Garantias do Consumo

Precisamos conversar seriamente sobre autorregulação privada

Autores

  • Amanda Flávio de Oliveira

    é sócia-fundadora do escritório Advocacia Amanda Flávio de Oliveira (AAFO) professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) mestre e especialista em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

  • Diógenes Carvalho

    é professor associado da Universidade Federal de Goiás Centro Universitário Alves Faria (Unialfa) Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp) pós-doutor em Direito e Psicologia doutor em Psicologia mestre em Direito e diretor jurídico do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar).

6 de março de 2024, 8h00

Deus está morto. Desde a afirmação categórica de Nietzsche que se discute seu alcance, seu real significado, suas implicações. Entre disputas de correntes de interpretação, estudiosos compartilham o espanto com o diagnóstico incômodo que a sentença revela. Não o negam, antes procuram conferir-lhe alcance.

O Estado regulador agoniza. Neste caso, apesar da realidade contundente, correntes de estudiosos dividem-se quanto às soluções que propõem para frustrações decorrentes do modelo, em todos os casos ainda apostando na solução regulatória estatal, que precisaria apenas de ajustes. Desapontamentos são compartilhados, mas evita-se o incômodo diagnóstico.

Desde a construção de uma concepção de Estado regulador, no âmbito do processo de desenvolvimento do capitalismo, percebe-se um esforço de aprimoramento e ajustes na proposta, ao qual se seguem novas frustrações e novos reparos, em um ciclo de ineficiência e desperdiço de recursos sociais de toda ordem.

Insatisfação com os resultados da regulação

No bojo dos Estados republicanos que fizeram opção pela separação de Poderes, de um modelo tradicional de intervenção estatal na economia por meio de leis, sucedeu-se um paradigma de regulação, realizada por agências compostas por experts. No âmbito dessas agências, de um modelo regulatório que se vale da técnica de comando e controle, identifica-se a defesa de propostas de corregulação, de regulação responsiva, de sandboxes, em um persistente trabalho de corrigir erros de rota.

Em comum, em todos os casos, a insatisfação com os resultados insuficientes da regulação empreendida, seus eventuais efeitos negativos, com seus custos e/ou com os incentivos inesperados que geraram se faz presente. Seja por apego, por ideologia ou por convicção acrítica, a realidade revela que não se pretende, todavia, abdicar do modelo tão cedo.

O Estado regulador pode ser sintetizado, neste ponto, como a atuação do Estado para nortear o comportamento dos agentes econômicos em um dado mercado, movido pelo propósito de alcançar valores por ele definidos.

Em primeiro lugar, é de se considerar quais seriam os tais valores que justificam a ação do Estado na atividade econômica das empresas. Esses valores – os objetivos da regulação – não são de livre definição pelos agentes públicos: eles são previamente determinados e limitados pela Constituição e dizem respeito à existência digna dos indivíduos, o que está intrinsecamente dependente de uma economia desenvolvida. Acesso ao mercado, direitos de escolha do consumidor, competitividade entre as empresas são elementos centrais nesse cenário.

Autorregulação privada

Em segundo lugar, urge identificar que o modelo do Estado regulador está sendo repensado também em outras jurisdições, inclusive naquelas mais maduras no tema.

É o caso dos Estados Unidos, considerado o idealizador e primeiro executor de um modelo de intervenção estatal por meio de agências formadas por experts. Aspecto considerado quase-indispensável do modelo – a deferência judicial pelas decisões técnicas produzidas por elas – vem sendo questionado severamente naquele país [1], com consequentes debates públicos e oficiais sobre a necessidade de se resgatar a separação entre os Poderes da República [2], tema que o modelo de Estado regulador, discretamente, despreza.

Também em organismos internacionais se verifica uma abertura a outras soluções.

No que concerne às políticas regulatórias da economia na internet, por exemplo, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem promovido discussões e incentivos para soluções regulatórias mais eficientes a partir da sociedade civil numa espécie de ação global em cooperação, que associa os governos, as empresas, os consumidores e os seus representantes [3].

Além disso, tem proposto modelos de autorregulação privada como uma opção para participação direta e protagonista dos agentes privados na disciplina da atividade econômica e como forma de correção de rumos e adaptação ao digital.

A autorregulação privada costuma ser avaliada ou referenciada com doses equivalentes de desconfiança e desconhecimento. Apriorística e preconceituosamente considerada engodo, a autorregulação privada ainda merece crédito e estudo sério, inclusive empírico, que avalie seus resultados para o atingimento dos tais valores sociais relevantes que movem – ou deveriam mover – a ação dos reguladores estatais.

