Diário de Classe

Em tempos de ChatGPT, fujam para a literatura

Autor

  • Josenilson Rodrigues

    é mestrando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Piauí (Uespi) membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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11 de maio de 2024, 8h00

O oráculo hi-tech e o império do Saber Nenhum

A “pós-modernidade” é marcada pela velocidade e massificação da (des)informação. Pela aposta na tecnologia para enfrentar os problemas que exsurgem na sociedade. Um mundo líquido, nos termos de Zygmunt Bauman [1]. Um mundo asfixiado pela (des)informação em massa, mas sem conhecimento e, tampouco, sabedoria.

O conhecimento resta como uma pequena ilha cercada pela imensidão do mar da ignorância. Em suas águas pantanosas, como se não fossem o suficiente, ainda navegam os néscios 4.0, empunhando facilidades e simplificações fabricadas por inteligência artificial (IA) contra aqueles que ousam se angustiar com as complexidades do mundo.

A raça, cada vez mais rara, que habita a pequena ilha da episteme, tem o árduo fardo de protegê-la contra o avanços das águas obnubiladas do senso comum e de seus navegantes que empunham o “saber” pronto e vendem a simplificação da simplificação. Além disso, também precisam resistir ao novo e sedutor canto das sereias que faz ecoar a mensagem segundo a qual aqueles que não se curvarem ao oráculo hi-tech ficarão para trás.

Na era das IAs generativas, bastam alguns comandos para se ter acesso a uma imensidão de informações prontas para serem usadas: petições, artigos, resenhas, resumos… etc. Não podemos negar, obviamente, as mudanças sobre como compreender o mundo impostas pelo avanço tecnológico das IAs. Do mesmo modo que não podemos fechar os olhos para os benefícios proporcionados pela tecnologia, mormente na otimização do labor diário do jurista.

O que devemos esclarecer e alertar, como apontado por Leonardo Longe do Nascimento [2], é sobre a impossibilidade do ser humano ser substituído pela IA, pois a tecnologia não é a solução para todas as nossas dores. No tocante aos problemas do Direito, é ingênuo acreditar que podem ser sanados somente com o socorro à técnica. Sua complexidade não pode ser aprisionada no que é dado pela tecnologia, pois, para além disso, faz-se necessário considerar o elemento epistemológico, e por tanto, genuinamente humano, do Direito e as complexidades inerentes a um saber prático [3]. Nesse sentido acentua Lenio Streck:

“Há um aspecto do cognitivo humano que não pode ser afastado de qualquer problema humanístico como o Direito. Apenas reunir cada vez mais informação não implica a melhoria do conhecimento em Direito, das decisões judiciais ou da efetiva análise dos argumentos bradados pelos advogados. Afinal, converter informação em conhecimento ou sabedoria demanda a atuação de um excelente professor de carne e osso.

A democratização da informação pela tecnologia não resulta necessariamente na democratização do conhecimento. Reforço: não existe intelectual bronzeado (é uma metáfora) e Direito é coisa séria.

Em que pese o ser humano insista em tentar delegar sua humanidade às máquinas, devemos ter em mente que isso é impossível e que devemos ser mestres das nossas criações. Existe algo que elas não podem nos tirar. Surpreendente, parecemos insistir em procurar maneiras de lhes entregar o elemento de humanidade” [4].

A crítica do professor Lenio, como se nota, não diz respeito à utilização da IA, mas ao seu uso inconsequente. Esse é um problema que se alastra como um câncer. Vivenciamos, como denunciando por Lenio Streck, um rencantamento do mundo e do Direito sob a égide de uma algocracia que nos torna reféns de respostas prontas pela IA, que passa a operar como oráculo [5]. Temos a volta ao mito do dado e passamos a nos acovardar diante das angústias existenciais inerentes a nossa condição humana. Em ato de covardia e irresponsabilidade epistêmica, passamos a delegar a solução dos nossos problemas ao oráculo hi-tech e a nos submetermos ao jugo da algocracia.

