Opinião

PL pode corrigir erro e confirmar a relação de consumo entre usuários e redes sociais

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3 de março de 2024, 9h28

A expansão dos serviços na economia contemporânea é fenômeno inquestionável, especialmente em razão da evolução tecnológica e da crescente robotização do processo produtivo.

Na prática, o que vemos é o capital humano, gradualmente, ser substituído por algoritmos, provocando assim uma indubitável migração de mão de obra especializada para o setor de serviços, haja vista a necessidade de novos prestadores de serviços tecnológicos especializados na implementação de procedimentos automatizados no âmbito dos serviços tradicionais.

Nesse sentido, basta pensarmos em atividades cotidianas, como a profusão das operações bancárias por meio de aplicativos, a disposição de caixas automáticos em supermercados e redes de fast food, a instalação de catracas eletrônicas no transporte coletivo, o atendimento virtual de ouvidorias/SACs, a popularização do denominado marketing digital, entre outras.

Segundo as estatísticas, os serviços representam aproximadamente 70% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro [1], tornando relevante a discussão sobre a definição legal de serviço à luz da legislação pátria, especialmente no âmbito das relações de consumo, em que a relação jurídica necessita, muitas vezes, da intervenção estatal para equilíbrio e atendimento da função social do contrato.

O que diz o Código de Defesa do Consumidor?
No âmbito de seu respectivo microssistema, o Código de Defesa do Consumidor assim define:

“Art. 3°
§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.

Da leitura do dispositivo, observamos que o diploma consumerista afasta os serviços não remunerados, o que dá ensejo a equivocadas interpretações, uma vez que a remuneração pode se dar de maneira direta, quando o consumidor paga diretamente ao fornecedor pelo serviço prestado ou de maneira indireta, quando o consumidor proporciona benefícios comerciais indiretos ao fornecedor, advindos da própria prestação de serviços, estando a remuneração diluída e embutida em outros custos [2].

Desse modo, defendemos que o CDC afasta apenas os serviços puramente gratuitos, ou seja, prestados no exclusivo interesse do beneficiário, sem vantagem financeira para o fornecedor, mas não aqueles aparentemente gratuitos, nos quais o empresário oferta determinado serviço para, por exemplo, obter dados do usuário, vender publicidade, influenciar comportamentos, moldar percepções, etc.

Não à toa, julgados por todo o Brasil já indicam o caminho da existência de relação de consumo em casos nos quais é constatada a remuneração indireta do fornecedor na prestação de determinado serviço, como se observa na leitura dos julgados abaixo transcritos:

“APELAÇÃO – OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C PERDAS E DANOS MORAIS. Alegação de que a autora possuía conta da rede social da ré, “Instagram”, a qual faz o uso profissional. Conta invadida por terceiros que passaram a solicitar valores a outras pessoas pelo aplicativo. Pretensão de concessão de tutela de urgência para a recuperação da conta e, ao final da ação, a condenação da ré ao pagamento de indenização por danos morais. Tutela concedida. Sentença de procedência, com a confirmação de tutela, junto à condenação do réu ao pagamento de indenização em R$10.000,00. Irresignação da requerida. APLICABILIDADE DO CDC. Relação de consumo configurada entre as partes. RESPONSABILIDADE. Verificada a má prestação dos serviços. Responsabilidade objetiva da requerida. Inteligência do Art. 14 do CDC. DANOS MORAIS. Cabíveis. SUCUMBÊNCIA. Ré que deu causa ao ajuizamento da ação e deve arcar com os ônus da sucumbência. Sentença mantida. Recurso desprovido.” (TJ-SP – Apelação nº 1011338-27.2022.8.26.0278 – 4ª Câmara de Direito Privado – des. rel. Vitor Frederico Kümpel – j. 26/09/2023)

“APELAÇÃO. Ação de obrigação de fazer c/c reparação de dano moral. Perfil social da autora na plataforma Facebook invadido por terceiros. Sentença de procedência. Apelação manejada pela ré. EXAME: Ausência de violação do princípio da dialeticidade recursal. Impugnação dos fundamentos da sentença. Relação de consumo. Falha no dever de segurança configurada. Serviço defeituoso nos termos do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor. Ausência de excludente de responsabilidade decorrente de culpa do autor ou de culpa exclusiva de terceiro. Ré que não se desincumbiu do ônus probatório. Teoria do risco. Dano moral caracterizado. Exposição de informações pessoais da autora. Violação aos direitos de personalidade. Transtornos na tentativa de recuperar a conta. Recuperação que só ocorreu por meio da intervenção judicial. Inteligência do art. 12 do Código Civil. “Quantum” fixado em sentença, todavia, que deve ser reduzido para R$5.000,00, valor que melhor se amolda às peculiaridades do caso concreto e está em consonância com a jurisprudência em casos semelhantes. Sentença reformada em parte. RECURSO PROVIDO EM PARTE.” (TJ-SP – Apelação nº 1016361-72.2023.8.26.0001 – 27ª Câmara de Direito Privado – des. rel. Celina Dietrich Trigueiros – j. 16/2/2024)

