Práticas corruptas

Indústria do escândalo da 'lava jato' provocou a crise, diz FMI

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13 de março de 2024, 15h03

A industrialização de um pretenso “combate à corrupção” pode se converter num ilícito tão grave quanto o mal que se pretende suprimir. O truque, que ganhou escala com a chamada ‘lava jato’, ainda está em cartaz.

A manipulação da vez se apresenta na ação de agentes que se dizem inconformados com a possível revisão de acordos de leniência. Tenta-se entoar, de novo, o bordão “a corrupção quebrou o Brasil”, que já parecia superado.

Evidências suficientes se acumulam há anos para demonstrar que o colapso de negócios e a crise econômica que se seguiram à finada operação lava jato foram resultado de uma “economia do escândalo” orquestrada a partir de Curitiba. Crises de confiança, insegurança jurídica e fuga de investidores estão por trás da desintegração de negócios e recessão econômica.

Uma das principais pesquisas a demonstrar a relação entre a “economia do escândalo” e crises econômicas foi um estudo gigantesco financiado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), publicado em 2018.

A pesquisa demonstrou que escândalos midiáticos anticorrupção espantam investidores, paralisam negócios, derrubam mercados, prejudicam a arrecadação, afetam o câmbio e retraem a economia. A conclusão é que o problema para a economia não é “a corrupção”, mas o circo anticorrupção armado em torno dela.

Espetáculo da corrupção

A equipe do FMI, liderada pela economista norte-americana Sandile Hlatshwayo, hoje conselheira na Casa Branca, analisou 665 milhões de notícias produzidas em 30 países ao longo de 20 anos. O resultado foi o “Índice de Notícias sobre Corrupção” (INC). Ficou claro para os pesquisadores que o aumento do INC provoca profundos efeitos negativos na economia a curto prazo, sem indícios de melhoria a longo prazo.

“Encontramos evidências do impacto negativo das notícias relacionadas à corrupção em custos de empréstimos, taxas de câmbio, mercados, fluxos de capitais, equilíbrios fiscais e crescimento. Os efeitos são persistentes: os choques do INC reduzem o crescimento real do Produto Interno Bruto (PIB) per capita em aproximadamente 3%, cumulativamente, durante um período de dois anos.”

O trabalho produzido pelo FMI atribui o resultado à formação de crenças por agentes econômicos. Grandes choques deixam “cicatrizes” persistentes em empresários e investidores, que fogem dos negócios. O resultado é quebradeira, recessão e desemprego. No Brasil diversos trabalhos sobre os impactos da “operação lava jato” chegaram à mesma conclusão.

O livro “Lava a Jato: o interesse público entre o punitivismo e a desgovernança”, de 2019, baseado em tese de doutorado defendida na USP pela advogada Maria Virginia Mesquita Nasser, mostra que o desmantelamento de negócios após a lava jato não teve a ver com restrições jurídicas, mas com aversão ao risco.

“Divulgadas as primeiras denúncias, a Petrobras e outros entes públicos, a título de cautela, mas sem base em qualquer obrigação ou respaldo legal, paralisaram os projetos contratados com as empreiteiras envolvidas, fazendo cair drasticamente as suas receitas. Partes de obras entregues sequer foram quitadas, o que ajudou a deteriorar o caixa dessas empresas. Cessou também o crédito via bancos públicos, que não mais queriam fazer os desembolsos já contratados.”

Graxa nas engrenagens

A literatura econômica mais tradicional sobre a corrupção tratava o tema como um problema moral, não econômico. O inimigo da economia na época era a burocracia, e a corrupção ajudava a lidar com a burocracia.

Pesquisas publicadas a partir dos anos 1960 mostravam que em contextos de baixa segurança jurídica e institucionalidade frágil, como em países subdesenvolvidos e autoritários, a corrupção pode ser a melhor forma de obter um ambiente de negócios minimamente funcional.

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A teoria da “graxa nas engrenagens” (grease on the wheels) aparece no contexto da expansão de grandes multinacionais para ex-colônias e países periféricos. A corrupção era considerada por vários países desenvolvidos um instrumento necessário para operar nesses ambientes. Até os anos 1990, França, Alemanha, Suíça e Holanda ainda tinham leis assegurando que suas empresas poderiam deduzir propinas do imposto de renda.

