Federalismo centrífugo

STF atual fortalece autonomias regionais, diz líder de procuradores legislativos

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3 de março de 2024, 9h45

Logo após a Constituição de 1988, prevalecia a ideia de um “federalismo centrípeto”, modelo de organização política em que se privilegia um poder central (no caso do Brasil, a União) em detrimento dos poderes locais (estados e municípios). Hoje, todavia, essa organização foi se tornando mais centrífuga, com posicionamentos do Supremo Tribunal Federal garantindo que questões regionais sejam levadas em consideração ao analisar normas de cidades e estados.

Ricardo Benneti Moça, presidente da Anpal A reflexão é do presidente da Associação Nacional dos Procuradores e Advogados do Poder Legislativo (Anpal), Ricardo Benetti Fernandes Moça, procurador da Assembleia Legislativa do Espírito Santo. À revista eletrônica Consultor Jurídico, Moça afirma que a atual composição do STF fortaleceu a autonomia normativa regional, respeitando as peculiaridades dos entes na hora de legislar. Segundo ele, esse movimento “resulta na efetividade do equilíbrio federativo”.

Perguntado sobre o trabalho de orientação em relação aos parlamentares, que muitas vezes utilizam o expediente legislativo apenas para fustigar atritos com outros poderes, como no caso da não obrigatoriedade de vacina contra a Covid-19 para estudantes, Moça afirma que há uma “tendência” nesse sentido, mas que a posição dos procuradores não pode substituir a posição dos deputados eleitos.

“Não há como o Direito ser separado da política, já que a lei, em sentindo amplo, nada mais é do que o produto final da vontade das maiorias eleitas. Porém, apesar das suas órbitas se cruzarem, o papel das procuradorias, principalmente na assessoria e na consultoria jurídica, é subordinado integralmente à Constituição da República e aos princípios constitucionais e legais, dando um tempero de tecnicismo a discussões legítimas que ocorrem no Parlamento.”

Eleito no final de 2022 para a presidência da Anpal, Moça afirma que a principal reivindicação da categoria é a inclusão dos procuradores legislativos na Constituição. Hoje, a carreira não está expressa na Carta e está delineada a partir de “construção doutrinária e jurisprudencial”. “Mas amanhã pode deixar de ser, eis que as instituições são compostas por pessoas.”

Sobre a discussão em torno dos pagamentos aos procuradores, motivo de ação recente no Supremo (ADI 2.820), que definiu que esses profissionais não podem ter equiparação automática aos procuradores do Estado, Moça afirma que a decisão não foi um obstáculo às pretensões da categoria.

“Isso não significa um óbice, dentro de uma escolha política para que se fixem subsídios parelhos entre os procuradores estaduais e os procuradores legislativos, desde que a determinação tenha caráter instantâneo, iniciativa legiferante de cada poder e não alcance reajustes automáticos posteriores.”

Leia a entrevista:

ConJur — Quais são, hoje, as principais angústias dos procuradores legislativos?
Ricardo Fernandes Moça A bandeira uníssona entre os procuradores legislativos é a necessidade de inserir textualmente a nossa carreira na Constituição, que já é realidade em relação às procuradorias de Assembleias Legislativas na grande maioria das Constituições estaduais pelo Brasil. Apesar de hoje a advocacia pública do Poder Legislativo ser uma realidade nas duas casas do Congresso Nacional por meio da Advocacia do Senado e da Advocacia da Câmara dos Deputados e de estarmos presentes em 26 estados e no Distrito Federal, a nossa existência acaba por ser fruto de uma construção doutrinária e jurisprudencial que hoje é pacífica e consolidada, mas amanhã pode deixar de ser, eis que as instituições são compostas por pessoas. Assim, levar a nossa essência para o texto maior significa trazer segurança jurídica e reconhecer o trabalho desempenhado por esses procuradores. E também eliminaria essa angústia de um difícil, mas possível retrocesso jurisprudencial.

ConJur — Como se concilia a atuação de procurador legislativo com o atual momento da política partidária, em que os limites da liberdade de expressão estão sendo testados a todo o momento?
Ricardo Fernandes Moça Por mais que os limites da liberdade de expressão estejam sendo testados, notadamente com o advento das redes sociais, esses conflitos também evidenciaram ainda mais a essência de uma advocacia pública do Poder Legislativo forte e bem estruturada. Hoje, não existe procuradoria legislativa no Brasil que não dê amparo técnico diariamente, seja através de pareceres ou de atuações judiciais, objetivando o resguardo e o correto uso das imunidades parlamentares.

ConJur Há muitos questionamentos nos Tribunais de Justiça e nos tribunais superiores sobre leis municipais e estaduais que extrapolam as competências dos entes. Como é a atuação do procurador nesse sentido?
Ricardo Fernandes Moça  
Via de regra, assessoramos sob o aspecto jurídico a mesa diretora ou a presidência nas informações prestadas nos autos, buscando a defesa da constitucionalidade das leis de iniciativa parlamentar que são impugnadas no controle abstrato. Também somos responsáveis por auxiliar tecnicamente a confecção das petições iniciais em sede de ADI, ADPF ou ADC, nos casos em que a ação de controle concentrado é de iniciativa das mesas diretoras.

