Direto do Carf

Novo Ricarf e as decisões dos tribunais superiores: a obrigatoriedade do trânsito em julgado

Autor

  • Ludmila Mara Monteiro de Oliveira

    é doutora em Direito Tributário pela UFMG com período de investigação na McGill University conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf e professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.

13 de março de 2024, 8h00

O Novo Regimento Interno do Carf (Novo Ricarf), aprovado pela Portaria MF nº 1.634, de 21 de dezembro de 2023, concebido “a partir do diagnóstico de que era necessário dar mais celeridade aos julgamentos” [1], está alicerçado em quatro pilares: 1) na diminuição da temporalidade dos processos na espera de apreciação; 2) na celeridade na publicação dos acórdãos; 3) no incremento da produtividade e especialização das conselheiras e dos conselheiros que integram o órgão; e, 4) na ampliação do direito de defesa do contribuinte e na maior transparência nos julgamentos [2].

Muitas das mudanças ali contidas já foram objeto desta Direto do Carf (aqui, aqui, aqui, aqui e aqui) e, sem sombras de dúvidas alguma, outras tantas serão doravante.

O contencioso administrativo atua como um filtro, “estabelece[ndo] controles ‘desde dentro’, ou seja, incidentes na própria intimidade da Administração ao longo da sua vontade” [3], de modo a minorar o número de ações levadas à apreciação pelo Poder Judiciário. Tal controle, entretanto, ostenta limites, dentre os quais está o da impossibilidade de “afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto” [4] salvo nas seguintes hipóteses [5]:

i. existência de decisão plenária transitada em julgado do Supremo Tribunal Federal, em sede de controle concentrado, ou em controle difuso, com execução suspensa por Resolução do Senado Federal, que tenha declarado a inconstitucionalidade de tratado, acordo internacional, lei ou decreto;

ii. existência de súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal afastando a aplicação do dispositivo que fundamentou a exigência do crédito tributário;

iii. existência de decisão transitada em julgado, sob a sistemática da repercussão geral ou dos recursos repetitivos, que tenha rechaçado a norma em que escorado o lançamento;

iv. existência de dispensa legal de constituição, Ato Declaratório do procurador-geral da Fazenda Nacional ou parecer, vigente e aprovado pelo procurador-geral da Fazenda Nacional, que albergue a pretensão do sujeito passivo

v. existência de Parecer do advogado-geral da União aprovado pelo presidente da República, encampando a inexigibilidade do crédito tributário

vi. existência de Súmula da Advocacia-Geral da União capaz de amparar o cancelamento da exigência tributária

As seis circunstâncias ora descritas não são novas; entretanto, se antes exigia-se que fosse a decisão definitiva, ora impõe-se que tenha a decisão transitado em julgado.

O artigo 1.040 do CPC: aplicação imediata da tese formada em repetitivos

 O momento da aplicabilidade das teses firmadas sob a sistemática dos recursos representativos de controvérsia já foi há muito definido tanto pelo Superior Tribunal de Justiça quanto pelo Supremo Tribunal Federal.

Na subseção dedicada ao julgamento dos recursos extraordinário, contida no Digesto Processual Civil, determinado pelo artigo 1.040 que, publicado o acórdão paradigma:

I –  o presidente ou o vice- presidente do tribunal de origem negará seguimento aos recursos especiais ou extraordinários sobrestados na origem, se o acórdão recorrido coincidir com a orientação do tribunal superior;

II – o órgão que proferiu o acórdão recorrido, na origem, reexaminará o processo de competência originária, a remessa necessária ou o recurso anteriormente julgado, se o acórdão recorrido contrariar a orientação do tribunal superior;

III – os processos suspensos em primeiro e segundo graus de jurisdição retomarão o curso para julgamento e aplicação da tese firmada pelo tribunal superior;

IV – se os recursos versarem sobre questão relativa a prestação de serviço público objeto de concessão, permissão ou autorização, o resultado do julgamento será comunicado ao órgão, ao ente ou à agência reguladora competente para fiscalização da efetiva aplicação, por parte dos entes sujeitos a regulação, da tese adotada.

Tendo em vista o dispositivo nada mencionar acerca da necessidade do trânsito em julgado, tanto a doutrina [6] quanto a jurisprudência [7] se consolidaram no sentido da aplicação imediata da tese firmada sob a sistemática dos recursos repetitivos.

O artigo 62 do Ricarf: necessidade de decisão definitiva

O Ricarf outrora vigente determinava, em sentido análogo, que

[a]s decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional, na sistemática prevista pelos arts. 543-B e 543-C da Lei no 5.869, de 1973 – Código de Processo Civil (CPC), deverão ser reproduzidas pelos conselheiros no julgamento dos recursos no âmbito do CARF. – ex vi do §2º do RICarf, aprovado pela Portaria MF nº 343, de 9 de junho de 2015.

