Opinião

Restrições à mudança da fundamentação da dosimetria em apelações defensivas

Autor

  • David Metzker

    é sócio do escritório Metzker Advocacia advogado criminalista professor e palestrante pós-graduado em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS e MBA em Gestão Empreendedorismo e Marketing pela mesma instituição diretor cultural e acadêmico da Abracrim-ES.

4 de março de 2024, 15h23

No âmbito do Direito Penal brasileiro, enfrentamos muitos desafios, especialmente no que diz respeito à dosimetria da pena. Essa dosimetria, situada no contexto da discricionariedade vinculada do magistrado, desempenha um papel crucial na determinação de uma pena justa, visando atingir os objetivos delineados pela legislação penal.

O método empregado, evoluindo em três fases, busca uma precisão análoga à administração de uma dose farmacológica: nem excessiva, com potencial para causar efeitos deletérios ou até a morte, nem insuficiente, falhando em alcançar o propósito desejado.

Essencialmente, a dosimetria deve ser precisa, ajustada à situação em questão, refletindo a importância da exatidão ao aplicar a pena.

A correta aplicação da pena incumbe a todos os envolvidos no processo judicial. Inexatidões na dosimetria podem levar a consequências gravíssimas, prejudicando tanto a sociedade, pela reabilitação inadequada do réu, quanto o próprio indivíduo, ao expô-lo a condições prisionais desumanas.

Assim, é crucial que tanto a defesa quanto a acusação estejam vigilantes e preparadas para identificar e corrigir quaisquer desvios, assegurando que as instâncias superiores ajustem a pena de maneira justa e adequada, conforme apontado pelas partes.

Pesquisa
Desde o ano passado, tenho conduzido uma pesquisa focada na identificação e análise das concessões de ordens em Habeas Corpus (HC) e Recursos Ordinários em Habeas Corpus (RHC) no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

O método empregado baseia-se na análise de expressões-chave utilizadas pelos ministros nas decisões que concedem as ordens. Por meio de uma revisão preliminar no Diário Oficial, identifiquei 14 expressões comumente usadas nas concessões monocráticas e oito nas concessões colegiadas.

Utilizando essas expressões como filtros em uma busca diária por jurisprudência, com a devida atenção às datas, tenho sistematicamente compilado as concessões. No ano passado, esse método resultou na identificação de 19.703 concessões, entre decisões monocráticas e colegiadas. Este ano, já foram contabilizadas mais de 1.900 concessões.

Dosimetria é o tema mais frequente
Na fase de análise, catalogamos diversas informações, organizando-as em planilhas e criando gráficos para facilitar a interpretação dos dados. Dentre as informações catalogadas, o tema de cada concessão foi destacado, sendo a dosimetria da pena o assunto mais recorrente, representando mais de 28% das concessões analisadas.

STJ

Problemas frequentes incluem a imprecisão na fração aplicada nas primeiras fases, a ausência de fundamentação adequada para valorar negativamente uma circunstância, a aplicação inadequada da confissão, seja ela parcial, qualificada, extrajudicial ou retratada em juízo, a falta de compensação da confissão com a reincidência específica ou multirreincidência, a aplicação cumulativa de majorantes especiais sem a devida fundamentação, bis in idem na dosimetria e a não aplicação do redutor legal do tráfico.

STJ e a redução proporcional da pena-base
Há também o problema quando o tribunal altera ou inova na fundamentação para manter um aspecto negativo na dosimetria, especificamente na primeira fase da dosimetria.

A 3ª Seção do STJ está discutindo, nos REsp 2.058.970, REsp 2.058.971, e REsp 2.058.976, a formação de uma tese em Tema Repetitivo sobre se “é obrigatória a redução proporcional da pena-base quando o tribunal de segunda instância, em recurso exclusivo da defesa, afasta circunstância judicial negativa reconhecida na sentença”.

Existem diversos julgados, por ambas as Turmas, que defendem a impossibilidade de alterar ou inovar a fundamentação quando uma circunstância judicial do artigo 59 do CP é considerada inidônea, mantendo assim a pena-base aplicada pelo juízo sentenciante.

Esta abordagem foi solidificada no julgamento do EREsp 1.826.799/RS pela 3ª Seção, que afirmou ser “imperiosa a redução proporcional da pena-base quando o tribunal de origem, em recurso exclusivo da defesa, afasta uma circunstância judicial negativa do artigo 59 do CP reconhecida no édito condenatório”.