Um dos principais autores a escrever sobre a teoria “grease on the wheels” foi o economista norte-americano Nathaniel Leff, autor do artigo “O desenvolvimento econômico por meio da corrupção da burocracia”, publicado em 1964. Leff foi um conhecido brasilianista, autor de uma obra de referência, “Subdesenvolvimento e desenvolvimento no Brasil”, de 1985.

O autor afirma que em contextos onde o Estado não funciona bem, pagar propinas garante serviços públicos eficientes, motiva funcionários públicos, agiliza processos, influencia políticas públicas e pode melhorar o ambiente para a concorrência e inovação.

“Burocratas corruptos podem forçar o governo a promover atividades econômicas e aumentar a taxa de investimento ao dar aos investidores garantias de não-interferência em seus negócios. Práticas corruptas podem permitir inovações que teriam sido boicotadas por interesses existentes. A oferta limitada de licenças e favores do burocata corrupto produz uma situação competitiva que pode encorajar a produção mais eficiente”, diz Leff.

A idea de que quando serviços públicos não funcionam bem há incentivos fortes para a corrupção parece no trabalho da organização canadense Corrupção, Justiça e Legitimidade. A entidade é especializada em técnicas de prevenção em corrupção em países em crise e conflito. A conclusão é de que quando não há um Estado minimamente funcional, políticas do tipo “tolerância zero” podem ser contraproducentes. Segundo o grupo, a melhor abordagem é entender a origem do problema, promover reformas estruturais e melhorar a qualidade de serviços públicos e controles.

Areia nas engrenagens

A partir dos anos 1990 o debate econômico sobre a corrupção muda a chave de “graxa nas engrenagens” para “areia nas engrenagens” (sand on the wheels). Em um contexto de queda do muro de Berlim e globalização, empresas multinacionais buscavam oportunidades em ex-repúblicas socialistas e países em desenvolvimento. Mas quem levou os espólios do estatismo foram oligarcas locais e grupos com boas conexões políticas.

Nos EUA, desde 1977 Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) proíbe o suborno de oficiais estrangeiros, o que passou a ser visto como desvantagem competitiva. A saída encontrada pelo Departamento de Estado foi exportar o FCPA para o mundo.

A partir de meados dos anos 1990 o tema da corrupção entra na agenda de instituições multilaterais como o Banco Mundial, Organização dos Estados Americanos (OEA), da Organização para o Desenvolvimento Econômico e Social (OCDE) e Nações Unidas (ONU).

O Banco Mundial, sediado em Washington, começou a produzir trabalhos voltados a estabelecer um vínculo entre corrupção e desenvolvimento econômico, com o fim de subsidiar o debate anticorrupção. Mas de início não foi fácil encontrar argumentos.

Em 1997 o Banco Mundial contratou artigo da professora de direito da Universidade de Yale Susan Rose-Ackerman.

Ela apresenta o debate da relação e entre a economia e a corrupção e coloca a questão dos efeitos negativos como uma grande novidade. “Afinal, o que há de errado em pagar pelo que você quer?”, pergunta a autora.

O artigo enumera conhecidas pesquisas que apontam correlação entre países com maior percepção de corrupção e menor nível de renda e investimento, mas nota que correlação não significa causalidade. Países com alta percepção de corrupção tendem a ser países pobres e mal estruturados. A corrupção pode ser uma consequência, não causa do atraso.

O Banco Mundial financiou um segundo artigo sobre o tema publicado em 1998, assinado pelo economista Shang-Jin Wei, da Universidade de Harvard, para finalmente defender a tese de que a corrupção é ruim para a economia. A ideia apresentada é que em algum momento a corrupção pode reduzir a eficiência do sistema produtivo e frear o investimento.

“Existem vários canais pelos quais a corrupção prejudica o desenvolvimento da economia. Eles incluem a redução do investimento interno, do investimento estrangeiro, despesas governamentais exageradas, direciona despesas para longe de educação, saúde e infraestrutura, e dá mais dinheiro em projetos públicos menos eficientes”, diz Wei.