Há previsões em diversas Constituições estaduais de que os procuradores das Assembleias Legislativas são curadores da constitucionalidade nos processos de controle concentrado que se iniciam nos Tribunais de Justiça, o que já foi declarado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 119. Viabiliza-se, nesse caso, a defesa da lei questionada pelos seus próprios autores. É salutar e necessário que o Poder Legislativo mantenha o seu espaço de fala nas ações de controle concentrado de constitucionalidade, bem como que essa atuação se dê via assessoria técnica dos procuradores legislativos.

ConJur Como conciliar a atuação de procurador da Assembleia Legislativa, que atua para defender os interesses daquele parlamento, e o resguardo da Constituição Federal?
Ricardo Fernandes Moça Em relação à criação das normas e à atividade fiscalizatória do Poder Legislativo, não há como o Direito ser separado da política, já que a lei, em sentindo amplo, nada mais é do que o produto final da vontade das maiorias eleitas. Porém, apesar das suas órbitas se cruzarem, o papel das procuradorias, principalmente no assessoramento e consultoria jurídica, é subordinado integralmente à Constituição da República e aos princípios constitucionais e legais, dando um tempero de tecnicismo a discussões legítimas que ocorrem no parlamento.

ConJur O senhor acredita que estados e municípios extrapolam seus limites em termos de legislação? Acha que há necessidade de um trabalho mais intenso das procuradorias no sentido de orientar os parlamentares?
Ricardo Fernandes MoçaPenso que, por muito tempo, prevaleceu no Brasil pós-88 a ideia de um federalismo centrípeto, no que tange a iniciativa para legislar dos entes federativos, concentrando as principais temáticas na União. Essa linha interpretativa acabou acarretando uma enxurrada de declarações de inconstitucionalidade de normas estaduais e municipais. No entanto, a atual composição do Supremo Tribunal Federal vem ajudando a fortalecer, dentro do aspecto legiferante, a ideia de um federalismo centrífugo, priorizando o fortalecimento das autonomias regionais e locais e o respeito às suas diversidades como pontos observados na produção de leis, o que, na minha visão, resulta na efetividade do equilíbrio federativo.

Quanto à participação das Procuradorias e consultorias nesse trabalho orientativo, tenho visto que se tornou uma tendência, principalmente nas Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais. Mas devemos sempre ter em mente de que somos o meio, e não o fim, além do que o nosso papel orientativo é o de trazer segurança jurídica e resguardo legal aos atos praticados e editados pelo Poder Legislativo, pelas suas comissões e pelos seus membros, mas jamais de substituí-los, pois são os parlamentares os representantes eleitos.

ConJur E qual o principal gargalo na atuação dos procuradores legislativos?
Ricardo Fernandes MoçaSuperar uma visão reducionista de que a nossa legitimidade para representar o Poder Legislativo em juízo deve necessariamente pressupor o litígio com outro Poder instituído. Quando o saudoso ministro Victor Nunes Leal, na década de 50, iniciou o estudo embrionário sobre a necessidade das Câmaras Municipais defenderem sua autonomia e prerrogativas pela via judicial, o caso concreto analisado, e que deu origem ao seu famoso texto “Personalidade Judiciária das Câmaras Municipais”, dizia respeito à ausência do repasse duodecimal do Poder Executivo ao Poder Legislativo, ou seja, uma violação a independência e a separação de poderes perpetrada pelo Executivo. Isso não quer dizer que o Legislativo só possa estar em juízo quando litigar em face de outro Poder.

Um exemplo prático: imaginemos uma ação popular, ajuizada por um cidadão que pretende anular a eleição de membros de uma mesa diretora de Assembleia Legislativa, assunto que é de ordem interna. Parece-nos bem claro e evidente que o procedimento das eleições internas do parlamento são matérias interna corporis, conectadas às prerrogativas e autonomias das próprias casas de leis, não havendo, nesse caso, qualquer interesse do estado federativo figurar no polo passivo. Até porque, levando em conta o mesmo exemplo, se uma ação com o mesmo objeto fosse movida pelo estado, ou fosse proposta uma ADI por intermédio do governador, discutindo possibilidade de reeleições ilimitadas, dúvidas não existiriam que a representação judicial da Assembleia Legislativa seria realizada pelo seu próprio órgão de advocacia.

Acreditamos, sobremaneira, que a nossa Corte Suprema vem evoluindo para romper esse gargalo, o que ficou bem claro dos fundamentos do acórdão firmado na ADI 2.820, em que ficou definido que o critério de legitimidade da atuação da procuradoria da Assembleia Legislativa diz respeito mais ao conteúdo e à finalidade da atuação, ou seja, às causas, situações, demandas e feitos relacionados à proteção, autonomia, independência e prerrogativas do Legislativo.

ConJur Como o senhor analisa a atual discussão sobre equiparação salarial dos procuradores legislativos, como no caso da ADI 2.820?
Ricardo Fernandes Moça A interpretação que fiz do julgado é de que o Supremo Tribunal Federal não permite (com razão) a vinculação automática dos subsídios de procuradores estaduais com os procuradores das Assembleias Legislativas, bem como ressalta a exigência de lei específica para a fixação da remuneração de cada uma das carreiras. Isso não significa um óbice, dentro de uma escolha política para que se fixem subsídios parelhos entre os procuradores estaduais e os procuradores legislativos, desde que a determinação tenha caráter instantâneo, iniciativa legiferante de cada Poder e não alcance reajustes automáticos posteriores.

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