Opinião

Ações afirmativas para promoção da igualdade racial no ensino jurídico

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10 de maio de 2024, 18h30

Gostaria de compartilhar algumas reflexões sobre ações afirmativas no ensino superior para a promoção da igualdade racial, notadamente no que se refere aos cursos de Direito e o mercado de trabalho jurídico no Brasil, no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo.

Jornal da USP

Nesse sentido, inicio este artigo informando que tenho proximidade com as teorias neomarxistas que entendem que o capital precisa cada vez mais daquilo que alguns denominam de produção biopolítica, noção desenvolvida a partir daquilo que Karl Marx denominava de “general intelect”, desenvolvido nos Grundrisse articulada às ideias desenvolvidas por Michel Foucault nas aulas que foram publicadas sob os títulos de Segurança, Território, População e o Nascimento da Biopolítica. Mas, para desenvolver meu argumento incluo as aulas ministradas por Foucault publicadas sob o título Em Defesa da Sociedade.

Nesse sentido, considero que o capitalismo tem absorvido diferentes expressões do trabalho e atualizado antigas formas de exploração das forças produtivas, desde técnicas de controle pautadas no racismo e suas diferentes manifestações. Isso porque, no Brasil, a exploração das forças produtivas foi estabelecida, inicialmente, pelo pacto colonial, através do colonialismo baseado no racismo, produzindo uma sociedade profundamente hierarquizada e racista nas suas relações interpessoais e institucionais. Esses fatos impactaram a produção das diferentes expressões da nossa cultura, espraiando-se pelos âmbitos político, jurídico e administrativo.

Não obstante o enfrentamento realizado pelos movimentos sociais, constituídos pelas denominadas minorias políticas, em face desse legado, notadamente pelos diferentes segmentos do movimento negro brasileiro, o fato é que, no que se refere à promoção da igualdade racial no Brasil, algumas questões precisam ser discutidas, notadamente, em relação à inserção dos egressos das faculdades de Direito públicas e privadas brasileiras.

Isso porque, no que se refere ao Direito, nosso sistema de Justiça e suas instituições ainda permanecem refratárias, desde o meu ponto de vista, à inclusão da juventude negra no mercado de trabalho jurídico, tendo em vista o ingresso desse segmento da população do país, que vem ocorrendo de maneira mais expressiva desde os anos 2000, com a adoção paulatina de ações afirmativas no ensino superior para a promoção da igualdade racial.

Essa crescente inserção de jovens negras e negros nas faculdades de Direito públicas e privadas, na graduação e, mais recentemente, na pós-graduação, impõe uma discussão sobre a produção capitalista, o mercado de trabalho, a produção de subjetividade no processo de desenvolvimento das forças produtivas necessárias à acumulação capitalista. Então, apesar de sabermos que as distintas correntes teóricas da Economia produziram diferentes formas de enfrentar essas questões, ao final e ao cabo, é de capitalismo que estamos falando.

‘Causa do atraso nacional’

Tal afirmação se deve ao fato de que o planejamento econômico no Brasil passou por diferentes influências teóricas ao longo de sua história. Mas, ao longo do período republicano, a inserção da população negra na sociedade de classes, que se instaurou com a abolição jurídica da utilização do trabalho de escravizados africanos e indígenas e seus descendentes, esteve articulada a discursos que consideravam esses grupos racializados enquanto problemas sociais a serem enfrentados, tal como pesquisado por Florestan Fernandes e publicado no livro A Integração do Negro na Sociedade de Classes, e por Clóvis Moura, em livros como Brasil: as Raízes do Protesto Negro.

No que se refere à população negra, o “negro” foi visto durante muito tempo como um problema grave para o desenvolvimento nacional, principalmente após a abolição formal da escravidão. E tal afirmação pode ser verificada em obras de Caio Prado Júnior, tais como Formação do Brasil Contemporâneo e História Econômica do Brasil e de Celso Furtado, no livro Formação Econômica do Brasil. Ou seja, tanto em uma perspectiva marxista quanto na desenvolvimentista, a população negra era considerada causa do atraso nacional no que se refere ao desenvolvimento econômico. Esse aspecto é tão latente que Lélia Gonzalez, no texto Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira, discute abertamente, por exemplo, as posições teórico-políticas de Caio Prado Júnior.

Produção biopolítica

Apesar da denúncia realizada por Lélia Gonzalez, na década de 1980, a questão ganha novos contornos. Isso porque, na contemporaneidade, dissemos que a acumulação capitalista é pautada na produção biopolítica. Isso significa que o trabalho imaterial, que era secundário na teoria marxista, adquiriu centralidade cada vez maior ao longo dos anos 2000, nas obras do filósofo e sociólogo italiano neomarxista Maurício Lazaratto, notadamente no livro Trabalho Imaterial, do economista suíço Christian Marazzi, notadamente nos livros O Lugar das Meias e Capital and Affects: The Politics of the Language Economy, ou ainda do filósofo austro-francês André Gorz, em livros como L’Immatériel – Connaissances, Valeur et Capital e Métamorphoses du Travail. Quête du Sens – Critique de la Raison Économique.