Na dimensão digital, em especial, a autorregulação privada pode deixar de ser uma das opções possíveis, para se tornar a única viável. O ritmo frenético das evoluções tecnológicas, a incapacidade concreta de o Estado acompanhá-las para adequadamente discipliná-las, parece conduzir a um desfecho que a imporá apesar dos apegos à ação regulatória que parta do Estado. É o que advertia Richard Posner, ainda no ano de 2000, em relação à política antitruste aplicável ao novo mundo digital: doutrina adequada para lidar com os problemas haveria, capacidade técnica específica institucional seria o problema. E ele não fazia ideia de como solucioná-lo [4].

De fato, a já não tão recente disciplina do tratamento de dados propicia reflexão tanto no Brasil quanto fora daqui. No país, passados cinco anos da lei, foram necessários outro par de anos para ser possível fazê-la entrar em vigor, seguido de uma dificuldade concreta de realizar o seu enforcement, tudo isso acompanhado por escândalos que informavam problemas de dados vivenciados pelo próprio Estado no tratamento de dados públicos. A trajetória errática da política tem conduzido alguns a considerarem-na uma bolha, já superada [5].

Autorregulação regulada

Num exercício de reconhecer fragilidades da regulação estatal e de não reconhecer a autorregulação privada como possível solução, vem ganhando certo prestígio na doutrina a chamada autorregulação regulada, que poderia ser considerado modelo regulatório misto, isto é, uma combinação de autorregulação privada com a regulação derivada do Estado e por ele fiscalizada.

A ideia seria a de aproveitar “o melhor” de dois mundos: a autorregulação privada tem a vantagem da eficiência pela disponibilidade do conhecimento interno e pela dinâmica de constante revisão de conceitos. Por outro, a ela lhe faltaria a capacidade de coerção que só o Estado possui [6].

No plano governamental, diversas iniciativas do governo federal, a partir de 2019, fazem opção pelo fomento à autorregulação, à autorregulação regulada ou à corregulação, em mercados tão centrais como o de telecomunicações, por exemplo [7]. Embora ainda se identifique uma clara dificuldade de lidar com o tema do abrandamento ou do abandono de iniciativas regulatórias claramente insuficientes ou ineficientes, a participação da iniciativa privada no atual momento intervencionista brasileiro parece ser um movimento sem volta.

O tópico da confiança em um modelo de autorregulação privada ainda segue sendo negligenciado, entretanto. Admiti-lo como alternativa, estudar modelos já vigentes, mensurar seus resultados, constitui agenda ainda em aberto no Brasil. Pode ser que, em alguns casos, o caráter eminentemente anárquico do novo modelo de negócios, produto ou serviço o imponha, desautorizando a ação estatal. Que o diga o modelo de serviços variados ofertados via aplicativo, em que empresas disruptivas conseguiram endereçar expectativas e entregar bem-estar à população como nenhum modelo correlato da economia tradicional havia conseguido, mesmo com o estado na condição de guardião de valores sociais e com poder coercitivo à espreita. Aguardemos. O estado regulador agoniza.


[1] Recomenda-se: https://www.conjur.com.br/2024-fev-06/revisao-da-doutrina-chevron-e-o-desequilibrio-entre-os-poderes-nos-eua/

[2] Confira:  https://www.cbo.gov/publication/59241

[3] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO. Recomendação do Conselho relativa às linhas directrizes que regem a protecção dos consumidores no contexto do comércio electrónico. Disponível em: https://www.oecd.org/sti/consumer/34023696.pdf. Acesso em: jan. 2023.

[4] Confira: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=249316

[5] Confira: https://www.jota.info/justica/estourou-a-bolha-da-lgpd-as-apostas-para-o-futuro-do-mercado-de-protecao-de-dados-102023#:~:text=Uma%20das%20explicações%20para%20o,a%20“gestão%20de%20terceiros”.

[6] MARANHÃO, Juliano; CAMPOS, Ricardo. Fake News e autorregulação regulada das redes sociais no Brasil: fundamentos constitucionais. In: ABBOUD, Georges; NERY JR., Nelson; CAMPOS, Ricardo (orgs.). Fake news e regulação. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. RB-1.15

[7] OLIVEIRA, Amanda Flávio de. 25 anos de regulação no Brasil. In MATTOS, César (org.). A revolução regulatória na nova lei das agências. São Paulo: Singular, 2021.

 

Autores

  • é professora dos cursos de graduação, mestrado e doutorado da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), doutora e mestre em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), advogada e sócia fundadora da Advocacia Amanda Flávio de Oliveira.

  • é professor associado da Universidade Federal de Goiás, Centro Universitário Alves Faria (Unialfa), Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp), pós-doutor em Direito e Psicologia, doutor em Psicologia, mestre em Direito e diretor jurídico do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar).

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