Opinião

Validade da exigência de certidão criminal de professor e empregado de escola

Autor

11 de março de 2024, 7h07

Em recente alteração ao ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/1990), ocorrida em 12 de janeiro de 2024, pela Lei nº 14.811/2024, se instituiu no conjunto de medidas de proteção à criança e ao adolescente contra a violência nos estabelecimentos educacionais ou similares, a obrigatoriedade de apresentações semestrais de certidões de antecedentes criminais. A inserção do artigo 59-A e seu § único ao estatuto, foi levada a termo com a seguinte redação:

“Art. 59-A. As instituições sociais públicas ou privadas que desenvolvam atividades com crianças e adolescentes e que recebam recursos públicos deverão exigir e manter certidões de antecedentes criminais de todos os seus colaboradores, as quais deverão ser atualizadas a cada 6 (seis) meses.

Parágrafo único. Os estabelecimentos educacionais e similares, públicos ou privados, que desenvolvem atividades com crianças e adolescentes, independentemente de recebimento de recursos públicos, deverão manter fichas cadastrais e certidões de antecedentes criminais atualizadas de todos os seus colaboradores.”

Diante da observação do objeto contido na norma, em si, percebe-se que não há um único enfoque jurídico contido na alteração. Ele desafia, em uma análise ainda que superficial, conhecimentos de Direito público e privado, Direito Constitucional, Direitos Humanos, Direito Administrativo, Direito Penal, LGPD e Direito do Trabalho, dentre outros.

A pretensão deste artigo é propor um recorte transversal com preponderância ao final na esfera do Direito do Trabalho, ainda que tocando em outras áreas das ciências jurídicas e mesmo no questionamento da operacionalização para tal implementação, com as reflexões decorrentes.

Nesta linha, procede-se aqui uma crítica a respeito da validade da norma, de abrangência, sobre a frequência estabelecida e o prazo para o seu atendimento, as dificuldades inerentes à sua implantação.

Quanto à validade e vigência

E consabido seja a lei fonte formal e imediata do Direito, e, portanto, de modo inquestionável encontra abrigo no nosso ordenamento. No caso da legislação em comento se faz evidente o bem juridicamente tutelado seja a integridade de crianças e adolescentes, isto é, do grupo constituído por pessoas de zero a 18 anos.

Ao se exigir certidões de antecedentes criminais para professores e educadores de modo geral, acabamos por nos deparar com um evidente dilema diante dois valores a serem protegidos. De um lado a inviolabilidade da intimidade, vida privada e sigilo [1] e de outra banda a proteção da criança e do adolescente, e a norma, tal como posta, faz evidenciar que o legislador e a sociedade, certamente optaram pelo segundo.

Para o caso dos vigilantes, a Lei nº 7.102/1983 que previu a apresentação de certidões criminais foi submetida crivo Judiciário, que foi validou a aplicação da norma, quando em 2017, la SI DI do TST, firmou seu entendimento com o Tema Repetitivo nº 0001.

Cathy Yeulet

Já se debateu por aqui a possibilidade de pedidos de certidões, não só criminais, mais inclusive de natureza creditícia para pessoas que se ativarão em bancos e instituições financeiras. Há um interessante trabalho da professora Fabíola Marques, publicado em fevereiro de 2023, nesta ConJur [2], e que trata sobre o tema.

Aponta-nos que, em princípio, a vida particular do trabalhador não pode ser averiguada, devendo o empregador limitar-se a obter informações relativas à sua capacidade profissional imprescindíveis e necessárias para a execução de suas funções.

E é nesse sentido que tendemos a, semelhantemente às instituições financeiras que podem ser autorizadas a exigir que seus trabalhadores sejam adimplentes com suas obrigações e assim comprovar que, neste particular, para se trabalhar com crianças e adolescentes, se possa exigir certidões que comprovem a inexistência de passado maculado pela ocorrência de violência contra outrem.

Especificamente quanto a vigência, a norma não deixa dúvidas. Tendo sido publicada no Diário Oficial da União em 15 de janeiro de 2024, e sendo expressa a sua validade a partir de então conforme preconizado no artigo 10, de referida lei, ela passou a integrar o ECA e, portanto, já em vigor.

Quanto à abrangência e periodicidade

O texto da norma não deixa dúvidas quanto à abrangência, alcançando todos os estabelecimentos educacionais e similares, públicos ou privados, que desenvolvam atividades com crianças e adolescentes.

Levando-se em consideração que o texto não foi exclusivo para escolas, pois entende-se por estabelecimento educacional e similar um elastecido número de instituições, que além do ensino regular, berçários, pré-escolas, ensino fundamental, ensino médio e ensino superior nos anos inicial, além de incontáveis escolas de línguas, esportes, cursos técnicos livres entre outros.

E atente-se: a legislação implementada não se limita apenas aos professores ou instrutores, mas de todos os seus colaboradores.

Partindo para os dados estatísticos lançados a público pelo próprio governo federal o ensino básico brasileiro, em sua maior parte, é realizado por mulheres. Do corpo docente, composto por mais de 2,3 milhões de profissionais, 1,8 milhões (79,2%) são professoras [3].

Portanto, especificamente com relação a esse público, estamos falando em torno de pelo menos 4,6 milhões de certidões que anualmente precisarão ser expedidas, mesmo porque o texto legal aponta que tais certidões deverão ser apresentadas semestralmente. Afora todos os outros profissionais que se ativam em escolas e professores e instrutores de outros cursos não regulares.

Cabe a reflexão que, diante de volume que se apresenta, a exigência fosse aplicada após um período adequado para que as escolas se organizassem para se organizar, solicitar e criar mecanismos de controle de tal documentação, a exemplo do que as empresas de transporte realizam com relação à regularidade e validade da habilitação dos condutores.

