser oriundos de quaisquer listas que o magistrado definir à sua discricionariedade. Em antiga pesquisa, Kant de Lima fez um escrutínio à lista de jurados dos quatro principais Tribunais do Júri do Rio de Janeiro, no período entre 1977 e 1983, e constatou que, na faixa aproximada de 7.000 nomes, haviam predominantemente professores, bancários e funcionários públicos. Concluiu ainda que a maioria tinha ensino superior, e alguns eram bacharéis em Direito. Por fim, relatou ainda que um determinado juiz, concomitantemente professor de uma Faculdade de Direito, durante um ano inteiro, pôs todos os alunos de uma de suas turmas na lista oficial de jurados [7].

A preocupação com o fator raça aumenta nos julgamentos populares em decorrência do sigilo das votações, em que a motivação das decisões proferidas pelos jurados não é revelada por proteção constitucional. Na dinâmica do julgamento livre, os discursos podem recorrer a elementos externos ao processo. Os jurados têm a liberdade de escolher qual argumento aceitar, podendo exercer sua indulgência, mas também permitindo que seus preconceitos influenciem sem a obrigação de explicar os fundamentos de sua convicção. A liberdade concedida às exposições não impede a referência a elementos que reforcem estereótipos e preconceitos, potencialmente resultando em julgamentos que reproduzem os padrões raciais presentes na sociedade, aumentando a probabilidade de condenação de réus negros em relação aos brancos.

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No julgamento popular pode ocorrer uma dicotomia de proteção à dignidade humana como já expressado em momento anterior:

“o sistema da íntima convicção, assim, pode ser favorável ao acusado, traduzido na plenitude de defesa, admitindo que argumentos metajurídicos possam formar a convicção dos julgadores. Pode, entretanto, ser um canal de reprodução de preconceitos, já que não há necessidade de indicar o suporte probatório utilizado para a escolha de uma das hipóteses possíveis, podendo recair exclusivamente no julgamento sobre a pessoa do acusado, camuflando uma espécie de direito penal do inimigo” [8].

Pesquisa empírica realizada pelo Ministério Público do Paraná [9] levantou, além do perfil dos jurados convocados a julgar, as motivações apontadas por eles para decidir contrariamente ou a favor dos acusados submetidos a julgamento. Iniciada em agosto de 2013 e concluída em fevereiro de 2014, classificaram-se os grupos de jurados de acordo com faixa etária, estado civil, número de participações em julgamentos, nível educacional e religião, além de coletar dados sobre as características dos acusados e das vítimas. Notavelmente, o fator raça não foi considerado na pesquisa, o que reforça a tese sobre a neutralidade racista na coleta de dados. Foram entrevistados 802 indivíduos. Os resultados indicaram que 65,64% dos jurados homens possuíam ensino superior, para 83,55% das mulheres, evidenciando uma inclinação para estratos sociais mais elevados e corroborando estudos anteriores sobre a elitização do corpo de jurados.

Em relação aos motivos que influenciam as decisões, cerca de 25% dos jurados foram impactados pelo fato de o acusado não possuir antecedentes criminais. No caso de acusados com histórico criminal de violência ou grave ameaça, aproximadamente 80% dos jurados afirmaram que isso afetou suas decisões. Essas tendências confirmam a hipótese de que a rotulação como criminoso retroalimentam o sistema penal com pessoas que já passaram por ele anteriormente, com impacto especial na população negra. Fatores como condições de renda, idade, boa aparência física, composição familiar, dentre outros elementos alheios aos fatos também foram identificados na pesquisa como relevantes para a decisão do caso concreto, ainda que nada tenham de relação com ele.

Números dos Estados Unidos

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Assim, não há como desconsiderar que a raça possa influenciar no julgamento. Para apurar esse marcador, todavia, não há pesquisas empíricas ou dados seguros disponíveis no sistema de justiça. Porém, duas pesquisas produzidas no Tribunal do Júri estadunidense apuraram a hipótese de formas distintas: uma pesquisa considerou casos reais submetidos a julgamento na Flórida e outra se baseou em júris simulados.

A primeira, conduzida pela Universidade de Duke [10], revelou que, nos julgamentos populares analisados por um período de dez anos em dois condados da Flórida, quando as listas de jurados são compostas exclusivamente por pessoas brancas, a taxa de condenação de réus negros é 16% maior do que a de réus brancos. De acordo com a pesquisa, a presença de pelo menos um jurado negro na lista geral tende a equilibrar essa disparidade.

A análise levou em conta as listas gerais de jurados, curiosamente, não o conselho de sentença formado para julgar o caso. Nesses julgamentos, quando não havia pessoas negras na lista geral, negros foram condenados em 81% dos casos e réus brancos em 66%. Ao incluir, pelo menos, um jurado negro em potencial, ainda que esse jurado não venha a ser selecionado para decidir a causa, as taxas de condenação se equiparam: 71% para réus brancos e 73% para réus negros.

Semelhante conclusão foi observada por Sommers [11], em júris simulados. Por meio de julgamentos simulados de um acusado negro, dividiu-se dois grupos: júris compostos apenas por jurados brancos e júris com composição racial diversificada. Nos grupos, metade foi submetido a questões pré-julgamento sobre racismo e a outra metade, não foi perguntado sobre raça.

