Garantias do Consumo

Três anos de vigência da Lei do Superendividamento. O que mudou?

Autor

  • Leonardo Garcia

    é procurador do estado do Espírito Santo mestre em Direito Difusos e Coletivos pela PUC-SP professor de diversos cursos e autor de diversas obras jurídicas tendo atuado como assessor do relator no Senado do projeto de lei do superendividamento.

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15 de maio de 2024, 8h00

No dia 2 de julho de 2024, a Lei 14.181/2021 (Lei do Superendividamento) fará três anos de sua publicação e vigência. Depois do Código de Defesa do Consumidor, foi a lei mais importante que já tivemos em nosso país. E por quê? Porque dificilmente tivemos uma lei que possua a capacidade de alterar significativamente e de modo tão direto a vida de quase 1/5 da população de um país (quantidade de superendividados no Brasil) [1].

É sabido que o superendividamento causa uma exclusão social, acarretando sérias consequências sociais como desemprego, divórcio, baixa escolaridade dos filhos nas famílias atingidas, aumento de moradores de rua, aumento da criminalidade, abuso de substâncias ilícitas, suicídios, etc. [2][3]

Além da mudança drástica que a lei pode promover na vida de 20% da população e da repercussão social gerada pela solução dessa “doença social”, a lei instituiu um estatuto geral da concessão do crédito no Brasil, com especificações claras de deveres a serem observados pelo concedente de crédito, de modo a respeitar a boa-fé objetiva (informação, transparência, lealdade, etc) e o princípio do crédito responsável, em que o crédito não pode mais ser concedido de maneira aleatória e irrestrita, havendo responsabilidades na concessão, de modo a ajudar o cidadão/consumidor a manter uma vida digna (não entrando no superendividamento).

Dessa forma, considerando que somos um país de endividados (que necessita de créditos para aquisição de bens em vez de poupar para adquirir), a lei, ao tratar da concessão de crédito, sobretudo com o seu viés preventivo, tem uma capacidade de influenciar a vida de quase todos os brasileiros (se não, de todos!).

Mas passados três anos, o que mudou?

Será que a lei conseguiu atingir o seu objetivo maior, prevenindo as situações de superendividamento e tratando os consumidores que se encontram nessa situação degradante de exclusão social?

Infelizmente a resposta é negativa.

Percebe-se que muito pouco foi feito (pelo menos considerando a expectativa que se tinha com relação a sua efetividade.)

Então, o que está faltando para que a lei consiga atingir a sua real finalidade, promovendo uma revolução na concessão do crédito e “curando/tratando” essa doença social chamada de “superendividamento”?

A dimensão social da lei

Primeiramente, é preciso conhecer a lei a fundo. Percebe-se, infelizmente, que muitos magistrados simplesmente desconhecem a lei e a sua correta aplicação. A lei do superendividamento trouxe um novo procedimental no tocante ao tratamento judicial (artigo 104-A do CDC). Assim, é preciso que os juízes e tribunais se atualizem, principalmente buscando entender a ratio da lei (que busca como finalidade, ao menos no tocante ao artigo 104-A, tratar o consumidor superendividado, resgatando a sua dignidade na sociedade).

São várias decisões de ações de repactuação de dívidas impondo requisitos inexistentes (como a necessidade de o plano de pagamento apresentado pelo consumidor na petição inicial contemplar o principal da dívida; a exigência de apresentação de todos os contratos celebrados quando é sabido que, na maioria das vezes, os contratos não são entregues aos consumidores; extinção da ação sem a realização da audiência conciliatória; necessidade de indicação de ordem cronológica das dívidas para conhecimento do procedimento; obrigatoriedade do consumidor apresentar o plano de pagamento na petição inicial, etc.).

Ao contrário do espírito da lei, percebe-se que o tratamento do consumidor superendividado, no âmbito judicial, só acontece de modo excepcional, quando, na verdade, uma vez superendividado, todo consumidor merece ser tratado (com a definição do plano de pagamento de acordo com a realidade da vida econômica do consumidor e de sua família – manutenção do mínimo existencial).

Nesse sentido, uma premissa é fundamental de ser melhor compreendida. O superendividamento causa exclusão social, causando enormes males sociais como os já citados. O tratamento do superendividamento passa, antes de mais nada, por uma solução social, de conotação coletiva e que precisa ser resolvida urgentemente.

Enquanto considerarmos o tratamento do consumidor superendividado como meramente uma questão humanitária, de respeito somente à pessoa do cidadão que busca o Judiciário para resolver os seus problemas financeiros, não teremos a dimensão correta para aplicarmos a lei de maneira efetiva.

