Diário de Classe

Funcionalismo penal e positivismo jurídico

Autor

  • Marcelo Augusto Rodrigues de Lemos

    é advogado criminalista doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e professor.

16 de março de 2024, 8h00

Uma questão perene que circunda qualquer discussão sobre Direito Penal está relacionada à sua finalidade. É possível convergir, com alguma segurança, de que a finalidade é a proteção de bens jurídicos. Esse consenso advém de uma contraposição da ciência penal alemã no segundo pós-guerra diante de uma ideia então vigente de que a finalidade do Direito Penal seria a de tutela de valores morais, ideológicos e religiosos etc [1]. Ocorre que nas teorias funcionalistas, sobretudo as de Roxin [2] e Jakobs [3], há uma conotação político-criminal bastante acentuada. Por isso, Roxin, quando publicou o seu “Kriminalpolitik und Strafrechtssystem” nos anos 70 do século passado, afirmou que de nada adiantaria uma linda teoria do delito se político-criminalmente equivocada [4].

O que aproxima as teses funcionalistas em suas diferentes matizes é esse verniz político-criminal. Evidentemente, existem diversas teorias classificadas como funcionalistas. Contudo, as que possuem certa proeminência na doutrina, por diferentes razões, são aquelas propostas por Roxin e Jakobs. O primeiro encampa o funcionalismo teleológico-racional e o segundo o funcionalismo sistêmico. Quando refiro que por diferentes razões estas duas teses auferem relevância na dogmática é porque a roxiniana é uma espécie de modelo soft e a de Jakobs, para quem a função do Direito Penal, ao contrário do que pensa Roxin, é o asseguramento da vigência da norma [5], é considerada uma proposta radical e, inclusive, recebe contundentes críticas a ponto de se afirmar que a sua teoria possui influência direta de Carl Schmitt e de um Hobbes “fascistizado” [6].

A proposta de Roxin, noutro turno, transporta a política-criminal para o interior da teoria do delito. O injusto é, assim, composto pela tipicidade, antijuridicidade e, em um terceiro escalão, a responsabilidade, cujo escopo está relacionado com a questão se deve (ou não) o autor ser punido sob uma perspectiva político-criminal. Para que se possa afirmar positivamente, deve-se avaliar a culpabilidade e a finalidade preventiva da pena, de modo que “o tipo estrutura-se a partir da finalidade político-criminal da pena em abstrato (prevenção geral); o injusto, a partir da função do Direito Penal de proteção de bens jurídicos, e a responsabilidade, a partir da finalidade político-criminal da pena a ser aplicada concretamente (prevenção geral e especial)” [7].

Aproximação do funcionalismo com o positivismo jurídico

O desenvolvimento destas teorias funcionais, sobretudo a de Roxin, passaram a ter grande aceitação na Europa Continental. O que nos parece que seja uma questão de fundamental importância é saber se essas teorias evoluíram com a teoria do direito ou se são consequências de compreensões sobre teorias do direito. E é nesse particular que se verifica uma aproximação do funcionalismo com o positivismo jurídico. Veja-se que o positivismo jurídico é um fenômeno que se assenta sobre três grandes teses: a) a tese das fontes sociais, que estabelece a validade das regras a partir de uma regra de reconhecimento que é produto de um convencionalismo [8], i.e. o direito posto por uma autoridade humana legitimada [9]; b) a tese da separabilidade entre o direito e a moral, o que equivale dizer que é possível cindir direito enquanto conceito e como um sistema de regras válidas de um juízo crítico moral [10] e; c) a tese da discricionariedade que está conectada com a ideia de que as autoridades objetivamente convencionadas possuem a liberdade para decidir casos em que a regra (o objeto de conhecimento limitado pela tese das fontes) não carrega consigo uma resposta a priori, o que pode ser feito inclusive com base em razões extrajurídicas [11].

O funcionalismo teleológico de Roxin, nesse sentido, confere uma importância singular aos fins político-criminais a ponto de orientar axiologicamente os rumos de um direito penal condizente com um Estado Democrático e Social de Direito [12]. Essa razão político-criminal, por consequência, é produto de um convencionalismo, o que a aproxima da tese das fontes. Quer dizer, quem irá decidir o que é e como deve ser a política-criminal de determinado Estado é aquele que, por convenção, é dotado de autoridade para isso. Mais: esse estado de coisas também resulta na relação contigencial entre direito e moral, fundamentalmente porque os critérios morais podem ser inseridos na regra de reconhecimento.

Para ser mais preciso, se os fins do Direito Penal são aqueles vinculados à política-criminal, é possível perceber que essas regras funcionais podem (ou não), por intermédio de uma convenção, incluir critérios morais. Como exemplo, o Código Penal brasileiro impõe uma pena de reclusão de 02 a 06 anos para aquele que contrai matrimônio mesmo sendo casado (artigo 235, CP). A tese roxiniana parte de um modelo de contrato social que aduz que, no espectro de um Estado Democrático de Direito, o cidadão repassa ao Estado a tarefa de garantir a convivência livre e pacífica e é nesse momento que afirma que não incumbe a este tutelar questões morais [13].

