Opinião

Efeito suspensivo dos embargos de declaração: nem tudo é como parece

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15 de março de 2024, 13h13

Nunca consegui conceber que a interposição de embargos de declaração não suspendesse os efeitos da decisão recorrida.

Ora, como se vai autorizar a irradiação de efeitos de um ato cuja compreensão ainda não se esclareceu definitivamente.

O que chama a atenção são os motivos intrínsecos que permitem, racionalmente, que uma ordem judicial modifique desde logo a realidade externa ao processo, sabendo-se que o duplo grau de jurisdição conduz, no âmago de sua estrutura vinculante, o princípio da proibição de arbítrio, isto é, a presunção de falibilidade humana e a vedação da irrazoabilidade jurisdicional (artigo 5º, LIV, CF/88), o que justifica até mesmo a existência da faculdade de recorrer (artigo 5º, LV, CF/88).

Outro fator relevante é a própria titularidade da jurisdição que determina regressem ao órgão prolator a responsabilidade pela criação e revisão decisórias de mérito (artigo 5º, XXXVII e LIII, CF/88), o que deve ser levado em conta para determinar sobre a liberação dos efeitos sentenciais da decisão contestada por meio de embargos de declaração.

Embargos de declaração e o duplo grau de jurisdição

Recorda-se, então, que definitividade executória depende, via de regra, de revisão recursal pela concretização do duplo grau de jurisdição, ambiente do necessário controle que vincula o poder decisório aos princípios republicamos da legalidade e do Estado de Direito (artigo 5º, caput, CF/88), bem como do acesso à Justiça (artigo 5º, XXXV, CF/88), este que seria obstado pelo menoscabo de direitos atropelados e ignorados pela execução imediata da decisão embargada, por vezes ainda inquinada de erros.

Afinal, também os embargos de declaração são previstos em lei (artigo 494, II, CPC), deles não se podendo dizer estarem excluídos da garantia do duplo grau de jurisdição, especialmente em matéria constitucional, quando se consagra a obrigatoriedade do reexame das decisões como garantia da unidade do ordenamento jurídico.

Assim, se é constitucional o fundamento do duplo grau de jurisdição, não se pode impedir que, ao se tratar de constitucionalidade, cerceie-se acesso jurisdicional com base só na taxatividade infraconstitucional dos recursos, pois a lei não pode restringir a força normativa da Constituição.

Destarte, a executoriedade depende sempre de definitividade, bem como da regra que impõe a competência e titularidade do julgamento de mérito ao prolator da decisão, que só é contornada pela lei, em razão da eficiência e economia processual, com a supressão de instância pelo órgão hierarquicamente superior e sem regresso dos autos ao juiz que primeiro julgou o caso.

Portanto, só há flexibilização excepcional da competência jurisdicional para o julgamento de mérito, nos casos expressamente previstos em lei, entendendo-se o reexame decisório como condição suspensiva da executoriedade da decisão recorrida [1].

Os princípios da dialeticidade e da substanciação

Outro ponto digno de análise, é o teor do princípio da dialeticidade, que impõe mais que a manifestação de vontade judicial, também a consideração efetiva e contraditória dos argumentos no conteúdo da decisão proferida, do que depende toda a legitimidade da decisão, derivada de sua razoabilidade demonstrada cooperativamente, a partir do debate efetivado (artigo 490, CPC), sem o que não se tem nem como existente e/ou válido o decisum publicado, devido à exigência de imparcialidade jurisdicional e adstrição aos limites propostos da demanda, que dizem inclusive sobre o que se devolve a reapreciação recursal, isto é, o quantum devolutum (artigo 141 c/c artigo 490, CPC).

Além disso, vigora entre nós o princípio da substanciação (jura novit curia ou da mihi facta et tibi dabo jus), que ordena considerar não o nomem juris da lide, mas os fatos apresentados em juízo, como matéria prima do ulterior julgamento, que se fundamenta principalmente na análise dos fatos da demanda, mais que na qualificação jurídica dos mesmos, que não é vinculante ao juiz ao decidir, prevendo o CPC que não pode o juiz se esquivar de decidir sob a alegação de lacuna do ordenamento (artigo 140, CPC).

Spacca

Então, é o julgamento de mérito que impede o retrocesso processual (artigo 503, CPC), ou a apresentação de novo pedido (artigo 486, CPC), interpretando-se tanto o pedido como a decisão segundo a boa-fé, que mais parece impor a substanciação do que qualquer formalismo nominal limitador da compreensão factual da lide (artigo 322, § 2º c/c art. 489, § 3º, CPC), ainda que devam ser sempre certos, não só o pedido como a decisão (artigo 322 c/c artigo 492, § único, CPC).