O que defende o projeto de lei?
O assunto ganha maior importância com a apresentação do Projeto de Lei nº 5.864/2023, de autoria do deputado Romero Rodrigues, que busca reconhecer a existência de relação de consumo mantida entre os provedores de redes sociais (Facebook, Instagram, Tik-Tok, X, etc.) e seus usuários, destacando o texto o “desequilíbrio de forças entre esses atores”, o que torna preponderante a proteção desta parte vulnerável alcunhada de usuário.

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Na prática, o mencionado projeto tem o condão de pacificar o tema, afastando o pernicioso argumento das Big Techs de que o serviço disponibilizado é gratuito, no intuito de excluir a responsabilidade disposta na legislação consumerista.

Mas não para por aí. Defendemos que o Projeto pode, oportunamente, corrigir uma antinomia jurídica instalada desde a promulgação do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), o que explicaremos a seguir como sugestão de aperfeiçoamento do texto proposto pelo nobre deputado.

Vale lembrar que, na Seção III, o incauto Marco Civil da Internet aponta uma responsabilidade subsidiária dos provedores de aplicação e plataformas por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, conforme se extrai da leitura conjunta dos artigos 19 e 21 da Lei, in verbis:

“Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.”

“Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.”

A incidência do CDC entre usuários e as redes sociais
No entanto, sendo a relação entre usuário e provedor (rede social) de consumo, resta evidente a incidência da responsabilidade objetiva e solidária do provedor, nos moldes da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), peça fundamental em razão do desequilíbrio entre as partes envolvidas.

Nesse cenário, não há dúvida de que o projeto em trâmite poderia, e deveria, resolver o paradoxo existente entre o texto do Marco Civil da Internet e o Código de Defesa do Consumidor. Havendo o lucro a partir de suas atividades, não é minimamente razoável que o prejuízo delas decorrente recaia apenas sobre seus usuários, como dispõe o artigo 19, “caput” da Lei n° 12.965/14.

Sendo assim, ao ser comunicado de que determinado texto, vídeo ou imagem possui conteúdo ilícito, deve o provedor (rede social) agir de forma efetiva, excluindo o conteúdo da rede imediatamente, sob pena de responder solidariamente com o ofensor direto, em virtude da omissão praticada.

No atual contexto tecnológico, não parece crível que os provedores e plataformas não disponham de ferramentas para identificar contas falsas, notícias falsas, a prática de crimes e conteúdos ofensivos ou impróprios, especialmente após comunicação ou denúncia do usuário.

Não é aceitável, por exemplo, que uma conta recentemente criada realize, do dia para a noite, anúncios milionários de produtos e serviços, profira ofensas a determina pessoa ou grupo, bem como pratique crimes de toda a sorte.

Assim como existem diversos sites que categorizam seus usuários pelos seus níveis de confiança, as plataformas devem criar filtros de segurança e algoritmos próprios para o monitoramento das redes sociais, possibilitando maior controle sobre as atividades ilícitas; e sem que isso venha representar qualquer forma de censura, o que também não seria desejável, evidentemente.

A teoria do risco
Por força da teoria do risco da atividade, o empresário responde, necessariamente, pelos danos a que der causa, cabendo ao provedor disponibilizar aparato técnico suficiente para a retirada do conteúdo que represente ilicitude (dever de segurança), o que, certamente, não interferirá na preservação da liberdade de manifestação, de pensamento e de expressão.

Sobre o tema, merece destaque julgado do STJ, o qual, antes da vigência do Marco Civil da Internet, embora afastasse a responsabilidade objetiva, destacava a responsabilidade solidária do provedor diante de eventual omissão. Vejamos:

“DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. INTERNET. RELAÇÃO DE CONSUMO. INCIDÊNCIA DO CDC. GRATUIDADE DO SERVIÇO. INDIFERENÇA. PROVEDOR DE CONTEÚDO. FISCALIZAÇÃO PRÉVIA DO TEOR DAS INFORMAÇÕES POSTADAS NO SITE PELOS USUÁRIOS. DESNECESSIDADE. MENSAGEM DE CONTEÚDO OFENSIVO. DANO MORAL. RISCO INERENTE AO NEGÓCIO. INEXISTÊNCIA. CIÊNCIA DA EXISTÊNCIA DE CONTEÚDO ILÍCITO. RETIRADA IMEDIATA DO AR. DEVER. DISPONIBILIZAÇÃO DE MEIOS PARA IDENTIFICAÇÃO DE CADA USUÁRIO. DEVER. REGISTRO DO NÚMERO DE IP. SUFICIÊNCIA.