O confronto a ser feito não é o direito de crédito X  dever de pagar (ao menos o principal) para que credores não tenham prejuízos, mas sim “tratar” o consumidor que superendividou, de modo a resgatar a dignidade do mesmo, evitando as mazelas advindas do superendividamento e que atingem a toda a sociedade [4].

Uma nova postura institucional

Um outro aspecto que precisa ser alterado é com relação à atuação mais efetiva dos órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, principalmente os Procons, inseridos no artigo 104-C do CDC [5][6].

É necessário um novo agir destes órgãos. Realmente é um grande desafio! Atender 20% da população que está superendividada e que já merece o tratamento não é fácil, principalmente pensando em estrutura física, pessoal, logística, etc, sem falar que o tratamento é multidisciplinar, carecendo de outros profissionais para a sua realização (economistas, contadores, psicólogos, assistentes sociais, etc).

Ao mesmo tempo que é um grande desafio, é uma grande oportunidade de esses órgãos, principalmente os Procons, se estruturarem e assumirem o protagonismo em um problema que irá impactar profundamente toda a sociedade brasileira (principalmente considerando a resolução de várias mazelas sociais, como a diminuição dos moradores de rua, entre outros).

Mas como os Procons, que em sua grande maioria, não possuem servidores suficientes nem para os problemas cotidianos e estrutura compatível com um órgão de defesa do consumidor conseguirá dar vazão a esse enorme desafio, possibilitando o tratamento multidisciplinar de centenas e até milhares de consumidores em sua localidade?

Plataforma

Em artigo publicado aqui no ConJur e quando da minha participação no grupo de trabalho instituído pelo CNJ, defendi a necessidade do uso de uma plataforma, com utilização de banco de dados e uso da inteligência artificial.

Rememorando, trago as inúmeras vantagens que uma plataforma de tratamento do consumidor superendividamento implementada pelos Procons traria:

1) A possibilidade de a plataforma abranger todo um município ou estado (e até mesmo o país inteiro), sem necessidade de ter, necessariamente, um procon, defensoria pública ou ministério público na localidade;

2) A facilidade de o consumidor enviar todos os dados das dívidas (contratos), bem como inserir os dados dos custos de vida através de um site ou aplicativo, não precisando se deslocar presencialmente para solicitar o tratamento;

3) Possibilidade, caso o consumidor requeira ou a própria plataforma sugira, de atuação de um psicólogo ou assistente social, que poderá atender o consumidor de maneira online (pela própria plataforma);

4) Possibilidade de o consumidor, de modo fácil, através do celular, enviar uma denúncia de abuso na concessão do crédito (podendo enviar fotos, documentos, etc), e a plataforma notificar o fornecedor imediatamente da reclamação/denúncia (caso este fornecedor já esteja cadastrado). A participação do consumidor como “fiscal da concessão do crédito”, denunciando os abusos praticados no mercado, é importante para concretizarmos a fase preventiva da lei;

5) Possibilidade de o envio das intimações e/ou notificações dos credores pela própria plataforma, com comprovação de recebimento, não necessitando do envio de cartas por AR, gerando economia de tempo e custo;

6) Possibilidade de elaboração de um plano de pagamento automatizado, a partir dos dados inseridos pelo consumidor superendividado (dívidas e renda), com parâmetros do mínimo existencial, não necessitando de um profissional de economia para a realização de cada plano;

7) Possibilidade de a plataforma mostrar, com base no big data disponível, gráfico que indique propostas, considerando o credor e o tipo de dívida, com maiores chances de êxito;

8) A possibilidade, embora a lei não preveja, de o credor poder enviar uma proposta de pagamento (os termos em que aceitaria uma repactuação), mesmo antes da apresentação do plano de pagamento, gerando praticidade e transparência;

9) Possibilidade de realização de audiências assíncronas (as partes não precisam estar em contato ao mesmo tempo – simultaneamente), com o envio do plano de pagamento para todos os credores, possibilitando em um determinado prazo que cada um se manifeste pela anuência ou não e, em caso negativo, que esclareça as razões pelo não aceite do plano apresentado. Dentro deste prazo, cada credor terá tempo suficiente para avaliar os dados e a proposta enviada pelo consumidor, podendo aferir, por exemplo, a veracidade das informações.