Razão determinante do efeito suspensivo dos recursos

O próprio CPC também dispõe que a decisão, em si, pode ser alterada pelos embargos de declaração, conforme o artigo 494, II c/c artigo 1.022, I a III, CPC, previsto tal apelo por lei, conforme o duplo grau de jurisdição e a taxatividade recursal, vedado compreender que o artigo 995, CPC, afasta a suspensividade legal dos embargos, pois prevê a lei que os recursos não impedem a eficácia da decisão, salvo disposição legal ou decisão judicial em sentido diverso.

De acordo com a doutrina, a principal razão determinante do efeito suspensivo dos recursos é a incerteza quanto ao acerto da decisão recorrida, e, de um modo geral, admite-se que o recurso diminui a possibilidade de desacerto e contribui para o aprimoramento das decisões, sendo exequível a decisão apenas quando revista e se a equação entre erros e acertos estiver resolvida em favor destes últimos, especialmente quando se tratar de decisão sobre o mérito da demanda, podendo a suspensão decorrer de lei expressa ou de decisão jurisdicional específica.

Duplo efeito recursal

Demais disso, a regra geral, o que não mais se divulga com toda a propriedade, é a do duplo efeito recursal, isto é, a cumulação dos efeitos devolutivo e suspensivo, pois, mesmo antes de interposto o recurso, a decisão, pelo simples fato de estar-lhe sujeita, é ato ainda ineficaz [2], com exceção dos casos expressamente previstos em lei e dos temas sujeitos a regime de urgência, que autorizam a executoriedade imediata da decisão.

Por isso, alguns temperamentos devem ser feitos:

  1. A regra é o julgamento de mérito;
  2. Tal julgamento tem de ser proferido pela autoridade competente, sem supressão de instância;
  3. Os erros decisórios são o fundamento do acesso jurisdicional e do duplo grau de jurisdição, cabendo o exame dos erros ao juiz orginalmente competente;
  4. A regra é a da suspensividade da decisão ainda não revista, sendo a recorribilidade o pressuposto lógico da definitividade decisória, o que diz sobre a executoriedade ou não do julgado;
  5. A dialeticidade intrínseca é o que demonstra os limites de revisão recursal, bem como a certeza, os erros e acertos preponderantes da decisão, assim como a higidez e estabilidade do título judicial, que fundamentam a possibilidade de execução imediata;
  6. Não se pode presumir definitivo o que ainda é prematuro e incerto, e, portanto, passível de reforma e alteração prováveis, isso previsto em lei como efeito da espécie recursal;
  7. A alteração da decisão pela via dos embargos decorre de expressa previsão legal, sem necessidade sequer de decisão judicial específica, o que ainda seria mais célere e razoável;

 

A possibilidade de alteração decisória promovida pelos embargos suspende, nos termos da lei, então, é causa legal suficiente da suspensividade da decisão recorrida, isso depreendido do teor constitucional do juiz natural e do duplo grau de jurisdição, exatamente pela ausência de definitividade decisória, o que só pode ser excepcionado, a ponto de autorizar a execução imediata da decisão, por decisão fundamentada que ostente, a partir da dialeticidade efetivada no debate, a preponderância dos acertos e certeza decisórios, com a imediata execução do julgado.

Considerações finais

Por fim, só numa cultura avessa à racionalidade, à publicidade, e à obrigatoriedade de fundamentação das decisões jurisdicionais, bem como ao exame substancial motivado da certeza decisória, é que se identifica no artigo 995, CPC, o fundamento para a não suspensividade da decisão recorrida por embargos de declaração, mais parecendo isso um tipo de formalismo obscurantista generalista, que se vale da errônea compreensão da lei, para superar tanto o princípio do juiz natural como o duplo grau de jurisdição.

Logo, se os efeitos próprios e aptos para realização concreta da decisão embargada ainda não se fazem certos, mais vale admitir como regra a predeterminação abstrata da suspensividade dos embargos, o que é mais célere e econômico, pois todas as espécies de provimento jurisdicional têm como chão lógico o prévio acertamento do direito, sendo caso mais um caso de convivência entre o art. 995 do CPC e o art. 494, II, do CPC, ao invés de exclusão, vedado presumir estável o título ainda passível de alteração.

Portanto, entre permitir desde logo a execução provisória e postergar a indenização posterior derivada do erro à parte prejudicada, ou, ainda, impor veredito fundamentado específico sobre a higidez do título em toda e qualquer decisão, é mais eficiente e econômico reconhecer a suspensividade ope legis dos embargos de declaração, a bem do duplo grau de jurisdição e da duração razoável do processo, tendo-se como englobado o dever ope judicis de fundamentação no interior substancial do efeito recursal suspensivo, previamente determinado em lei no procedimento dos embargos de declaração.


[1] JUNIOR, Nelson Nery. Teoria Geral dos Recursos – 6ª Edição – São Paulo: Editora RT, 2004.

[2] MOREIRA, José Carlos. Comentários ao CPC, Vol. 5 – São Paulo: Editora Forense, 1998.

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