O verdadeiro significado da expressão “decisões definitivas de mérito”, contudo, nunca veio a ser pacificado no Carf.[8] No âmbito das turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) a controvérsia costumava terminar empatada. Quando vigente o voto de qualidade, prevalecia a interpretação pela necessidade de se aguardar o trânsito em julgado para, só a partir daí, ser aplicável a tese firmada sob a sistemática dos recursos repetitivos [9]. Sob a égide do desempate pró-contribuinte, entendia-se pela aplicação imediata da tese proferida na sistemática da repercussão geral ou dos recursos repetitivos [10].

O caput do artigo 99 do Novo Ricarf: necessidade de decisão transitada em julgado

Com a publicação do Novo Ricarf posta uma pá de cal na querela, eis que ali expressamente consignado que

[a]s decisões de mérito transitadas em julgado, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, ou pelo Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional, na sistemática da repercussão geral ou dos recursos repetitivos, deverão ser reproduzidas pelos conselheiros no julgamento dos recursos no âmbito do CARF. – ex vi do artigo 99 do Novo Ricarf.

O termo “trânsito em julgado”, mencionado na nossa Carta Constitucional e diversos diplomas, não exibe uma definição ofertada pela lei; contudo, inequívoco seu significado: momento em que uma decisão não mais pode ser objeto de recurso. Ao consultar a movimentação de um processo, possível ter ciência de quando se deu o trânsito em julgado, porquanto sua ocorrência é certificada.

O P.U. do artigo 99 do Novo Ricarf: a pendência de julgamento no STF

O Novo Ricarf deu ao artigo 99 um parágrafo único que ostenta a seguinte redação:

O disposto no caput não se aplica nos casos em que houver recurso extraordinário, com repercussão geral reconhecida, pendente de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, sobre o mesmo tema decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, na sistemática dos recursos repetitivos.

Ludmila Oliveira

Dito de outro modo: ainda que uma tese, firmada sob a sistemática dos recursos repetitivos no STJ, tenha transitado em julgado, não poderá ser aplicada se o tema estiver pendente de apreciação pelo STF, com repercussão geral reconhecida.

Tema nº 985 e o P.U. do artigo 99 do Novo Ricarf: criador e criatura?

O parágrafo único do art. 99 do Novo RICarf não guarda similaridade com qualquer dos dispositivos do RICarf outrora vigente, aprovado pela Portaria MF nº 343, de 9 de junho de 2015. Ao que parece, o leitmotiv para sua inserção teria sido a controvérsia – repleta de reviravoltas, frise-se – envolvendo a definição da natureza jurídica do terço constitucional de férias para fins de incidência de contribuições previdenciárias.

Façamos uma breve digressão para melhor compreender os debates travados tanto no Superior Tribunal de Justiça quanto no Supremo Tribunal Federal.

Em 2014, sob a sistemática dos recursos repetitivos, decidiu o Superior Tribunal de Justiça que “[e]m relação ao adicional de férias concernente às férias gozadas, tal importância possui natureza indenizatória/compensatória, e não constitui ganho habitual do empregado, razão pela qual sobre ela não é possível a incidência de contribuição previdenciária (a cargo da empresa)” [11]. Naquela oportunidade, frisado ainda que, a Primeira Seção daquele Tribunal teria, em 2010 [12], consolidado a orientação “no sentido de afastar a contribuição previdenciária do terço de férias também de empregados celetistas contratados por empresas privadas.”

Embora encerrada a discussão no STJ, reconhecida a repercussão geral da matéria pelo Guardião da Constituição, no bojo do RE nº 593.068 (Tema de nº 163). Em que pese o julgamento do retromencionado recurso extraordinário ter sido concluído pela Corte Constitucional, não houve o trânsito em julgado porquanto sobrestado o RE nº 593.068  até o deslinde de outro RE, o de nº 1.072.485/PR (Tema nº 985), que visava perquirir a “natureza jurídica do terço constitucional de férias, indenizadas ou gozadas, para fins de incidência da contribuição previdenciária patronal”.

Passados seis anos da decisão firmada sob a sistemática do art. 543-C do CPC/73, em uma guinada,[13] entendeu o Tribunal Pleno do STF, no ano de 2020, ser “legítima a incidência de contribuição social, a cargo do empregador, sobre os valores pagos ao empregado a título de terço constitucional de férias gozadas” [14].

O julgamento dos embargos de declaração, embora iniciado em março de 2021, todavia sequer possuiu data para conclusão, tendo o ministro Barroso inaugurado a divergência para propor a atribuição de efeitos ex nunc, a contar de 15 de setembro de 2020, data da publicação da ata de julgamento do recurso extraordinário, com a ressalva de que as contribuições pagas e não impugnadas até o retromencionado marco temporal não seriam restituídas.