10) A realização da audiência assíncrona é eficiente porque:

a) O consumidor e os credores não precisam se deslocar até a sede do procon ou defensoria pública para a realização da audiência;

b) Facilita a participação dos credores que não precisam manter representantes e advogados em cada cidade do país;

c) Possibilita um tempo para que os credores avaliem a veracidade das informações prestadas pelo consumidor;

d) Possibilita um tempo de análise do plano de pagamento por parte dos credores;

e) Evita o constrangimento de o consumidor estar por algumas horas sendo exposto aos credores;

f) Gera economia porque não necessita de estrutura física para as audiências globais e nem de servidores (conciliadores e mediadores) para os atos;

g) Em caso de aceite do credor ao plano de pagamento, é gerado automaticamente termo de acordo, não necessitando de servidor para redigir o termo;

h) Em caso de não aceite do credor ao plano, há possibilidade (em caso de convênio) de envio direto ao poder judiciário para o ajuizamento da ação de revisão e repactuação de dívidas (artigo 104-B) com atuação de um advogado ou defensor público;

11) Possibilidade de registro do resumo histórico da negociação, principalmente em caso de não acordo, para subsidiar o magistrado na definição do plano de pagamento compulsório (artigo 104-B), avaliando principalmente se o credor se portou com boa-fé ao tentar conciliar;

12) Possibilidade de acompanhamento do pagamento das prestações do plano acordado e/ou do plano compulsório instituído pelo magistrado.

13) A desjudicialização do tratamento do superendividamento. Sendo efetiva e com acesso facilitado o consumidor irá optar pelo tratamento extrajudicial, deixando o judiciário somente para as hipóteses de não acordo (plano judicial compulsório), gerando economia de custos para a sociedade, uma vez que o processo judicial é extremamente caro.

Assim, essas são algumas das inúmeras vantagens que o uso de uma plataforma pode proporcionar no tratamento do consumidor superendividado.

A contratação da plataforma poderia ser dar no âmbito estadual (com recursos do fundo estadual), disponibilizando o seu acesso para todos os residentes daquele estado da federação. Uma só contratação atendendo a todo o Estado. Assim, não seria preciso estruturar, física e pessoalmente, cada Procon de determinado estado para que possibilite o tratamento do consumidor superendividado de forma ampla e rápida.

Espera-se com isso que os Procons possam assumir, verdadeiramente, o protoganismo na resolução deste problema social, uma vez que envolve a temática da qual é expert e para o qual foi criado: atuar nas relações de consumo, protegendo os consumidores que precisam de sua ajuda.

 


[1] Após dois anos de histórica lei, superendividamento salta e especialistas procuram soluções. Consulta em 08/05/24: https://valorinveste.globo.com/produtos/credito/noticia/2023/07/19/apos-dois-anos-de-lei-historica-superendividamento-da-salto-no-brasil-e-especialistas-procuram-solucoes.ghtml

[2] LIMA, Clarissa Costa de. O Tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. Ed. Revista dos Tribunais, 2014, pg.27.

[3] A pesquisa realizada em 2018 pela Confederação Nacional de Dirigentes e Logistas (CNDL) e SPC Brasil intitulada “Inadimplência: Impactos nas Emoções”, demonstrou que as pessoas inadimplentes há 90 dias tiveram vários sentimentos maléficos como ansiedade, estresse, angústia, culpa, depressão, tristeza, desânimo, vergonha, sentimentos de derrota e fracasso, falta de paciência, irritação, entre outros. Disponível em: https://www.spcbrasil.org.br/wpimprensa/wp-content/uploads/2018/10/analise_perfil_inadimplente_emocoes.pdf. Acesso em: 11/11/2021.

[4] Como base nesta premissa e no princípio da dignidade da pessoa humana é que defendemos que o plano de pagamento pode conter valores abaixo do principal ou até mesmo que o consumidor não pague nada durante o período de 5 anos, caso não tenha condições de efetuar o pagamento de nenhuma prestação.

[5] O tratamento do consumidor superendividamento está sendo feito majoritariamente pelo judiciário (art. 104-A) porque os órgãos do SNDC não têm se estruturado para realizar este desafio.

[6] O art. 104-C não constava inicialmente do Projeto de Lei dos juristas. Foi incluído, logo no primeiro relatório no Senado Federal por mim e pela Dra. Sandra Lengruber, com base nas sugestões do Brasilcon.

Autores

  • é procurador do Estado do Espírito Santo, mestre em Direito Difusos e Coletivos pela PUC-SP, ex-assessor do relator no Senado dos projetos de lei de atualização do CDC, membro do GT do CNJ para acompanhamento da efetividade da Lei do Superendividamento, professor de diversos cursos e autor de diversas obras jurídicas.

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