A tese dos efeitos negativos da corrupção foi usada em uma campanha global pela implementação de convenções anticorrupção. Em 1996 a OCDE impôs o fim do subsídio oficial ao suborno de agentes estrangeiros. Em 1997 lança a Convenção Anticorrupção, que proíbe o suborno a oficiais estrangeiros, e em 2003 a Organização das Nações Unidas lança a sua convenção internacional anticorrupção, hoje assinada por 140 países.

Teorias complementares

As teorias da “graxa nas engrenagens” e da “areia nas engrenagens” não são excludentes, pois veem o objeto de formas diferentes. A curto prazo, no contexto das empresas, o pagamento de propinas cria “bolhas” de excelência onde os serviços públicos funcionam e as empresas obtém um ambiente pró-negócios. A longo prazo, a corrupção endêmica pode em algum momento corroer a eficiência e inibir investimentos.

A tese da “economia do escândalo”, comprovada pelo FMI, vê o tema por um outro ângulo. Escândalos midiáticos anticorrupção criam grandes choques de expectativas e podem provocar crises econômicas de larga escala. Ao mexer com sistemas de crenças e segurança jurídica, o choque midiático anticorrupção desmantela negócios, inibe investimento, destrói ativos, derruba bolsas, reduz renda e provoca desemprego de forma acentuada e repentina.

A crise e seus responsáveis

A economia brasileira pré-2014, ano do início da lava jato, estava em pleno emprego, com taxas de crescimento, câmbio, dívida pública, gasto público e inflação estáveis. A partir de 2014 o país caiu rem uma recessão de quase 10% do PIB seguida de uma década de estagnação. Estudo da consultoria MB Associados estimou que se o país mantivesse a taxa de crescimento pré-2014 seria hoje 30% mais rico.

A Petrobras lançou em seu balanço R$ 6,4 bilhões em perdas com a corrupção entre 2003 e 2014, o que representava cerca de 0,2% de seu faturamento médio no período. Já o cancelamento de projetos na sequência da Lava Jato custou ao balanço da Petrobras um rombo de R$ 120 bilhões em “impairment” (custo de deterioração de ativos), cavando um prejuízo de meia centena de bilhões de reais.

A tese da “economia do escândalo” explica a crise econômica brasileira pós-2014 a partir de seus efeitos sobre as empresas. Empresas envolvidas em escândalos perdem valor em bolsa, sofrem fuga de investidores, de crédito, cancelam projetos, precisam vender ativos e fazer demissões em massa. Sem empresa não há negócio, sem negócio não há economia.

Quem vai pagar por isso?

A “economia do escândalo” nasceu do objetivo de se blindar o projeto político-jurisdicional da “lava jato” de interferências externas. Isso foi feito por meio da organização e divulgação em larga escala de ações promocionais como operações policiais cinematográficas, prisões dramáticas e distribuição de vazamentos selecionados. As medidas tinham por finalidade conquistar o apoio na opinião pública e vender uma narrativa de luta do bem contra o mal.

Esses métodos foram idealizados por um dos integrantes da operação lava jato no artigo “Considerações sobre a operação mani pulite”, publicado em 2004. No texto, fica claro que o objetivo da Justiça ao mobilizar a opinião pública é garantir a autonomia de seus agentes. “A opinião pública, como ilustra o exemplo italiano, é também essencial para o êxito da ação judicial (…) a magistratura ganhou uma espécie de legitimidade direta da opinião pública”, diz o artigo.

Integrantes da operação lava jato tinham consciência de que promover uma “economia do escândalo” era algo perigoso. Segundo notícia publicada em 2017, quando a delação do ex-ministro Antônio Palocci chegou perto de instituições financeiras, integrantes da operação lava jato consideraram adotar procedimentos mais sigilosos para preservar as empresas envolvidas.

Em 2014 os setores de petróleo e construção civil eram responsáveis por 50% da formação bruta de capital e quase 20% do investimento total da economia brasileira. Ao escolher destruir esse setor, os integrantes da “operação lava jato” assumiram o risco de sabotar o desenvolvimento econômico nacional de forma estrutural e duradoura.

Quem se sentir lesado pela crise econômica decorrente da “economia do escândalo” e quiser apresentar a conta, pode levá-la aos diretores do espetáculo, instalados em Curitiba. Na destruição da economia brasileira, os demais personagens foram coadjuvantes.

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