Opinião

A profissão de coach à luz do tipo penal de estelionato

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2 de maio de 2024, 7h12

Em 2019, a Ideia Legislativa nº 122.217 torna-se a Sugestão Legislativa nº 26. O enunciado da proposta era o seguinte: “Se tornada lei, não permitirá o charlatanismo de muitos autointitulados formados sem diploma válido. Não permitindo propagandas enganosas como: ‘Reprogramação do DNA’ e ‘Cura Quântica’. Desrespeitando o trabalho científico e metódico de terapeutas e outros profissionais das mais variadas áreas”.

Analisando o texto da proposta, já é possível questionar a necessidade dessa criminalização. Com efeito, há uma referência expressa ao não permitir o “charlatanismo”. O Código Penal, traz em seus artigos 282, 283 e 284, respectivamente, as figuras de exercício ilegal da medicina, charlatanismo e curandeirismo. Dessa forma, por exemplo, já estaria vedado ao coach, não sendo profissional da medicina, indicar tratamento para um mal físico que somente poderia ser prescrito por médico habilitado; não poderia o coach, ainda que com formação médica, anunciar tratamento que sabe não possuir qualquer efeito curativo [1]. As referidas figuras penais, ressalte-se, têm como objetivo tutelar a saúde pública. Além disso, a proposta faz referência à proibição da publicidade enganosa, a qual também já é proibida, inclusive penalmente [2].

Em 2023, o relatório elaborado pelo senador Paulo Paim deu parecer favorável ao arquivamento da proposta. O parecer levou em consideração três fatores principais: (1) a profissão de coach é muito ampla, abrangendo serviços de assistência intelectual, tais como desenvolvimento de técnicas para aprovação em concursos públicos; (2) não se pode ignorar a existência de bons profissionais coach, os quais seriam afetados pela criminalização; (3) a despeito da falta de regulamentação, já haveria limitações normativas para o exercício da profissão, tais como a proibição do exercício irregular da medicina.

Sendo assim, em tese, a criminalização total da profissão de coach violaria o princípio da proporcionalidade, notadamente sob a perspectiva da necessidade [3]. O que não quer dizer, esclareça-se, que o exercício da profissão de coach não possa configurar, em algumas hipóteses, práticas delitivas.

Raiz mercadológica

Nesse sentido, a proposta trazia expressa menção ao desrespeito aos “profissionais de diversas áreas”. Talvez isso seja um indicativo de que a preocupação com o coaching, para além da saúde pública, tenha uma raiz mercadológica. Nesse aspecto, não se deve olvidar que também os profissionais liberais – e não apenas os comerciantes e industriais – podem cometer atos de concorrência desleal, de modo que a profissão de coach deve ser exercida de modo a não ferir a liberdade de competição [4]. Todavia, ao se procurar atribuir ao coaching um aspecto fraudulento, para além do dano difuso aos “profissionais de diversas áreas” consistente no desvio da clientela, fica sugerido um prejuízo para os clientes dos maus profissionais, aqueles “formados sem diploma válido”, como dizia a proposta de criminalização.

‘Pesca de tolos’

De acordo com Akerlof e Shiller, um mercado competitivo cria incentivos para que se busque lucro até mesmo por meio da exploração de vulnerabilidades humanas. O mercado age para criar “necessidades” e, posteriormente, vender o que supre as necessidades criadas. E, em face da impossibilidade de o ser humano ser totalmente racional o tempo todo [5], as tentações do mercado costumam surtir efeitos. O mercado se equilibra por meio dessa “pesca de tolos” que tem como isca as fraquezas humanas [6]. Sendo o coaching uma atividade que transita entre as dimensões subjetivas e objetivas do indivíduo [7], é possível que alguns serviços de coaching sejam interpretados, por observadores externos, como explorações de vulnerabilidades humanas: o cliente seria o tolo que paga para suprir uma falsa necessidade, ou para suprir falsamente uma necessidade verdadeira.

Spacca

Neste contexto, coloca-se em questão: em que casos a venda do serviço de coaching, não representando qualquer risco para a saúde pública, poderia configurar uma exploração criminosa da credulidade alheia? Em outras palavras, quando o coaching pode caracterizar uma fraude penalmente relevante, isto é, um estelionato?

Criminalização do coach e autonomia do coachee

Para que se diga que um serviço de coaching consiste em um estelionato, é necessário que se identifique um engano típico. Não se trata de tarefa simples. Efetivamente, mesmo reconhecendo suas limitações, a doutrina dificilmente nega a relevância da distinção entre juízos fáticos e juízos valorativos, como forma de determinar o que é objetivamente falso para fins de engano típico [8]. O trabalho do coach, muitas vezes, pode tratar de questões puramente subjetivas, e, consequentemente, valorativas, o que, por si só, tornaria complexa, ou mesmo impossível, a afirmação de que há objetivamente uma mentira, uma falsidade acerca do que é prometido ao coachee.