Na mesma linha, é ponderável que a exigência se dê no início da contratação e em lapsos anuais, não semestrais, mesmo porque as instituições de ensino precisam adequar sua rotina de fluxo e de armazenamento de informações neste sentido, inclusive com enfoques orientados pela LGPD, vez que até os dados descartados ao final do período devem se submeter a controle rigoroso.

Fica, ainda, uma reflexão transversal, do ponto de vista ambiental, pois se a exigência for cumprida em documentos impressos, estamos diante de uma medida que apresenta, a partir deste ângulo, algo extremamente oneroso.

Deve-se levar ainda em consideração que, talvez a alteração legislativa tenha sido, ao invés de protetiva, ineficaz, pois a grande vítima de violência doméstica tem sido a mulher, e portanto, diante de um quadro de profissionais em que quase 80% são mulheres, a exigência tende a se transformar em algo inócuo e ineficaz.

Reflexões finais quanto a implantação da exigência

Apenas para lançar lenha na fogueira, propomos, ainda, algumas reflexões acerca do tema. A primeira diz respeito a fiscalização e inexistência de punição para a instituição que não cobrar de seus colaboradores a apresentação das certidões.

Segundo os introdutórios estudos de sociologia jurídica, nos ambientes coletivos, para a implementação efetiva de novas de condutas, se faz essencial elementos de coerção, sob pena de inefetividade, e a norma lançada não aponta penas e punições especificas para as instituições que não atenderem ao comando legal, havendo o risco da frustração da finalidade da norma.

Outro elemento que podemos ponderar nesta fase de conhecimento e disseminação do conteúdo normativo diz respeito à inexistência no país de um sistema integrado acerca das certidões criminais.

Como os sistemas de segurança pública e judiciais não são integrados, nem entre os estados da federação, nem o sistema federal com os sistemas estaduais, certamente, haverá o risco de que um infrator em um determinado estado federado, ao se transferir para outro, possa ter certidões sem mácula no novo espaço territorial, burlando a finalidade primeira da norma em comento.

Sem adentrar na questão vinculada ao Direito Administrativo, com relação aos professores concursados nas três esferas que não atenderem ao comando legal e nas consequências em caso de certidões positivas, no âmbito do Direito do Trabalho, deve ser suscitado neste momento inicial de debate a consequência diz respeito à atitude do empregador, que em uma solicitação de rotina (imaginemos que a norma seja inserida no cotidiano das instituições de ensino e elas passem a exigir dos colaboradores) e seja detectado a prática de caso de violência especificamente contra crianças ou adolescentes.

E ai se questiona: qual será a atitude do empregador? A princípio, a demissão por justa causa não deverá ser, pois para a aplicação daquela forma de rescisão, a legislação trabalhista trabalha com numeros clausus do rol taxativo do artigo 482, da CLT.

E ai surge outra indagação: deverá haver demissão sem justa causa em meio de contrato? Se acontecer assim, como fica a cláusula de semestralidade ou anualidade, prevista em significativa parte das convenções e dissídios coletivos da classe dos professores? A escola será punida com a obrigação do pagamento do período integral?

Efetivamente a medida implementada, apesar de teleologicamente bem-intencionada veio cravada de vícios, pois se pretendeu imputar a fiscalização de crimes de violência em face de crianças e adolescentes exatamente para aqueles profissionais que, junto com a família, devem construir a educação, na conformidade do artigo 205 da CF/1988.

Com o devido respeito, estabeleceu-se um ônus para os que mais formam e combatem a violência no quotidiano escolar, e a implantação da norma parece querer terceirizar a fiscalização — que seria obrigação do Estado —, para as escolas e instituições de ensino, sem nenhuma comprovação de que tal medida tenha alguma eficácia.

Possivelmente seria mais eficaz uma medida reversa, que atribuísse a autoridade policial, agente público que recebe a denúncia de violência contra a crianças e adolescentes, fossem compelidos a noticiar a todos os envolvidos na formação das mesmas criando-se um sistema de alerta, e suspendendo liminarmente o contrato de trabalho. Para tal seria necessário um ajuste normativo específico para isso

E, caso a denúncia se confirmasse ao final do devido processo legal que culminasse com condenação, que o indivíduo tivesse seus empregadores, imediatamente informados e, esses, por sua vez tivesse a prerrogativa de rescindir o contrato do agressor, ainda concedendo-lhe a possibilidade de contraditório e ampla defesa, e confirmados os fatos, o desligamento decorrente de tal conduta fosse inserido no rol autorizador da justa causa, o que também careceria de ampliação do artigo 482, da CLT, especificamente para esse fim.

 


[1] Veja nesse sentido que conforme a CF/88, temos:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

[2] Vide em: https://www.conjur.com.br/2023-fev-03/reflexoes-trabalhistas-pesquisa-criminal-crediticia-contratacao-empregado/ <acesso em 04/03/2024, às 21h15min>

[3] https://www.gov.br/inep/pt-br/assuntos/noticias/institucional/professoras-sao-79-da-docencia-de-educacao-basica-no-brasil#:~:text=O%20ensino%20b%C3%A1sico%20brasileiro%2C%20em,79%2C2%25)%20s%C3%A3o%20professoras <acesso em 05/03/2024, as 9h25min>

Autores

  • é doutor em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mestrado em Constituição e Processo pela Universidade de Ribeirão Preto-SP (Unaerp-SP), professor universitário, advogado, ex-conselheiro Secional da OAB-SP, ex-presidente da Comissão Permanente de Exame de Ordem da OAB-SP e ex-membro da Comissão Nacional de Exame de Ordem.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!