É importante ressaltar que o júri popular nos Estados Unidos tem formatação distinta do brasileiro. Ali, há uma etapa chamada voir dire, em que é possível entrevistar os jurados em potencial para identificar vieses que podem influenciar o julgamento para além dos fatos. Além disso, os jurados deliberam, devendo chegar a uma decisão por unanimidade, sob pena de encerramento do julgamento sem deliberação, enquanto no Brasil vota-se por maioria.

Conclusão

A par dessas diferenças procedimentais relevantes, é possível aproveitar os resultados da pesquisa para concluir pela influência ou não da raça dos julgadores nos resultados de condenações. Foram realizadas consultas dos jurados acerca de suas decisões pré-deliberação, individualmente. Verificou-se nesse momento disparidade relevante: nos júris compostos apenas por jurados brancos, 50,5% votariam para condenar, enquanto nos grupos mais diversos, esse percentual caía para 30,7%. A  minimização de vieses possibilidade por meio da etapa de voir dire também impressiona: nos grupos em que perguntas sobre racismo foram feitas aos jurados, definindo a seleção do corpo julgador, a taxa de condenação pré-deliberação foi de 34,4%, enquanto no grupo para o qual essa pergunta não foi feita, 47,1% votariam para condenar.

Como é possível perceber, também nos julgamentos populares, a seletividade penal opera, cabendo aos estudiosos do Direito e aos seus operadores, de posse desse conhecimento, atuar ativamente para minimizar um direito penal do inimigo que opera silenciosamente no processo penal.

 


[1] O artigo se baseia na obra de TACHY, Mayara Lima. Réus negros, jurados brancos: a condenação da raça no tribunal do júri como decorrência da íntima convicção. Belo Horizonte: Editora D´Placido, 2023.

[2] Disponível em https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/25844-desigualdades-sociais-por-cor-ou-raca.html . Acesso em 13/03/2024. Acesso em 13/03/2024.

[3] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário de segurança pública. Ano 16, 2022, p. 388. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=15 . Acesso em 13/03/2024.

[4] ZAFFARONI. Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 268

[5] FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília. Brasília, p. 145. 2006, p. 73

[6] Vide BELLO, Giovanni Macedo. O julgamento pelos seus pares: uma análise ao perfil dos jurados atuantes nos julgamentos do Tribunal do Júri de Porto Alegre. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 91, ago 2011; BROCHADO NETO, Djalma Alvarez. Representatividade no Tribunal do Júri brasileiro: Críticas à seleção dos jurados e propostas à luz do modelo americano. Dissertação (Mestrado em DIREITO). Universidade Federal do Ceará: Fortaleza, 2016, p. 110; LOREA, Roberto Arriada. Os jurados “leigos”: uma antropologia do tribunal do júri. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Universidade Federal do Rio Grande do Sul: Porto Alegre, 2003; MPPR. Perfil dos Jurados nas Comarcas do Paraná. Disponível em: http://www.criminal.mppr.mp.br/arquivos/File/materialjuri/Perfil_dos_Jurados_nas_Comarcs_do_Parana.pdf. Acesso em 13/03/2024.; SOUZA, Thiago Hanney Medeiros de. Seleção dos Jurados no Tribunal do Júri segundo o Direito Brasileiro. Tese (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, p. 117, Porto Alegre, 2013; STRECK, Lênio Luiz. O Tribunal do Júri e os estereótipos: uma leitura interdisciplinar. Dissertação (Mestrado em Direito) – Centro de Ciências Jurídicas. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, p. 124, 1988.

[7] DELMAS-MARTY, Mereille (Org.) Processos penais da Europa. Tradução: Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 521.

[8] TACHY, Mayara Lima. Réus negros, jurados brancos: a condenação da raça no tribunal do júri como decorrência da íntima convicção. Belo Horizonte: Editora D´Placido, 2023, p. 138.

[9] MPPR. Perfil dos Jurados nas Comarcas do Paraná. Disponível em: http://www.criminal.mppr.mp.br/arquivos/File/materialjuri/Perfil_dos_Jurados_nas_Comarcs_do_Parana.pdf Acesso em 13/03/2024.

[10] HARTSOE, Steve. “Study: All-White Jury Pools Convict Black Defendants 16 Percent More Often Than Whites.” DukeToday. Duke University, 17 Apr. 2012. Web. Disponível em: https://today.duke.edu/2012/04/jurystudy. Acesso em 13/03/2024.

[11] SOMMERS, Samuel R. On Racial Diversity and Group Decision Making: Identifying Multiple Effects of Racial Composition on Jury Deliberations. Journal of Personality and Social Psychology, 2006, Vol. 90, No.4, 597–612. DOI: 10.1037/0022-3514.90.4.597. Disponível em https://www.apa.org/pubs/journals/releases/psp-904597.pdf . Acesso em 13/03/2024.

Autores

  • é defensora pública do Distrito Federal, graduada em Direito pelo Centro Universitário de Brasília e pós-graduada em Direito Público, mestre em Direito pela UnB, professora voluntária de Direito Penal na graduação da Universidade de Brasília e professora de Processo Penal e Direito Penal.

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa, mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros, professor de Processo Penal e autor de livros e artigos .

  • é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • é advogado criminalista, habilitado para atuar no Tribunal Penal Internacional em Haia, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da Pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

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