Ademais, uma concepção puramente econômica de prejuízo eliminaria da noção de patrimônio a subjetividade de seu titular, na medida em que o dano seria compreendido a partir de uma racionalidade de mercado, a qual não comportaria, por exemplo, a legítima disposição patrimonial “irracional”. Dessa forma, deve-se reconhecer que o prejuízo patrimonial deve ter um aspecto subjetivo [9]. Entretanto, a existência de um componente subjetivo no prejuízo patrimonial não significa que qualquer frustração de finalidade de quem dispõe do próprio patrimônio possa configurar um dano ao bem jurídico tutelado, sob pena de se transformar o estelionato em um instrumento de tutela da liberdade de disposição patrimonial [10]. O que configura, de fato, o prejuízo é a frustração de finalidades (de disposição patrimonial) intersubjetivamente vinculantes, ou seja, as finalidades acordadas pelas partes, ainda que tais finalidades escapem à racionalidade econômico-mercadológica. A consequência dessa concepção de prejuízo para efeitos de criminalização do coach é evidente: a “vítima” não é, por si só, uma instância válida para estabelecer quais frustrações de finalidades de sua disposição patrimonial seriam suficientes para o reconhecimento do prejuízo típico, pois, repita-se, as finalidades devem ser firmadas intersubjetivamente; todavia, sendo o patrimônio uma potência que possibilita o agir do indivíduo na esfera econômica, o titular do patrimônio pode ser uma instância legítima para, a despeito de análises objetivas indicarem o contrário, determinar o não reconhecimento de uma disposição patrimonial como prejudicial [11].

Dessa maneira, pode-se concluir que, muitas vezes, uma tentativa de criminalização do coach implica a negação de autonomia do coachee. De fato, tratar o cliente como um “tolo”, como um enganado, pode significar a imposição de uma racionalidade econômica não necessariamente compartilhada pelo usuário do serviço.

 


 

[1] Cf. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. vol. IX. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1958, pp.152 e ss.

[2] FILOMENO, José Geraldo Brito. Das infrações penais. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e; FINK, Daniel Roberto; FILOMENO, José Geraldo Brito; NERY JÚNIOR, Nelson; DENARI, Zelmo. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Comentado pelos autores do anteprojeto. vol. I. 10.ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011, pp.726 e ss.

[3] Ver: WEIGEND, Thomas. Einleitung. In: CIRENER, Gabriele et al. (Hrsgb). Strafgesetzbuch. Leipziger Kommentar. Erster Band: Einleitung, §§ 1 bis 18. 13.ed. Berlin: De Gruyter, 2020, pp.6-7.

[4] Cf. DELMANTO, Celso. Crimes de concorrência desleal. São Paulo: José Bushatsky, 1975, pp.20-26.

[5] AKERLOF, George A.; SHILLER, Robert J. Animal spirits. How Human Psychology Drives the Economy, and Why It Matters for Global Capitalism. Princeton: Princeton University Press, 2009, passim.

[6] AKERLOF, George A.; SHILLER, Robert J. Phishing for Phools. The economics of manipulation and deception. Princeton: Princeton University Press, 2015, p.22.

[7] SECCO, Karen Ciaccio. A construção da identidade profissional do coach e a percepção da qualidade de vida no trabalho. Tese (Doutorado). Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade. Universidade de São Paulo: São Paulo, 2019, p.363.

[8] Cf. PASTOR MUÑOZ, Nuria. La determinación del engaño típico en el delito de estafa. Madrid: Marcial Pons, 2004, pp.129 e ss.

[9] Cf. TIEDEMANN, Klaus. §263. In: JÄHNKE, Burkhard; LAUFHÜTTE, Heinrich Wilhelm; ODERSKY, Walter (Hrsgb). Strafgesetzbuch. Leipziger Kommentar. Sechster Band: §§ 223 bis 263a. 11.ed. Berlin: De Gruyter, 2005, Rdn.177.

[10] GODINHO, Inês Fernandes; MAYER FUX, Laura. A burla como crime contra o patrimônio: superação de uma tautologia. Revista Portuguesa de Ciência Criminal. n. 2, v. 21, 2011, pp.245 e ss.

[11] Cf. MACRI JÚNIOR, José Roberto. O engano típico no estelionato. Belo Horizonte: D’Plácido, 2023, pp.148 e ss.

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