Em junho do ano passado, proferida a ordem de sobrestamento dos feitos versando sobre a temática da incidência das contribuições previdenciárias sobre o terço constitucional de férias gozadas. Decretada, portanto, “a suspensão, em todo o território nacional, dos feitos judiciais e administrativos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão presente no Tema nº 985 do ementário da Repercussão Geral” [15].

Considerações finais

As não raras guinadas jurisprudenciais e o uso cada vez mais frequente da modulação dos efeitos das decisões proferidas têm criado imbróglios que comprometem princípios constitucionais basilares. A opção feita pelo Novo Ricarf, no contexto em que atravessamos, nos parece bem alinhar com o esforço do ministro André Mendonça, relator do Tema de nº 985 do STF em “evitar resultados absolutamente anti-isonômicos entre contribuintes em situações equivalentes, por força e obra de prestação jurisdicional desta Corte” [16]. Carregando a expressão trânsito em julgado significado inequívoco, inexiste razão para que controvérsias surjam quando da aplicação dos artigos 98 e 99 de ser Novo Ricarf.

 

Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.


[1] Disponível em: <http://idg.carf.fazenda.gov.br/noticias/2022-1/conselho-administrativo-de-recursos-fiscias-tem-novo-regimento-interno>. Acesso em: 12 mar. 2024.

[2] Idem.

[3] NEDER, Marcos Vinicius; LAURENTIIS, Thais de. Processo Administrativo Fiscal Federal Comentado: Atualizado até 05/09/2023. São Paulo: EDDA, 2023, p. 35.

[4] Cf. caput do art. 98 do Novo RICarf. Registro que no regimento interno outrora vigente o dispositivo análogo, previsto no art. 62, apresentava redação ligeiramente discrepante: “Fica vedado aos membros das turmas de julgamento do CARF afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade.” (destaques nossos)

[5] Cf. art. 98 do Novo RICarf.

[6] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Comentários ao art. 1.040 do CPC. BUENO, Cassio Scarpinella (coord.) Comentários ao Código de Processo Civil. v.4. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 588.

[7] “Com efeito, esta Corte [STF] já decidiu que a existência de decisão de mérito julgada sob a sistemática da repercussão geral autoriza o julgamento imediato de causas que versarem sobre o mesmo tema, independente do trânsito em julgado do paradigma. Nesse sentido, faço menção aos seguintes precedentes: ARE 930.647-AgR/PR, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma; ARE 781.214-AgR/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, Segunda Turma; RE 933.857-AgR/RN.” (STF. ARE nº 1407689, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, sessão de 06 fev. 2023) Confiram-se os seguintes precedentes em igual sentido no âmbito do Superior Tribunal de Justiça: EDcl no AgRg no AgRg no REsp nº 1479935/RS, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 16/10/2018, DJe 24/10/2018; EDcl no REsp 1108659/RJ, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 09/10/2018.

[8] Cf. a discussão travada em: CARF. Acórdão nº 9101-006.654, Cons.ª Rel.ª EDELI PEREIRA BESSA, Cons. Redator Designado ALEXANDRE EVARISTO PINTO, sessão de 13 de julho de 2023 [desempate pró-contribuinte].

[9] CARF. Acórdão nº 9202-006.464, Cons.ª Rel.ª ELAINE CRISTINA MONTEIRO E SILVA VIEIRA, sessão de 30 jan. 2018 [desempate pelo voto de qualidade].

[10] CARF. Acórdão nº 9101-006.654, Cons.ª Rel.ª EDELI PEREIRA BESSA, Cons. Redator Designado ALEXANDRE EVARISTO PINTO, sessão de 13 de julho de 2023 [desempate pró-contribuinte].

[11] STJ. REsp nº 1.230.957/RS, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJe de 18/3/2014.

[12] STJ. AgRg nos EREsp nº 957.719/SC, Rel. Min. CESAR ASFOR ROCHA, DJe de 16.11.2010.

[13] Até aquela assentada, vinha o STF reiteradamente pontuando ser a matéria de natureza infraconstitucional – cf. ARE nº 1.260.750, bem como os RE nºs 611.505, 814.204 e 892.238.

[14] STF. RE nº 1072485, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 31/08/2020, DJe  01/10/2020.

[15] Idem.

[16]Cf. a decisão monocrática proferida em 26 de junho de 2023 pelo Min. André Mendonça em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15359228128&ext=.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2024.

Autores

  • é doutora em Direito Tributário pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), com período de investigação na McGill University; pós-doutora e mestra pela UFMG; vice-presidente da 2ª Seção do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais); conselheira da 2ª Turma da CSRF (Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf); professora.

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