No Instagram, um expert em inteligência artificial, com mais de um milhão de seguidores, promete fazer com que você produza 10x mais, trabalhando 10x menos! (sic).  Em vídeos publicados em seu perfil, o especialista em IA fala sobre como fazer trabalho de conclusão de curso (TCC) usando o ChatGPT e como usar outra IA para disfarçar (sic), como responder provas online e aprender qualquer coisa rápido (sic) usando IAs. Um dos vídeos conta com mais de 17 milhões de reproduções.

Tempos sobrinhos para a produção do conhecimento e seus paladinos, essa espécie em extinção sufocada pelas legiões de néscios. Vivemos sob a égide do império do Saber Nenhum, agora conformado pelo regime da algocracia.

“(…)vivemos esta era do anti-intelectualismo ou do Know Nothing (o Saber Nenhum) da distopia de MacIntyre. Há bons autores que já trata(ra)m disso. Gosto muito da ‘pirâmide’ (o epíteto é meu) de T.S. Eliot: informação não é conhecimento, que não é saber, e que não é sabedoria. Ou, sendo-lhe mais fiel: Onde está a vida que perdemos no viver? Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos na informação?

Na Era da (des)Informação em que vivemos, praticamente todos, com click, têm acesso a um mundo que vem ‘dado’, à disposição de qualquer tapado. Mas, então, por que existem tantos néscios vagando feito Walking dead pelas ruas e faculdades? Simples: porque é necessário transformar a informação em conhecimento. E, com mais esforço, vem o saber. E a sabedoria pode ser tudo isso transformado em vivência. Por isso a ‘pirâmide’ tem a base tão extensa, lotada de gente (des)informada pelo mundo das redes. Paradoxo: tanta informação e tanta ignorância.

No Direito, vivemos a era da facilitação, mastigação, tuitização e resumização de conteúdos. Memes. Macetes. Decorebas. Burrice virou coisa fashion. Concursos recheados de pegadinhas. E gente que ‘ensina’ Direito sem qualificação. Repetem informações. Que, paradoxalmente, os alunos podem pegar… na internet. Círculo viciosíssimo” [6].

O que se coloca aqui, assim como indagado por Luã Jung, é se o Direito e as demais práticas institucionais humanas estão inexoravelmente rendidos e esgotados pelo inevitável (e perigoso) desenvolvimento da tecnologia? Ou, pelo contrário, poderíamos afirmar que as dúvidas jurídicas, políticas e morais que o alto desenvolvimento técnico suscita devem nos fazer retomar a reflexão crítica a partir de disciplinas humanas como a filosofia e, para a nossa presente finalidade, a literatura [7]? Afinal, pode a literatura servir de espaço privilegiado de preservação da dimensão criativa do imaginário jurídico e de ampliação do horizonte de compreensão dos juristas?

O potencial do Direito e literatura face à colonização do imaginário jurídico pela IA

Lenio Streck trata o ensino jurídico como o paciente zero da crise no Direito. Existe uma cultura baseada em manuais de duvidosa cientificidade que acaba por formar um imaginário que simplifica o ensino jurídico e o resume ao elemento técnico do Direito, com a construção de standards e lugares comuns desconectados do cotidiano da sociedade [8]. O ensino jurídico é limitado pelo senso comum teórico, que, por conseguinte, acaba por limitar as possibilidades interpretativas do jurista [9].

O Direito brasileiro é permeado por um pensamento coletivo massificado, um  imaginário  acrítico  e  técnico,  que  molda  os  discursos  predominantes  na cotidianidade. Trata-se  de  um  modo  de  reproduzir  o  direito,  principalmente na perspectiva epistemológica, que reduz o conhecimento a certas verdades jurídicas  consagradas [10]. Esse saber acrítico é potencializado pelo uso inadequado das IAs, o senso comum teórico agora é alimentado por inputs e outputs. Estamos diante da colonização do imaginário jurídico pela IA. Despicienda a consulta aos manuais, melhor que isso é obter textos, artigos, petições, resumos e quejandos prontos por uma inteligência artificial generativa.