E em que consiste, então, a produção biopolítica? De maneira, bastante simples, consiste na exploração de todo o tempo de vida, não mais havendo separação entre tempo de trabalho e tempo livre; na superexploração dos trabalhos de cuidado e do trabalho intelectual, sem abandonar as antigas formas de expropriação no processo de produção de mais-valia. A principal característica consiste, então, na centralidade da produção de todo o tipo de conhecimento oriundo, seja na esfera da produção ou da reprodução social, no processo de acumulação capitalista através da hiperexploração da mais-valia produzida pela sociedade.

Assim, a população negra, que historicamente, teve sua força de trabalho superexplorada através do modo de produção capitalista baseada no trabalho de escravizados, e ao longo do período republicano foi alocada nos trabalhos de menor prestígio e rendimentos pecuniários, tais como trabalhos manuais e serviços domésticos, há pelos menos quase três décadas começa a ocupar lugares sociais desejados por muitos e ocupados por poucos, quais sejam, as profissões que possibilitam mais mobilidade social e prestígio social, notadamente, o trabalho intelectual.

Ações afirmativas

E, no que se refere ao Direito, dados do Censo realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em conjunto com Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), publicado no ano de 2020, em sua quarta edição, sob o título O Exame de Ordem em Números, demonstrou o crescimento exponencial do número de vagas com a autorização de cursos de Direito em instituições de ensino brasileiras públicas e privadas, não foi acompanhada de aprovação proporcional de jovens negras e negros na prova da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Talvez se possa objetar que essa parcela de egressos dos cursos de Direito negros e negros não possua a capacidade necessária para a aprovação. Mas estudos têm demonstrado que as diferenças entre o rendimento acadêmico entre cotistas e não-cotistas é quase inexistente, tal como pode ser observado no estudo “Ações Afirmativas no Ensino Superior Brasileiro”, elaborado pelo Centro de Estudos da Metrópole, ligado à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Então, o que deve ser discutido é o modelo do Exame da OAB e adoção de ações afirmativas que possibilitem uma aprovação que garanta a equidade no processo de aferição de conhecimentos para o exercício de carreiras jurídicas no Brasil. E, no que se refere a outras carreiras jurídicas que não exigem a aprovação no exame da OAB, ações afirmativas para a inclusão das egressas negras e dos egressos negros das faculdades de Direito do país no mercado de trabalho jurídico brasileiro.

Dessa forma, indago: quais são as medidas que as agências de fomento, os órgãos de classe, os conselhos e associações da área jurídica têm desenvolvido para garantir a inclusão no mercado de trabalho jurídico do Brasil? Essa é uma questão urgente e que, desde o meu ponto de vista, não tem sido enfrentada seriamente. Sendo assim, essas breves e iniciais reflexões convidam a intelectualidade jurídica ao debate, notadamente, constitucionalistas e ativistas dos direitos humanos, para pensar ações concretas para enfrentar essa questão. Recentemente, o governo brasileiro retomou o Programa de Desenvolvimento Acadêmico Abdias Nascimento, em sua segunda edição. No entanto, do total de projetos aprovados, apenas um foi oriundo da área jurídica.

Em um contexto em que as DCNs dispõem sobre a necessidade de letramento digital, ensino de cultura africana e afro-brasileira de maneira transversal, ênfase no ensino de Direito Financeiro, nos cursos de bacharelado em Direito, dentre outros temas relevantes, talvez seja o momento oportuno para pensar sobre a inclusão das egressas negras e dos egressos negros das faculdades de Direito brasileiras públicas e privadas no mercado de trabalho jurídico, principalmente neste momento de crise do Direito do Trabalho e de seu sistema de garantias processuais, notadamente após a reforma trabalhista instituída no ano de 2017.

Não se trata de protecionismo, tampouco de estatuir privilégios para a população negra. Trata-se de garantir a fruição de um direito fundamental, que é o direito ao trabalho. O direito de trabalhar em condições dignas. Não se trata apenas de trabalho decente, pois este é centrado principalmente no emprego. Mas, de refletir seriamente, as consequências práticas de democratização do ensino jurídico para a população negra que está em curso no Brasil. Trata-se de possibilitar a equidade por meio de uma real promoção da igualdade racial no país. E convoco a intelectualidade jurídica brasileira a refletir seriamente sobre as questões levantadas neste texto. Eis o meu convite.

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