  1. A exploração comercial da internet sujeita as relações de consumo daí advindas à Lei nº 8.078⁄90.

  2. O fato de o serviço prestado pelo provedor de serviço de internet ser gratuito não desvirtua a relação de consumo, pois o termo “mediante remuneração” contido no art. 3º, § 2º, do CDC deve ser interpretado de forma ampla, de modo a incluir o ganho indireto do fornecedor.

  3. A fiscalização prévia, pelo provedor de conteúdo, do teor das informações postadas na web por cada usuário não é atividade intrínseca ao serviço prestado, de modo que não se pode reputar defeituoso, nos termos do art. 14 do CDC, o site que não examina e filtra os dados e imagens nele inseridos.

  4. O dano moral decorrente de mensagens com conteúdo ofensivo inseridas no site pelo usuário não constitui risco inerente à atividade dos provedores de conteúdo, de modo que não se lhes aplica a responsabilidade objetiva prevista no art. 927, parágrafo único, do CC⁄02.

  5. Ao ser comunicado de que determinado texto ou imagem possui conteúdo ilícito, deve o provedor agir de forma enérgica, retirando o material do ar imediatamente, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano, em virtude da omissão praticada.

  6. Ao oferecer um serviço por meio do qual se possibilita que os usuários externem livremente sua opinião, deve o provedor de conteúdo ter o cuidado de propiciar meios para que se possa identificar cada um desses usuários, coibindo o anonimato e atribuindo a cada manifestação uma autoria certa e determinada. Sob a ótica da diligência média que se espera do provedor, deve este adotar as providências que, conforme as circunstâncias específicas de cada caso, estiverem ao seu alcance para a individualização dos usuários do site, sob pena de responsabilização subjetiva por culpa in omittendo.

  7. Ainda que não exija os dados pessoais dos seus usuários, o provedor de conteúdo, que registra o número de protocolo na internet (IP) dos computadores utilizados para o cadastramento de cada conta, mantém um meio razoavelmente eficiente de rastreamento dos seus usuários, medida de segurança que corresponde à diligência média esperada dessa modalidade de provedor de serviço de internet.

  8. Recurso especial a que se nega provimento.” (STJ – REsp nº 1193764/SP – 3ª Turma – rel. min. Nancy Andrighi – j. 14.12.2010)

Oportuno destacar, a internet nunca foi e não será terra sem lei, cabendo às plataformas prestarem serviços seguros aos seus usuários, sobretudo àqueles hipervulneráveis, como os menores de dezoito anos, pessoas portadoras de deficiência e idosos.

Conclusão
Por óbvio, o presente artigo não pretende exaurir o tema, mas sim instaurar o debate a seu respeito, bem como destacar a importância e oportunidade de revisão da antinomia jurídica disposta no Marco Civil da Internet à luz da relação de consumo existente, regulamentando de forma mais adequada e contemporânea a atuação dos provedores de aplicação e das plataformas no Brasil.

Em nossa opinião, portanto, temos a possibilidade de corrigir o erro transportado para o Marco Civil da Internet, retomando assim a lógica sistemática do diálogo das fontes. Os provedores de aplicação não podem, de um lado, auferir lucros estratosféricos com anúncios de golpes e, de outro lado, os consumidores experimentarem os danos decorrentes dessa publicidade falsa.

Quem está nas redes sociais sendo alvo de toda a sorte de publicidade, é, no mínimo, consumidor equiparado, nos termos do art. 29 do CDC. Quem exerce a atividade econômica e lucra com os anúncios sem dúvida é fornecedor. O PL proposto ajuda para afastar a irresponsabilidade absoluta, mundialmente defendida pelas Big Techs.

 


[1] QUINTINO, Larissa; Serviços, maior setor do PIB, despencam no início do ano. Veja. Disponível em: https://veja.abril.com.br/economia/servicos-maior-setor-do-pib-despencam-no-inicio-do-ano. Acesso em: 22.02.2024.

[2] ALMEIDA, Fabrício Bolzan de. Direito do Consumidor. 11. Ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, fl. 64.

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