Como destacam Rennan Gardoni e Sérgio Staut Jr., a modernidade jurídica teve como uma de suas pretensões afastar a imaginação do discurso jurídico. A busca pela racionalidade científica, presente principalmente no positivismo (científico), culminou na produção de um saber que nega a presença da imaginação na construção do conhecimento jurídico. Conhecer é, para essa linha discursiva, descrever, e não criar [11]. Agora, em tempos de ChatGPT e de colonização do imaginário jurídico pela IA, essa dimensão crítica e criativa é castrada não mais pela busca de uma racionalidade científica, mas, pior ainda, pela busca de respostas prontas oferecidas por oráculo hi-tech.

A literatura pode servir como condição de possibilidade para a construção de um imaginário crítico e que fomente as possibilidades interpretativas dos juristas sem, com isso, deixar a cientificidade de lado. Sobretudo diante do paradigma da modernidade jurídica, agora alimentado pela IA. Como observam André Karam Trindade e Luísa Giuliani Bernsts, os estudos em Direito e literatura são caracterizados por em contraposição à dogmática jurídica um viés crítico e subversivo, o que não retira seu caráter científico [12].

A literatura deve ser vista como mais do que uma ficção que dissimula a realidade, pois uma das funções da literatura como qualquer outra arte é exercer esse papel subversivo. Daí sua utilidade ao possibilitar reflexões e problematizações sobre questões sociais e concepções de mundo que já se encontram cristalizadas na cultura, bem como para desconstruir ideologias presentes em discursos hegemônicos e para revolver sedimentações presentes no senso comum teórico dos juristas [13].

A partir da literatura encontramos as condições para ampliar o nosso horizonte de compreensão, bem como fomento para refletir acerca de problemas jurídicos e sociais e, ao fim e ao cabo, aprimoramos nossa formação jurídica e cívica [14]. O estudo do Direito por meio da literatura fornece condições de possibilidade para que seja feita uma revisão crítica dos elementos da Teoria do Direito [15].

Como destaca o professor Lenio Streck, a literatura pode humanizar o Direito, a literatura é existencial. Abrimos um novo mundo quando trabalhamos, em conjunto, o direito e a literatura [16]. Ela ajuda a “existencializar o direito”: Pois o direito trata dessa nossa relação com o mundo, com as coisas. Democracia, direitos sociais, cidadania: isso ocorre como uma conquista intermediada. Literatura faz intermediação existencial [17]. Luísa Giuliani Bernsts e Bianca Roso, são categóricas ao anunciarem que literatura pode (nos) salvar (d)os juristas (sic), na medida em que as narrativas literárias nos permitem apreender as tensões que marcam a dinâmica social do Direito e a (re)humanizá-lo [18].

É necessário aceitar o bálsamo: uma dica para iniciar a profilaxia

A metáfora bíblica do bálsamo de Gileade foi utilizada a fim de representar a verdadeira cura que foi rejeitada pelo povo de Israel. O bálsamo de Gileade tinha propriedades medicinais e foi utilizado pelos israelitas na tentativa de evitar a destruição causada pelo pecado. Ocorre que, segundo a metáfora bíblica, somente Deus era o verdadeiro bálsamo capaz de curar o espírito.

Não podemos curar nossas dores existenciais com falsos bálsamos, com simplificações e respostas prontas. Precisamos assumir que o verdadeiro bálsamo é o conhecimento. E o conhecimento não é dado. Precisamos encarar nossa angústia existencial sem nos tornarmos IAdependentes. Indico, como início do processo profilático contra a IAdependência [19], o programa Direito & Literatura (disponível aqui) e as obras lá analisadas. São centenas de episódios do verdadeiro bálsamo. É salutar. É gratuito.

A água pantanosa da ignorância endêmica começa a engolir a pequena ilha de episteme. Os néscios 4.0 começam a aportar em suas margens, uma verdadeira legião com as bandeiras do império do Saber Nenhum. Bradam imparavelmente a boa-nova sobre um oráculo hi-tech e pregam a algocracia. Tentam seduzir os últimos sobreviventes da ilha com promessas de facilitações e respostas prontas. Não precisam mais se angustiar! Mas os sobreviventes ainda podem fugir para o cume da única montanha da ilha, lá ainda cresce do bálsamo do conhecimento.

Em tempos de colonização do imaginário jurídico pelas IAs e de castração das capacidades interpretativas pelo seu uso inconsequente, a literatura pode servir como bálsamo e locus privilegiado de preservação do imaginário jurídico, de sua dimensão criativa e de ampliação do horizonte de compreensão dos juristas.