Necessidade de impedir a reformatio in pejus
Em algumas ementas, a abordagem é ainda mais ampla, como demonstrado no AgRg no AREsp nº 2.441.311/GO, relatado pelo ministro Ribeiro Dantas, da 5ª Turma, julgado em 30/11/2023, e publicado em 5/12/2023, bem como no AgRg no HC nº 847.452/RJ, também relatado pelo ministro Ribeiro Dantas, da 5ª Turma, julgado em 9/10/2023, e publicado em 16/10/2023. Nestes casos, respectivamente, destacam-se os textos:

“Consoante o entendimento da Terceira Seção deste STJ, o Tribunal local não pode, em recurso exclusivo da defesa, complementar a fundamentação adotada pelo juízo sentenciante ou sanar deficiências na motivação da sentença para, em desfavor do réu, manter a mesma pena aplicada em primeira instância.”

“A Terceira Seção, em 8/9/2021, ao julgar os Embargos de Divergência em REsp n. 1.826.799/RS, por maioria de votos, passou a entender que quando o Tribunal de origem, em recurso exclusivo da defesa, afasta a valoração negativa de algum elemento da dosimetria da pena, deve reduzir a sanção proporcionalmente, e não realocá-lo.”

Apesar da discussão inicial ter sido focada na primeira fase da dosimetria, acredito que esse entendimento trazido pelo ministro Ribeiro Dantas se deveu ao voto do ministro Rogério Schietti, que aparentemente, ampliou a perspectiva, enfatizando a necessidade de impedir a reformatio in pejus em todas as fases da dosimetria:

“Sob a premissa, portanto, de que a proibição da reforma para pior diz respeito a cada item do dispositivo da pena, e não apenas ao quantum total da dosimetria”.

Considerações finais
Caso essa tenha sido realmente a interpretação adotada pelo ministro Schietti, considero que foi com total razão. Caso contrário, creio que o assunto merece uma reflexão mais aprofundada e a extensão dessa abordagem para todas as fases da dosimetria da pena. Isso deve abranger não somente situações de exclusão de vetoriais do artigo 59 e manutenção da pena-base, mas é preciso evitar alterações e inovações da fundamentação na dosimetria em recursos exclusivos da defesa, apesar do efeito devolutivo do recurso.

É inaceitável que, diante de uma ilegalidade na fundamentação apontada pela defesa em recurso, o relator opte por alterações ou inovações que ainda prejudiquem o réu. Idealmente, a correção dessa ilegalidade pelo relator deveria beneficiar o réu.

Contudo, em muitos casos, mesmo com a defesa identificando e destacando erros na fundamentação em busca de um resultado mais favorável, o desfecho permanece adverso no recurso exclusivo da defesa. Isso porque a fundamentação inicialmente deficiente é modificada ou atualizada pelo relator, mantendo o prejuízo ao réu.

Este cenário questiona a eficácia da defesa ao expor tais ilegalidades, quando as alterações implementadas fazem com que sua situação fique pior em recurso interposto por sua defesa.

A expectativa é que o juiz aplique a pena com precisão, evitando erros na dosimetria. Entretanto, embora não se esperasse que o juiz errasse nessa matéria crucial, se um erro acontecesse, caberia ao Ministério Público, conhecedor das jurisprudências dos tribunais superiores e como fiscal da lei, identificar e buscar a correção dessa dosimetria inadequada. Contudo, o Ministério Público se absteve de recorrer para ajustar a dosimetria.

Quando a defesa, diligente, aponta um erro na dosimetria, baseando-se em precedentes e legislação, espera-se a remoção da ilegalidade. No entanto, paradoxalmente, o réu é prejudicado porque o relator, ao invés de declarar a ilegalidade e reduzir a pena, adiciona argumentação para justificar a manutenção da pena.

Esse procedimento é contraditório, especialmente considerando que o efeito devolutivo do recurso, embora possa permitir complementar a fundamentação sobre autoria e materialidade — o que não está em discussão aqui, não deveria ser aplicado indiscriminadamente às várias etapas da dosimetria.

Este paradoxo, em que a ação diligente da defesa resulta em prejuízo ao réu devido à alteração ou inovação na fundamentação pelo relator, desafia a lógica do processo judicial.

O que se discute aqui é que o efeito devolutivo nos recursos de apelação não deveria alcançar a dosimetria de forma a prejudicar a defesa ao apontar ilegalidades. Isso destaca a importância de evitar a reformatio in pejus em todas as fases da dosimetria em recurso exclusivo da defesa.

Autores

  • é advogado criminalista, mestrando em Direito Penal no IDP/Brasília, especialista em Direito Processual e Penal Econômico e MBA em Gestão pela PUC-RS.

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