O que nos parece seja também problemático, contudo, é a vagueza do conceito de política-criminal adotado pelo funcionalismo e de como ele pode ser controlado e fiscalizado por elementos a ele externos. É dizer: como não atender aos anseios momentâneos de uma sociedade em tempos de crise se é ela mesma quem guia o legislador e a função do Direito Penal? Como será possível evitar uma radicalização do sistema jurídico-penal quando, em uma legislatura, o parlamento é composto por políticos autoritários e avessos às políticas de direitos humanos? Isso é algo a se pensar, principalmente quando inserimos essa discussão naquilo que Streck denomina como “sociedade de modernidade tardia”[14] e na crítica que Zaffaroni faz ao transplante de teorias da Europa Continental para países latino-americanos[15].

Quer dizer, assim, que o funcionalismo penal adere a uma deterioração da autonomia do direito, característica essa que é marcante do sujeito moderno assujeitador contra o qual a crítica hermenêutica do direito se insurge. Nesse ponto, são necessários constrangimentos epistemológicos que é um mecanismo que tem como primado combater o problema central do sujeito da modernidade que reside, justamente, na indiferença quanto a qualquer fator externo. É papel da boa dogmática derrotar esse sujeito moderno [16].

Tese da discricionariedade

Ademais, esse verniz político-criminal que caracteriza as teorias funcionalistas, na medida em que depende de um fundamento axiológico que é produto de uma convenção, também dialoga com a tese da discricionariedade. Isso porque, se tudo é projetado para a finalidade de atender aos anseios de uma política-criminal determinada que, na perspectiva funcionalista, carece de maiores esclarecimentos quanto a um distanciamento de seu conceito usual de espaço de elaborações de leis penais[17], então os fatores que irão ditar os rumos do direito penal estão ligados a uma política-criminal que pode, ao fim e ao cabo, ser constituída por dados extrajurídicos. Não se pode tomar conclusão outra, senão a de que o funcionalismo-sistêmico também está fundado em uma teoria do direito de base positivista, na medida em que Jakobs desidrata a função do Direito Penal ao conferir maior rigor às expectativas normativas em detrimento do conteúdo das normas [18].

Portanto, admitindo ou não, nos parece que é incontroversa a influência do positivismo jurídico nas propostas funcionalistas. E como há essa influência, todos os problemas que surgem a partir da predominância de um paradigma positivista se projetam sobre as teorias funcionais, especialmente o estiolamento da autonomia do direito. Por isso, é crucial produzir uma dogmática penal que esteja em constante diálogo com a teoria do direito.


[1] DAVID, Décio Franco. O princípio da ofensividade nos julgados do Supremo Tribunal Federal: uma análise do (des)conhecimento da defesa de bens jurídicos enquanto princípio formador do direito penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 115, 2015.

[2] ROXIN, Claus. Política criminal y sistema del derecho penal. Tradução e introdução de Francisco Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, 1972.

[3] JAKOBS, Gunther ¿Derecho penal del enemigo? Un estudio acerca de los presupuestos de la juridicidad., trad. de M. Cancio, en Cancio Meliá/Gómez Jara Díez (ed.), Derecho Penal del enemigo. El discurso penal de la exclusión, Montevideo-Buenos Aires: Edisofer, p. 93-116, 2006.

[4] ROXIN, Claus, op. cit.

[5] JAKOBS, Gunther, op. cit..

[6] CONTRERAS, Guillermo Portilla. Los excesos de formalismo jurídico neofuncionalista en el normativismo del derecho penal. Revista General de Derecho Penal, Espanha, n. 4, 2005.

[7] SCALCON, Raquel Lima. Apontamentos críticos acerca do funcionalismo penal de Claus Roxin. In: II Congresso Internacional de Ciências Criminais – Criminologia e Sistemas Jurídico-Penais Contemporâneos. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2011, v. II, p. 174-192.

[8] MORBACH, Gilberto. Entre positivismo e interpretativismo, a terceira via de Waldron. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.

[9] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: cinquenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento/Casa do Direito, 2020.

[10] MORBACH, op. cit.

[11] MARANHÃO, Juliano Souza de Albuquerque. Positivismo Jurídico Lógico-Inclusivo. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 39.

[12] D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade em direito penal: escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.

[13] ROXIN, Claus. Fundamentos político-criminais e dogmáticos do direito penal. Tradução de Alaor Leite. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 112, p. 33-39, 2015.

[14] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário senso incomum: mapeando as perplexidades do Direito. São Paulo: Editora Dialética, 2023.

[15] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Tradução de Vania Romano Pedrosa e Amiz Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

[16] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário senso incomum: mapeando as perplexidades do Direito. São Paulo: Editora Dialética, 2023.

[17] D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade em direito penal: escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.

[18] CRESPO, Eduardo Demetrio. Crítica al funcionalismo normativista. Revista de derecho penal y criminologia, 3. Época, n. 3, p. 13-26, 2010.

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