 


[1] BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

[2] NASCIMENTO, Leonardo Longe do.  Encontramos um novo oráculo, é o fim de toda angústia. Consultor Jurídico. 17 de junho de 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jun-17/diario-classe-encontramos-oraculo-fim-toda-angustia acesso em: 01 de mai. de 2024.

[3] STRECK, Lenio Luiz. ENSINAMOS AO ROBÔ COMO JULGAR! E já não importam mais Kelsen nem Hart. In: Anderson Vichinkeski Teixeira,Lenio Luiz Streck, Leonel Severo Rocha (Orgs). Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica: Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos : Nº 19.– Blumenau, SC: Dom Modesto, 2023, p. 208.

[4] Ibid., págs. 208-209

[5] Ibid.

[6] STRECK, Lenio. O Saber Nenhum, os textões, as letrinhas… e a crise do Direito. Consultor Jurídico. 9 de janeiro de 2020, 8h00. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-jan-09/senso-incomum-saber-nenhum-textoes-letrinhas-crise-direito/ Acesso em: 01 de mai. de 2024.

[7] JUNG, Luã. Discurso jurídico entre dados e narrativas. Consultor Jurídico. 16 de setembro de 2023, 13h18. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-set-16/discurso-juridico-entre-dados-narrativas/  acesso em: 01 de mai. de 2024.

[8] STRECK, Lenio Luiz. Compreender direito – hermenêutica. 1.ed. – São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019.

[9] STRECK, L. L. Hermenêutica e ensino jurídico em terrae brasilis. Revista da Faculdade de Direito UFPR, v. 46, 2007.

[10] STRECK, Lenio Luiz et al. “Hermenêutica constitucional” e senso comum teórico dos juristas: O exemplo privilegiado de uma aula na TV. Revista Brasileira de Direitos Fundamentais & Justiça, v. 6, n. 19, p. 237-261, 2012.

[11] GARDONI, Rennan Klingelfus; STAUT JR, Sérgio Said. O beato rábula: traços de um imaginário jurídico no Arraial de Canudos. Revista Direito e Práxis, v. 11, p. 1756-1782, 2020.

[12] TRINDADE, André Karam; BERNSTS, Luísa Giuliani. O estudo do direito e literatura no Brasil: surgimento, evolução e expansão. Anamorphosis: Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 3, n. 1, p. 225-248, 2017.

[13] KARAM, Henriete; ALCÂNTARA, Guilherme Gonçalves. História, direito e literatura: uma triangulação em prol do Constitucionalismo. Revista Opinião Jurídica (Fortaleza), v. 17, n. 24, p. 204-223, 2019.

[14] KARAM, Henriete. Questões teóricas e metodológicas do direito na literatura: um percurso analítico-interpretativo a partir do conto Suje-se gordo!, de Machado de Assis. Revista Direito GV, v. 13, p. 827-865, 2017.

[15] TRINDADE, André Karam; BERNSTS, Luísa Giuliani. Discricionariedade judicial na literatura: lições de direito em Gargantua e Pantagruel, de François Rabelais. Revista Juridica, v. 4, n. 49, p. 231-254, 2017.

[16] STRECK, Lenio Luiz; TRINDADE, André Karam Trindade (Orgs.). Direito e literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade. São Paulo: Atlas, 2013.

[17] STRECK, Lenio Luiz; KARAM, Henriete. A literatura ajuda a existencializar o direito. Anamorphosis: Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 4, n. 2, 2018. p. 617

[18] BERNSTS, Luísa Giuliani; ROSO, Bianca. A literatura pode (nos) salvar (d)os juristas! Consultor Jurídico. 14 de outubro de 2023, 8h00, Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-out-14/diario-classe-literatura-salvar-juristas/ acesso em: 01 de mai. de 2024.

[19] Termo criado pelo professor Lenio Streck para representar a dependência que as pessoas estão desenvolvendo em razão da aposta em respostas prontas por IA para a solução de problemas.

Autores

  • é bolsista Capes/Proex, mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Piauí (Uespi) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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